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Sociedade

Criminalidade: sentimento de impunidade e riscos

A onda de criminalidade que tem sido registada, sobretudo nas ilhas de Santiago e São Vicente, tem aflorado o sentimento de não justiça no seio dos cabo-verdianos, levando muitas pessoas a procurarem meios próprios para reaver seus bens ou tentar combater os criminosos. Embora desaconselhados pelas autoridades, casos do género tendem a ser normalizados na Praia e no Mindelo. 

É uma tendência que vai aflorando conforme vão surgindo também as vagas de criminalidade no país. Segundo o sociólogo Redy Lima, ela existe há muito tempo, resultado de uma mistura de genes colectivos culturais e a ausência do sentimento de proteção do Estado e impunidade judicial. 

Actualmente ela tem mais visibilidade devido a projecção dada nas redes sociais, espaço onde, mais do que mostrar a sua preocupação e desconforto perante a criminalidade, as pessoas têm vindo a expor expedientes próprios para recuperar pertences roubados, perante o que consideram uma inoperância das instituições judiciais. 

Casos e mais casos

Em São Vicente, um jovem teve a sua mota levada por um meliante, momentos após a deixar estacionada numa rua que, por sorte, é abrangida por uma câmara de vigilância de uma residência privada. Na sequência, consegue as imagens, leva à esquadra policial, mas, devido aos processos burocráticos, a polícia nada pôde fazer a tempo de recuperar o motociclo antes que fosse desmantelado e vendido. 

Como solução, a vítima procurou, por meios próprios, saber para onde foi levada a mota, e com a ajuda de terceiros conseguiu negociar a sua devolução, mediante o pagamento de uma quantia em dinheiro. 

Na mesma ilha, em Março passado, o cidadão David Leite teve sua residência assaltada. Identificou o suposto autor, levou as informações à polícia, e foi instruído a fazer um requerimento à Procuradoria, mas nada resultou no tempo que considera ser razoável para resolver o problema. Junta um grupo de amigos e vão bater à porta do suposto criminoso, pedir para que pare de roubar as suas casas. 

“Infelizmente, a inércia e a inoperância das autoridades – policiais e judiciais – obrigam os pacatos cidadãos que somos a tomar medidas. Não sou pela violência e não serei eu a pleiteá-la como solução. Mas é chegada a hora de transferir o medo para os bandidos! De lhes mostrar que somos muitos e não temos medo deles”, declarou, numa publicação na sua página do Facebook.

Na Cidade da Praia, uma cidadã teve os seus pertences roubados numa praia de mar, pede a ajuda do policial à paisana, que muito pouco pôde fazer. Expôs o caso nas redes sociais e, com naturalidade, alguém lhe sugere identificar um “thug”, provavelmente amigo do que levou suas coisas, e pagar uma quantia para que este lhe trouxesse de volta os seus pertences.  

Redy Lima, autor de um estudo sobre os gangs de rua em Cabo Verde e que já trabalhou com estes grupos, diz que muitos eram procurados para resolver estes problemas. Inclusive, recorda, em 2012, um estudo de percepção da violência da Afrosondagem, já trazia à tona essa questão. 

Justiça própria

Agastados com a situação, muitas pessoas têm optado por divulgar nas redes sociais fotografias dos supostos criminosos, ameaçando, inclusive, “fazer justiça por conta própria” caso estes não sejam presos e condenados. 

“Infelizmente o que eu tenho (imagens) estou a divulgar porque não podemos mais ficar calados. Todos os dias vejo a minha zona e o meu povo indignado com esta situação. Todos sabem quem são os criminosos mas não querem mostrar a cara”, diz ao A NAÇÃO o jovem Vady Lopes, que nos últimos dias divulgou várias imagens de um grupo de jovens identificados como sendo os autores de assaltos nas zonas de Fernando Pó, Horta Seca, Passarão e Craquinha, em São Vicente. 

Ponderação na exposição ao risco 

Instado a comentar a questão, o comandante da Direção Central de Investigação Criminal, Roberto Lima, esclareceu que nada impede uma vítima de buscar e fornecer informações que possam ajudar na resolução dos seus casos, mas que as pessoas devem ter ponderação. 

“O que se aconselha é que haja uma responsabilidade, ponderação na exposição ao risco e, sobretudo, a não interferência no decurso da investigação sob pena de a atrapalhar.  A Polícia Nacional (PN) não aconselha e desencoraja a justiça pelas próprias mãos, pois sendo guardiã da segurança pública, estatutariamente cabe-lhe auxiliar as pessoas, estando ela mesma vinculada aos princípios legais do não cometimento de um crime em compensação de outro”, refere.

Pese embora a inquietação que a morosidade possa causar, reforça, existem mecanismos próprios e legais que devem ser orientadores e auxiliadores para a responsabilização dos prevaricadores/criminosos.

“Qualquer objecto, informação com relevância para um processo existente tem regras de validação e inclusão nesse processo e, o direito à imagem, a privacidade de qualquer pessoa têm o mesmo resguardo constitucional e processual e ninguém se sobrepõe à lei ou à outrem. A lei é clara que quem a viola assumirá as suas consequências. A posição da PN é o reforço no apelo pela serenidade, calma, não exposição desnecessária aos riscos e confiança nas instituições e nas leis do país”, sublinha o comandante. 

Por outro lado, esclarece, não existe suporte legal para a ideia de uma justiça privada em Cabo Verde, a não ser em situações claras de legítima defesa própria ou de terceiros e em estado de necessidade.

Quanto a acção da PN, Roberto Lima frisa que a realização da justiça não cabe à PN, muito embora ela seja um dos actores que podem satisfazê-la, cabendo-lhe a intervenção e intermediação com limitações legais claramente definidas e em cooperação com o Ministério Público, Tribunais e outros OPC. 

“A PN, no âmbito dos seus planos operacionais de prevenção criminal procura deter em flagrante delito o máximo de indivíduos envolvidos em práticas criminosas e quando e sempre que não for possível, procura identificá-los rapidamente de forma a se poder proceder à sua detenção fora de flagrante, através de ordem do Ministério Público. Diariamente, procede a entrega aos Tribunais vários indivíduos detidos para primeiro interrogatório e aplicação de medidas, cumprindo assim com o que a lei manda”, termina.

Corrente humana pela paz social e reforço da intervenção policial 

Diante do um sentimento generalizado na ilha de São Vicente, no passado 5 de Abril centenas de cidadãos saíram às ruas, no Mindelo, numa corrente humana em sinal de protesto contra a criminalidade e denunciando aquilo que consideram falta de acção da justiça perante os delinquentes. 

Aliás, nas últimas semanas a Polícia Nacional reforçou a sua acção nas ruas, tanto no Mindelo quanto na Praia e outras cidades do país, com mega-operações que resultaram em várias detenções e apreensão de armas. A pergunta que não cala: por que razão a PN não agiu mais cedo? 

Ainda assim, uma acção que prontamente foi elogiada. “A Polícia Nacional voltou, nestes últimos dias, às ruas e zonas suburbanas da cidade do Mindelo, e com ela um sentimento de segurança que já estava a fazer falta. Os habitantes da ilha de São Vicente aclamam com júbilo este regresso das forças de manutenção da ordem, cuja actuação tem-se mostrado firme e dissuasiva, sem ofender ninguém.  Também, já não era sem tempo”, escreveu David Leite, uma das vítimas da onda de assaltos na ilha.

Em resposta às preocupações da população de São Vicente, o Governo anunciou o reforço da Polícia Nacional na ilha com a integração de 25 novos agentes recém-formados ainda este mês.

Sem punição não há solução

Entretanto, este cidadão, que viu o suposto autor de roubo em sua residência ser novamente colocado em liberdade, sob medida de proibição de permanência nas ruas a partir das 19h e apresentação periódica às autoridades, questiona o que é feitos dos “delinquentes” conduzidos às esquadras, depois das interpelações com grandes aparatos policiais.

“Muitos deles são conhecidos pelos seus antecedentes criminais. Visto a recorrência de furtos, vandalismos e outras perturbações da ordem pública pelos mesmos indivíduos, de duas uma: ou a lei é permissiva, ou não é aplicada à letra para evitar ‘recaídas’. Se for só um sermão ‘e agora vai-te embora’, sem nenhum corretivo, é claro que, apanhando-se de novo na rua, os infratores vão voltar a infringir. Vão reincidir, vão ser apanhados de novo, e assim o ciclo infernal continua e se perpetua”, alerta.

Natalina Andrade

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