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A Oficialização do Crioulo Cabo-Verdiano: Um desafio de identidade e transformação

Por: António Medina*

A discussão sobre a oficialização da língua crioula cabo-verdiana tem gerado diversos pontos de vista, refletindo tanto as suas potencialidades quanto os seus desafios. No contexto atual, em que já se experimenta a tradução da Constituição da República para a língua crioula, especificamente a variante de Santiago, o debate sobre a língua tornou-se uma questão de grande relevância para o futuro da identidade cabo-verdiana. A oficialização do crioulo não é apenas um passo linguístico, mas um ato político e cultural que pode redefinir a maneira como os cabo-verdianos se percebem como nação. No entanto, esse processo não está isento de controvérsias.

Os defensores da oficialização do crioulo argumentam que este é um gesto de justiça histórica. A língua crioula, nascida da fusão de influências africanas e portuguesas, carrega consigo a memória, a cultura e a identidade do povo cabo-verdiano. A sua oficialização seria, portanto, um reconhecimento dessa herança e uma afirmação da língua como um pilar fundamental na construção da identidade nacional. Segundo Veiga (2004), ao oficializar o crioulo, Cabo Verde estaria tornando-a apta a desempenhar funções formais e institucionais, como a comunicação no governo, nas escolas e nos meios de comunicação. O crioulo, de facto, é a língua do quotidiano da maioria da população e deveria ser valorizado como tal.

Além disso, a língua crioula é intrinsecamente ligada à música e à arte cabo-verdiana, como a morna, e à gastronomia, como a cachupa, que são elementos fundamentais da cultura nacional. Duarte (2003) destaca que a morna, como a cachupa, faz parte do património cultural de Cabo Verde, algo que a língua crioula também representa. Ela não é apenas uma língua de comunicação, mas um veículo de expressão dos sentimentos, da saudade e da luta histórica de um povo que foi forjado no arquipélago. Assim, sua oficialização poderia, sim, fortalecer a coesão e a autoestima nacional.

Porém, esse processo de oficialização não é isento de resistência, especialmente entre as populações das ilhas de Barlavento. Em particular, as pessoas oriundas de Santo Antão, São Vicente, São Nicolau e Sal e Boavista, que pertencem à região de Barlavento, levantam um ponto crucial contra a proposta de oficializar a variante do Crioulo de Sotavento (a variante de Santiago, Maio, Fogo e Brava). Para os falantes da variante de Barlavento, essa decisão representa uma forma de exclusão da sua própria forma de falar e uma tentativa de homogeneizar uma língua que, na verdade, é rica em diversidade.

Os opositores da oficialização do crioulo na variante de Sotavento argumentam que a escolha de uma única variante — especialmente a de Santiago — como língua oficial pode resultar numa marginalização das variantes locais de Barlavento, que possuem suas próprias características e formas de expressão. Sousa (2004) alerta para os perigos de adotar uma versão única do crioulo para o país, pois a diversidade das variantes regionais é um traço intrínseco da língua crioula e não pode ser ignorada sem que se perca uma parte da sua riqueza cultural.

Além disso, existe um receio de que a oficialização do crioulo de Sotavento signifique uma imposição linguística que desvalorize as formas de comunicação já estabelecidas nas outras ilhas, especialmente na educação, na administração pública e nos meios de comunicação. Sousa (2004) vai ainda mais longe, ao afirmar que esse processo poderia criar divisões regionais, ao invés de promover uma coesão nacional. A adaptação de escritores e outros profissionais da cultura que já dedicaram suas vidas ao uso do português ou ao crioulo de Barlavento pode ser desafiadora, sem falar na resistência dos cidadãos dessas regiões, que não se veem representados por uma variante que não é a sua.

Por outro lado, é importante reconhecer que a criação do Alfabeto Unificado para a Escrita do Crioulo Cabo-Verdiano (ALUPEC), em 1998, foi um primeiro passo na busca por uma uniformização e valorização da língua. Embora o ALUPEC tenha sido criado com o objetivo de padronizar a escrita do crioulo, ele não resolve completamente as questões relacionadas à diversidade fonética e sintática das variantes de cada ilha. A iniciativa de oficializar uma única variante, neste caso a de Santiago, pode, portanto, ser vista como uma tentativa de simplificação que desconsidera a pluralidade linguística das diferentes regiões do país.

No entanto, a necessidade de oficializar o crioulo como língua de ensino e de comunicação formal continua sendo uma questão premente. A língua crioula cabo-verdiana é falada por toda a população e representa uma parte essencial da vida cotidiana de muitos cidadãos, especialmente nas relações sociais e familiares. De acordo com Veiga (2004), a oficialização do crioulo não significa apenas dar-lhe status legal, mas também dar-lhe a capacidade de funcionar em situações formais e institucionais. Esta é uma forma de valorizar a língua e sua capacidade de desempenhar um papel significativo no desenvolvimento social e cultural do país.

A oficialização do crioulo cabo-verdiano seria, de fato, um passo importante para afirmar a identidade nacional, mas deve ser feita de maneira inclusiva e respeitosa com a diversidade linguística do país. O diálogo entre as variantes regionais, com o objetivo de chegar a um consenso sobre a melhor forma de oficializar a língua, será crucial para evitar divisões e garantir que todas as vozes de Cabo Verde sejam ouvidas. Duarte (2002) é claro ao afirmar que, embora existam preconceitos em relação ao crioulo, o processo de oficialização e valorização da língua crioulas será um passo necessário para superar essas barreiras e para construir um futuro mais inclusivo e coeso para Cabo Verde.

Portanto, o desafio da oficialização da língua crioula vai além de uma simples decisão política. Ele implica respeitar as especificidades regionais, promover o entendimento e a unidade entre as várias variantes do crioulo e garantir que a língua seja verdadeiramente um reflexo da diversidade cultural e linguística de Cabo Verde. A sua oficialização será, sem dúvida, um marco importante na afirmação da identidade cabo-verdiana, mas deve ser abordada com sensibilidade, inclusão e um compromisso firme com o diálogo entre as diferentes regiões e variantes da língua.

Medina, 25/03/2025

*Geógrafo, doutorando em Ciências Sociais

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