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O papel do planeamento na construção e reforma do Estado na I República

Por: José Brito*

Em Fevereiro de 1977, foi criada a Secretaria de Estado de Cooperação e Planeamento (SECP) sob a direita supervisão do Primeiro Ministro integrando assim o Departamento da Cooperação do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) e a Direção do Plano do Ministério da Economia.

Juntar a Cooperação e o Planeamento foi uma decisão inovadora e estruturante. O racional desta decisão era a visão de considerar a ajuda externa como um instrumento de financiamento do orçamento de investimento público. O Governo tinha tomado uma decisão importante: o orçamento de funcionamento do Estado devia ser financiado unicamente por recursos internos para manter a independência do Estado e consequentemente a dimensão da máquina pública devia adequar-se aos recursos internos do País. 

A ajuda externa só devia financiar o orçamento público de investimentos. Sendo o planeamento um instrumento fundamental de gestão e planeamento do orçamento de investimentos e sendo a ajuda externa a principal e mesmo única fonte de financiamento deste orçamento, fazia sentido juntar essas duas funções num único departamento e colocá-lo na dependência direta do Chefe do Governo que era entidade que melhor podia assegurar a coordenação da SECP com o Ministério de Economia e o MNE.

Este arranjo institucional foi fundamental para manter a nossa autonomia de decisão sobre as nossas prioridades de desenvolvimento no obstante a nossa grande dependência das ajudas externas.

As prioridades eram claramente definidas (educação, saúde, sustentabilidade ambiental e económico, etc.) e toda a nossa ação junto da comunidade internacional era para obter o financiamento das nossas prioridades. Praticamente o planeamento da economia identificava as nossas prioridades e a cooperação procurava os recursos para financia-las. Como sabíamos o que queríamos, conseguimos impor aos doadores a nossa perspetiva, o que era raro na altura. Chegamos ao ponto de negar ajudas que não correspondiam às nossas prioridades. 

Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (1982- 1985) 

A resposta às urgências constantes num Estado em construção não impediram a preocupação em enquadrar a ação do Estado numa perspetiva de medio e longo prazo. É assim, que em 1978 foi iniciado o processo de elaboração do primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (1982- 1985). 

Neste quadro foi publicado em Novembro de 1979 o documento:” Estudos de Longo Prazo – A Estratégia de Desenvolvimento”. Foi o primeiro documento de planeamento a longo prazo que mostrava a preocupação dos dirigentes da época de enquadrar a sua ação a curto e médio prazo numa perspetiva de longo prazo e foi uma oportunidade para pôr de pé um processo amplo de participação sobre as nossas prioridades de Desenvolvimento.

Este documento iniciou com um diagnóstico estratégico da situação do País com a seguinte caracterização:

-A nível económico, verificava-se um grande desequilíbrio entre a produção nacional por um lado e do outro lado o consumo e a formação do capital. Este desequilíbrio (avaliado a 40% em 1977) era coberto pelas remessas dos emigrantes e pela Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD)

-A nível social, a emigração dos elementos mais dinâmicos e mais qualificados da população favoreceu a manutenção da hierarquização social herdada do passado colonial. A seca reforça ainda mais esta dinâmica e a dominação dos proprietários das terras e comerciantes.

A visão do documento refletia bem a preocupação de todos os cabo-verdianos: “A construção até o fim do século (2000), de uma economia capaz de oferecer a todo cabo-verdiano a possibilidade de viver no Arquipélago com um nível de vida suficiente para não ser obrigado a emigrar por causa de desemprego e miséria”.

Os objetivos eram: -Eliminar os desequilíbrios económicos e sociais -Aumentar o nível de vida das populações -Criar as condições para um saldo migratório nulo em 2000 e para dar a cada cabo-verdiano a possibilidade de viver e trabalhar no País

Para atingir estes objetivos eram necessários: -Uma taxa de crescimento de economia de 10% durante os próximos 20 anos – Multiplicar a produção nacional num fator de 7 até o fim do século – Reduzir rapidamente a taxa de natalidade

As estratégias para atingir estes objetivos eram: -A criação em grande escala de uma força de trabalho qualificada (prioridade número um à formação do capital humano); -Uma política de investimentos rigorosa e de grande extensão; -A transformação das estruturas sociais herdadas do colonialismo

Foram definidas três fases para atingir estes objetivos: -1980-1985 (período do primeiro plano): Liquidação das sequelas do colonialismo: formação acelerada dos quadros e mão de obra qualificada, reformas do sistema de ensino e da Administração Pública, realização da reforma agraria, unificação do mercado interno, satisfação das necessidades básicas das populações.  -1986-996: Etapa de desenvolvimento extensivo (edificação da base económica) com a revolução do setor agrícola, valorização da vocação geoeconómica de Cabo Verde (transportes marítimos regionais, transbordo marítimo e aérea), indústrias ligeiras, turismo de alto valor nacional acrescentado (não ao turismo de massa),  – Após 1997: Aprofundamento do desenvolvimento intensivo

Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento 

Em Agosto 1984, no quadro da preparação do Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento a SECP publicou a “Revisão das perspetivas de desenvolvimento a longo prazo” no seguimento da publicação dos resultados de vários estudos nomeadamente o Recenseamento Geral da População realizado em 1980, o balanço da realização do primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento a meio percurso e as perspetivas da agricultura e do setor pecuário. 

Estes estudos mostraram a necessidade de ajustamentos de alguns objetivos do primeiro estudo de longo prazo como a diminuição das áreas irrigadas em 2000 de 10.000 para 4000 hectares, o abandono do objetivo de pleno emprego no fim do século entre outros. As resistências à aplicação das reformas sociais como a Reforma Agrária em 1981 mostraram o limite do objetivo de modificação das estruturas socias herdadas do colonialismo.

Este estudo prospetivo mostrou que Cabo Verde iria enfrentar a longo prazo um certo número de desafios que se não fossem resolvidos poderiam pôr em perigo a sua sustentabilidade enquanto Estado independente. Em particular, Cabo Verde devia criar um aparelho produtivo forte e diversificado para reduzir a sua dependência em relação às chuvas e à ajuda externa.

Em Junho de 1985, frente às conclusões da revisão das perspetivas de longo prazo, o Conselho Nacional do PAICV recomendou uma “larga discussão a nível nacional” das conclusões deste estudo. Para facilitar este debate, a SECP publicou em Novembro de 1985 um documento síntese chamado: “As tendências de desenvolvimento de Cabo Verde” que foi largamente divulgado.

Reforma do sistema económico e política

Este documento foi objeto de um grande debate no seio do Partido e na sociedade. Uma das conclusões deste debate nacional era que o Estado não podia continuar de ser o ator único de criação de riqueza. Esta conclusão levou à aprovação em 1989, pela Assembleia Nacional Popular (ANP), de uma lei que pôs fim ao monopólio do Estado sobre a economia. 

Esta mudança fez parte de uma série de reformas econômicas e políticas que visavam a liberalização e modernização da economia do país, incentivando a iniciativa privada e a participação de investidores estrangeiros. Esta abertura do setor económico abriu a porta à Também abertura do sistema político em Fevereiro de 1990.

Como se pode constatar, graças à ampla discussão dos planos a médio e longo prazos e um acompanhamento constante da sua execução, o sistema de planeamento desempenhou um papel importante na tomada de consciência do Partido no poder e do Governo sobre a necessidade de proceder atempadamente às reformas dos sistemas económico e político. 

O Plano nunca foi aplicado como uma imposição às partes interessadas do desenvolvimento. Foi sempre um planeamento flexível e descentralizado e como afirmei na apresentação do primeiro PND: “É necessário haver a concertação mais amplo possível entre os serviços de planificação e o conjunto dos seus parceiros. A eficácia de todo o processo de planificação depende da riqueza e permanência desta concertação.”

Sistema de planeamento participativo e flexível

Em conclusão, a elaboração do primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento e os subsequentes ajustes demonstraram um compromisso com uma abordagem de desenvolvimento sustentável e inclusiva. O sistema de planeamento, através de um processo participativo e flexível, foi fundamental para adaptar as estratégias às realidades emergentes e às resistências encontradas. Convirá ter em conta esta experiência na gestão do desenvolvimento nos próximos cinquenta anos.

A integração das funções de cooperação e planeamento foram marcos estruturantes na administração pública de Cabo Verde. Este arranjo institucional permitiu ao país manter uma autonomia estratégica em suas decisões de desenvolvimento, apesar da dependência significativa de ajudas externas. 

A visão clara e as prioridades bem definidas permitiram que Cabo Verde se posicionasse de maneira assertiva junto à comunidade internacional, obtendo financiamentos alinhados com  as suas necessidades e recusando aqueles que não se enquadravam em seus objetivos, garantindo assim, que o país pudesse sempre estar no “driven seat”, definindo e impondo suas prioridades de desenvolvimento aos parceiros internacionais.

A capacidade de antecipação e a ampla discussão das tendências de desenvolvimento revelaram-se essenciais para a implementação de reformas económicas e políticas. A decisão de acabar com o monopólio estatal sobre a economia e abrir o setor ao investimento privado marcou uma transição significativa, pavimentando o caminho para a liberalização e modernização da economia (em 1989) e, para a abertura do sistema político (no 19 de  Fevereiro de 1990), confirmando também que o processo de abertura económica e politica foi fruto de uma reflexão interna e da participação de todos.

*Eng., Ex-Ministro Adjunto da Cooperação e do Planeamento

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