Por: Américo Medina
Quando se apela à boa governação e ao direito internacional, mas se silencia diante de atrocidades, a credibilidade perde-se no mar da conveniência.
O mundo, de facto, atravessa uma fase de transição acelerada, marcada pela erosão do multilateralismo, pela reorganização de blocos de poder e pelo avanço de novas tecnologias. Esta constatação, presente no recente artigo de opinião de um deputado da nação, é pertinente. Mas o que se exige hoje de uma liderança lúcida é mais do que a habilidade de descrever a superfície dos acontecimentos: é a coragem de nomear as contradições, assumir responsabilidades e defender princípios — mesmo quando é incómodo.
O autor propõe-se a refletir sobre os desafios da nova ordem internacional e os riscos que ela representa para países pequenos e vulneráveis como Cabo Verde. No entanto, a sua leitura peca por um silêncio ensurdecedor sobre os episódios mais graves que hoje desestabilizam o próprio sistema internacional que ele diz querer preservar.
Refiro-me, em primeiro lugar, à catástrofe humanitária em Gaza, onde, sob os olhos do mundo, milhares de crianças, mulheres e idosos são vítimas de um bombardeamento sistemático, apoiado militar e diplomaticamente pelos Estados Unidos da América. Cabo Verde, país historicamente comprometido com os direitos humanos, optou por calar-se completamente, recusando alinhar-se com a maioria da comunidade internacional que exige um cessar-fogo imediato e o respeito pelo direito humanitário. Que tipo de diplomacia é esta, que prega princípios mas abdica deles quando são postos à prova?
Em segundo lugar, o artigo omite a recente captura de opositores políticos de regimes autoritários em solo cabo-verdiano, a mando dos EUA e sem mandato das agências internacionais competentes. Trata-se de um precedente perigoso, que ameaça a soberania nacional, expõe o país a responsabilidades jurídicas futuras e fragiliza a sua imagem de Estado de Direito. A submissão a pressões externas, travestida de “pragmatismo”, não pode ser confundida com inteligência diplomática.
A contradição entre o discurso e a prática é gritante. Exalta-se a “boa governação” e o “respeito pelo direito internacional”, mas ignora-se que o governo que o deputado representa tem agido seletivamente, consoante a conveniência dos aliados e o cálculo de curto prazo. Esta postura compromete a coerência moral e esvazia a credibilidade externa de Cabo Verde.
Ao citar o relatório “Navegar em Mares Agitados” do Banco Mundial, o autor pretende reforçar a ideia de que o país está a reagir às incertezas globais com resiliência. No entanto, o relatório não pode ser lido como um salvo-conduto para a governação atual. Pelo contrário, ele alerta para a lentidão das reformas, para os riscos de dependência externa e para a necessidade urgente de uma transformação estrutural. O relatório é um apelo à ação estratégica — não um elogio à complacência política.
Falar de transição digital, resiliência climática ou diversificação económica é necessário, sim. Mas é preciso ir além do enunciado. Cabo Verde não está a ser penalizado apenas por alterações geopolíticas externas. Está também a colher os efeitos de escolhas políticas internas: de uma diplomacia que perdeu densidade ética, de uma economia pouco transformada e de uma reforma do Estado que se faz a passo lento, quando não se estagna.
O país precisa, mais do que nunca, de uma política externa coerente com os valores que proclama e de uma governação que reconheça que a legitimidade internacional se constrói tanto pelo desempenho interno como pela integridade das suas posições no mundo.
Os mares são, de facto, agitados. Mas não é com discursos decorativos e pragmatismos sem princípios que se navega com dignidade. A bússola de Cabo Verde deve apontar para a justiça, a coerência e a autonomia. Sem isso, qualquer rota, por mais sofisticada que pareça, levará inevitavelmente ao naufrágio da credibilidade.
