Por: Joaquim Arena
A propósito do reacender dos bombardeamentos em Gaza, provocando, segundo a imprensa internacional, centenas de mortos, neste que é o maior ataque aéreo desde o cessar fogo, do dia 19 de Janeiro, vale a pena recordar o que o escritor sueco Sven Linquist escreveu no seu livro, Uma História dos Bombardeamentos (Antígona, 1999). Do bombardeamento dos oásis líbios, de 1911, à devastação total por mais de um século de guerras.
O poder destruidor do bombardeamento aéreo – que atingiu o seu expoente máximo com as duas bombas atómicas lançadas nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, e a destruição das cidades alemãs, como Berlim, Colónia, Hamburgo, mas especialmente de Dresden, sem esquecer as V-1 germânicas no Blitz de Londres – e a sua vantagem na guerra, não passaram despercebidos ao tenente prussiano JCG Hayen, quando, em 1783, os irmãos Montgolfier experimentaram o seu balão de ar quente, pela primeira vez, em Avignon, França.
Poucos meses depois, impressionado com o feito, o oficial prussiano publicava o primeiro livro sobre os aparelhos voadores como arma de guerra. Tal como escreveu – terrivelmente visionário – o balão podia “fazer chover fogo e destruição em cidades inteiras, com resultados catastróficos para os seus habitantes”.
Mas Haynes não era belicista e pelos efeitos devastadores que ele acreditou que as máquinas voadoras pudessem vir a ter, estava certo de que as nações haveriam de criar regras que impedissem que fossem usadas para aterrorizar ou causar destruição maciça às populações. Mas os balões não eram de fácil manuseio e controlo e o seu valor militar não seduziu, na altura, os exércitos europeus. E de facto, em 1899, um século depois de Haynes, as grandes potências acordaram em seguir as recomendações do prussiano e proibir os bombardeamentos a partir de balões.
Porém, bombardeamentos em si mesmo não desapareceram, antes pelo contrário. Se ainda não vinham de máquinas voadoras, como os balões, vinham de vasos de guerra estacionados ao largo de cidades, que as flagelavam com os seus potentes canhões. Quando, no final do século XIX, navios espanhóis bombardearam a indefesa cidade chilena de Valparaíso, os membros da Casa dos Comuns, do Parlamento britânico, ficaram indignados por as bombas terem atingido propriedade britânica, na cidade. Mas estes não colocavam em dúvida o direito de povos em guerra de se bombardearem entre si, embora não lhes parecesse “muito civilizado”. Apenas um dos membros dessa câmara britânica lembrou – para incómodo dos seus pares – que os ingleses haviam feito o mesmo à cidade japonesa de Kagoshima, três anos antes. E Valparaíso ficaria como exemplo vergonhoso de cidade bombardeada. Até ser suplantada por Guernica, em Espanha, em 1937.
Após os ingleses terem reduzido a cidade de Alexandria, no Egipto, a escombros, em 1882, o primeiro ministro Gladstone evocou o direito da comunidade internacional (no conceito de hoje) de intervir nos assuntos internos de outros Estados em nome da paz, humanidade e progresso, bombardeando-os e ocupando os seus portos. Depois de ser fustigada do nascer ao por do sol, Alexandria ficou reduzida a um mar de fogo. E o Egipto tornou-se uma colónia britânica. Por essa mesma altura, o professor de Direito Internacional Joseph Hornung falava do facto só existir para os Estados poderosos. E estes não vinham mostrando nenhum respeito ou consideração pelos mais fracos. “Os princípios do direito internacional só se aplicam entre Estados e exércitos e não entre nacionais e sociedades civis, nem se aplicam em conflitos contra os bárbaros”.
O novo mundo dos aviões
E Jason Anson Farrer já dizia que a guerra entre povos com diferentes níveis civilizacionais “contribui mais para barbarizar os civilizados do que civilizar os bárbaros”. Para Farrer, estava mais do que provado que as guerras entre os países europeus se tinham tornado mais selvagens em resultado dos hábitos adquiridos pelas tropas, “do outro lado do Atlântico”.
E no seu outro livro Matem os Selvagens (Kill all the Brutes), o sueco Sven Linquist defende a tese de que a guerra de destruição total, o Holocausto e a ideia de Solução Final nazi não são mais do que uma consequência directa da selvajaria e das barbaridades cometidas pelas potências coloniais em África: dos alemães no Sudoeste Africano ao Estado Livre do Congo, de Leopoldo II. Os alemães foram os primeiros a fazer na Europa, contra europeus, o que estes já faziam em África, na Ásia e Médio Oriente, contra esses povos.
E depois de Guernica, a porta para flagelar populações civis numa destruição total, ficou definitivamente aberta. Tal como a ideia do Inferno chocou povos animistas que guardam o lugar dos defuntos à mesa e mantêm uma ligação com antepassados, o bombardeamento aéreo destruiu o céu enquanto conceito e espaço etéreo religioso. O próprio acto de voar está relacionado com anjos e arcanjos, pois Deus também vive nos céus e pode voar. “Cristãos e povos de outros credos associavam o voo ao poder divino e à própria imortalidade”, escreve Linquist. Por outro lado, a chegada da “Era do Ar” foi vista, desse dealbar do século XX, como uma nova época na vida das pessoas e das sociedades. “Logo, logo os humanos poderiam mover-se em liberdade nas três dimensões. Voar seria tão natural como andar de bicicleta, tão natural como caminhar.”
Inclusive, outras coisas boas chegariam com o acto de voar: democracia, igualdade, liberdade. O próprio ar sobre as montanhas e o por do sol, acreditava-se, poderiam curar a tuberculose. Voar iria elevar a Humanidade da sujidade da Terra e criar um espaço onde o Homem iria viver a sua vida mais saudável, em paz e harmonia. Acreditava-se, assim, neste alvor da aviação, que voar iria afastar as causas dos conflitos entre os povos, ao fazer com que as pessoas se aproximassem mais e se conhecessem e se respeitassem melhor.
“Aqueles que brigavam e se hostilizavam no solo viveriam em paz juntos nessa liberdade aérea sem fronteiras”. E se os norte-americanos nunca sofreram, até hoje, no seu solo continental, os efeitos de um bombardeamento, os europeus não poderão dizer o mesmo. E as benesses trazidas pelos aviões, imaginadas no início do século XX, levariam ainda mais tempo a chegar.
Os povos europeus depressa se apressaram a aprovar leis e códigos que impedissem o bombardeamento de cidades e civis. Mas, fora do Velho Continente, essas leis não se aplicavam. Quando, em 1911, os italianos encontraram resistência por parte dos árabes de Tripoli, na sua ânsia de conquista das sobras do Império Otomano, nesta região do Norte de África, decidiram levar a cabo uma experiência pioneira. Três anos depois do primeiro voo realizado em Paris e num acto de pura vingança, um avião italiano fez o primeiro bombardeamento aéreo da história, sobre os oásis de Tagiura e Ain Zara. Três dias depois, os italianos declararam o fim da guerra.
Meio para “civilizar” os bárbaros
Assim, mais do que mera arma de conquista, o bombardeamento tornou-se um “meio para civilizar” povos bárbaros, para além de exemplo de progresso em tecnologia militar. Os civilizados, esses, não seriam bombardeados. Poetas como Grabriel d’Anunzzio, encantados com os seus efeitos, previram que as bombas nunca cairiam sobre Paris ou Roma, ou ameaçar os seus entes queridos. E seguindo o exemplo dos italianos, em 1913, para punir cidades marroquinas rebeldes, os pilotos espanhóis Eduardo Barrón e Carlos Cienfuentes lançaram quatro bombas “Carbonit” cheias de explosivos e bolas de metal para causar o máximo de ferimentos às populações.
Em 1918, com o fim da Primeira Guerra Mundial, falava-se em autodeterminação – um conceito fundamental para a democracia – sobretudo para os povos que até aí tinha estado subjugados pelos Turcos, no seu vasto império. No entanto, as principais democracias também eram as principais potências coloniais, cujo poder nas suas colónias resultava no direito de ocuparem o território conquistado, a maior das vezes contra a vontade dos seus habitantes. Se os portugueses se viram praticamente reduzidos aos quartéis, ao perderam a supremacia aérea, na guerra na Guiné, os ingleses acentuaram o seu poder graças à aviação.
Por esta altura, o homem forte da Somalilândia, no Corno de África, o Mullah Abdile Hassan, tornara-se “um espinho da pata do leão” britânico, na região. Depois da Primeira Guerra, Winston Churchill fora designado para desmantelar a força aérea britânica (RAF). Várias expedições punitivas contra Hassan, o “Mullah Maluco”, como era conhecido, não tinham surtido efeito. E em vez de duas divisões numa ofensiva de doze meses, contra Hassam, para além dos milhões para construir estradas, caminhos de ferro e bases militares necessárias para ocupar o território, o antigo comandante da RAF, Trenchard, propôs dominar o Mullah Maluco com apenas doze aviões e 250 homens.
Este nunca vira um avião, muito menos uma bomba. Quando lhe disseram que emissários ingleses vinham a caminho, Hassam vestiu a sua melhor roupa e esperou, diante da sua residência, acompanhado dos seus conselheiros. Estes olharam curiosos, instantes depois, quando umas coisas estranhas e ruidosas surgiram no céu. Escreve Sven Linquevist como a primeira bomba quase pôs um fim à guerra. Matou os seus conselheiros e a deslocação do ar da explosão desfez as roupas de Hassam. A segunda matou a sua irmã e vários membros da sua família mais próxima. Durante dois dias, os aviões britânicos perseguiram e atacaram Abdile Hassan e a sua família que fugiam pelo deserto, como animais.
Até que se rendeu. Churchill ficou radiante. O custo da operação tinha sido ridículo. De seguida, deu seis milhões de libras à RAF para que esta tomasse conta das operações no Iraque, que já tinham custado ao exército dezoito milhões até então. Ontem como hoje. Um século depois, nada mudou. Seguiram-se as destruições da Segunda Guerra Mundial, da Coreia, do Vietnam e de todas que se conhecem. Mais de um século depois dos oásis líbios, o terror aéreo continua a arma mais eficaz, sobretudo contra as populações civis. No Médio oriente e na Ucrânia. São as portas do céu abrindo e derramando fogo. «All hell breaks loose”, na linguagem dos senhores da guerra.
