Por: Joaquim Arena
A atribuição do Óscar do Melhor Filme Internacional ao filme ‘Ainda estou aqui’, de Walter Salles, na última entrega dos Prémios da Academia de Hollywood, coroa não só a cinematografia brasileira, como contribui para o conhecimento daquilo que foram os anos da ditadura militar no Brasil. Por outro lado, os sete anos que o filme levou a fazer – a história de uma família que vive o trauma do sequestro do pai, em 1971, pelas autoridades militares – coincidiu com um período de grandes convulsões políticas no país, que culminaria na recente acusação do ex-presidente Jair Bolsonaro de tentativa de golpe da direita e de eliminação de adversários políticos.
Para nós, falantes da língua portuguesa, a estatueta levada para o Brasil por Walter Salles tem também grande valor simbólico, assim como já tinha tido o Globo de Ouro para a actriz Fernanda Torres. É a primeira vez que actriz e filme de língua portuguesa têm essa distinção. O filme é baseado no livro homónimo de Marcelo Rubens Paiva, de 65 anos, o filho mais novo do casal Rubens Paiva e Eunice Paiva, publicado em 2016. A história mergulha nestes acontecimentos, na luta de Eunice em busca do paradeiro do marido desaparecido e no seu activismo social, ao mesmo tempo que conta a história do Brasil, nestes anos duros da ditadura militar.
O sucesso do livro já havia mexido um pouco com a dificuldade com que os brasileiros ainda lidam com este período da sua história. Mas nada que se compare com o impacto que o filme de Walter Salles tem tido a nível nacional (mais de 5 milhões de espectadores), desde a sua estreia, em 2024, e agora internacional, sobretudo depois do Óscar. Um dos seus efeitos, foi trazer para a discussão pública os crimes praticados pelo Estado, durante a ditadura militar, em nome da segurança nacional – mas fora da chamada ‘bolha’ esquerdista.
Na imprensa brasileira, discute-se mesmo, neste momento, até que ponto o sucesso estrondoso do ‘Ainda estou aqui’ poderá levar à reabertura do processo de Rubens Paiva e de outros ainda pendentes, na justiça brasileira. Mas o próprio Marcelo Rubens Paiva, autor do livro, lembra que em 2014 também havia um clima propício a essa reabertura, mas que depois não deu em nada. E logo veio o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, que muitos vêem como o princípio de um golpe para arredar a esquerda do poder.
O filme de Salles, que conta com Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro nos principais papéis, vem colocar o dedo na ferida mais dolorosa dos últimos sessenta anos, no Brasil. O golpe militar de 1 de Abril de 1964 acabou com o governo de João Goulart e deu início a 21 anos de uma ditadura feroz. Se o Brasil não inaugurou os golpes, é certo que a política de sequestros de opositores, seguida da eliminação dos sequestrados (Rubens Paiva, 1971), seria mais tarde adoptada pelo Chile (1973), Uruguai (1973) e pela Argentina (1976), no combate a militantes e activistas de esquerda nestes países, orquestrada pela Operação Condor, através da CIA americana.
‘Ainda estou aqui’, o título do filme, conta Marcelo Rubens Paiva, foi a frase proferida pela mãe, Eunice, já quando esta sofria da doença de Alzheimer, ao acordar de repente, durante uma conversa. Eunice e Rubens nasceram em São Paulo, em famílias privilegiadas, e conheceram-se na Universidade. Se o filme de Walter Salles dá todo o destaque à figura e à tenacidade de Eunice (interpretada por Fernanda Torres), tudo é provocado pelo inconformismo e a intransigência de Rubens face às injustiças sociais económicas do Brasil.
Rubens Paiva ‘cassado’ e em fuga
Em 1962, aos 32 anos, o engenheiro civil Rubens Paiva é eleito deputado federal por São Paulo, pelo PTB, durante o governo reformista de João Goulart. Em pouco tempo torna-se um dos vices do partido na Câmara e na CPI que investiga as actividades do Instituto Brasileiro de Pesquisas Sociais (IPES) e do Instituto Brasileiro de Acção Democrática (IBAD). Estas eram suspeitas de receberem financiamento internacional para desestabilizar o governo de Goulart, no interesse dos Estados Unidos e da direita brasileira. A 1 de Abril de 1964, data do golpe de Estado dos militares, Paiva vai à rádio para apelar aos trabalhadores e estudantes à resistência. Mas no dia 10 vê o seu mandato como deputado cassado.
Rubens Paiva é obrigado a refugiar-se na embaixada da Jugoslávia, no Rio de Janeiro. E meses depois, exila-se em França e na Inglaterra. A família fica em São Paulo, ansiosa com os acontecimentos. No início de 1965, Rubens Paiva regressa ao Brasil e a família muda-se para o Rio de Janeiro – Estado com forte tradição democrática e mais resistente aos militares – para uma casa no Leblon, frente à praia. Rubens Paiva retoma a carreira como engenheiro civil e constitui algumas empresas. Funda o Jornal de Debates e torna-se o director do jornal Última Hora, de São Paulo. Mas mantém a veia política e solidária. Estabelece contactos com resistentes e militantes de esquerda, ajudando-os a sair do país e fornece apoio logístico.
Uma das cartas, trocadas com uma exilada política, retornada do Chile, onde consta o seu nome, é descoberta pelos militares. Em Janeiro de 1971, agentes do Centro de Informações da Aeronáutica invadem a sua casa. Rubens Paiva é levado, diante da família, sem qualquer justificação. As autoridades suspeitam que Paiva tem contactos com ‘Adriano’, nome de código de Carlos Alberto Muniz, elemento activo do MR8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro). Muniz estava ligado, por sua vez, a Carlos Lamarca, um dos homens mais procurados na época, ex-capitão do exército que desertou para aderir à luta armada contra a ditadura militar e acabou sendo abatido, no interior do Brasil, pelos militares durante uma emboscada.
A persistência de Eunice
Rubens Paiva, homem branco, rico e influente, não activo politicamente, foi detido apenas na tentativa de as autoridades obterem informações que os levassem a Lamarca. Paiva acaba no DOI-CODI, um dos principais centros de tortura do regime, conhecido pela sua brutalidade. As coisas precipitam-se, quando Paiva intercede por uma mulher também torturada, e ele é espancado até à morte. O corpo nunca será encontrado. Para além de grande incómodo para as autoridades, o seu desaparecimento torna-se no mais mediático caso das violações dos direitos humanos no Brasil, pelo regime militar.
Eunice também é presa durante 12 dias, junto com a filha, Eliane (esta apenas 24 horas), a mais velha de 15 anos. Tanto o livro de Marcelo como o filme de Walter, relatam a vida da família após o desaparecimento de Rubens. Trazem todos os esforços e a persistência de Eunice para que a morte do marido fosse decretada oficialmente e lhe fosse entregue o corpo, ou revelado onde estaria enterrado. Durante anos, Eunice irá enfrentar os militares e procurar apoio junto de várias instituições nacionais e internacionais. Entretanto, o incómodo deste crime leva a que as ossadas de Rubens sejam desenterradas e enterradas, várias vezes, em locais diferentes, pelos militares. Estes chegam mesmo a criar, com a ajuda da imprensa fiel, a narrativa de uma fuga de Rubens Paiva, com a ajuda de guerrilheiros, para justificar a sua morte.
Aos 47 anos, Eunice Paiva decide voltar à universidade e forma-se em Direito. Torna-se uma das maiores especialistas em Direito dos Povos Indígenas do Brasil. Em 1988, a antiga dona de casa, que encontrou na dor e na perda a força para combater a injustiça, é consultora da Assembleia Nacional Constituinte, que irá promulgar a Constituição Federal Brasileira. E quase uma década depois, pela mão do então presidente Fernando Henrique Cardoso, o país dá um passo determinante no reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro pelos crimes durante a ditadura militar, ao sancionar, em 1995, a Lei dos Desaparecidos.
A lei reconhece como mortas as pessoas desaparecidas entre 1961 e 1988, para além de criar a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. E em 1995, 25 anos depois do desaparecimento de Rubens Paiva, Eunice Paiva obtém do Estado brasileiro a certidão de óbito do marido. Pouco tempo depois de a mãe ser diagnosticada com Alzheimer, o filho Marcelo Rubens Paiva – escritor, músico, guionista, dramaturgo, que se estreara na literatura com o livro Feliz Ano Velho (1982) -, dá-se conta de que com a doença da mãe é a memória da história da família que se perde. Decide então escrever ‘Ainda estou aqui’.
Para além do impacto que o filme de Walter Salles, adaptado do livro, tem para a cinematografia brasileira – que passa por um bom momento, diga-se (filme ‘Ultimo Azul’, de Gabriel Mascaro, venceu o Urso de Prata no Festival de Berlim) – existe a incontornável questão política, levantada pela história. A tragédia de Rubens Paiva confronta, 54 anos depois, um Brasil com uma deriva autoritária recente e com dificuldades em lidar com a sua memória histórica, no momento especial que o país atravessa. Um país em que o exército, desde a passagem da Monarquia para a República, da Era Vargas para a República de 1946, com o General Eurico Gaspar Dutra, como chefe de Estado, e o golpe militar de 1964, tem sido a figura tutelar e omnipresente. Um Brasil em que a aliança entre militares, proprietários agrícolas e as classes privilegiadas, vem resistindo às reformas políticas, económicas e sociais – que Rubens Paiva tanto defendeu – necessárias para tirar milhões de pessoas da pobreza.
