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Cultura

Da aldeia SOS para o cinema, a história de Edneia Brazão

Filha de uma mãe com oito filhos e sem meios de subsistência, Edneia Brazão entrou para a Aldeia SOS de São Domingos aos quatro anos. Aos 18 chegou ao Brasil para estudar Ciências Musicais e aos 25 já foi premiada por duas vezes em festivais de cinema deste país, no Rio Grande do Sul.  Apesar das saudades da terra natal, o Brasil e o mundo ainda têm muito para lhe dar e o regresso a Cabo Verde não é para já.

Quando Edneia Brazão terminou o ensino secundário, ainda adolescente, obteve uma bolsa para continuar os estudos no Brasil. Mas apesar do ensino no Brasil ser gratuito, a sua Aldeia SOS continuou a pagar-lhe a estadia neste país. Se a cultura do país-irmão não é muito diferente da cabo-verdiana, a humidade e o frio que Edneia foi encontrar em Pelotas, na cidade onde se instalou, no Rio Grande do Sul, foram as grandes surpresas, para a menina criada em São Domingos. 

Confessa que ser recebida, com temperaturas de 1 grau negativo, não foi o melhor cartão de boas-vindas no país tropical. “Não foi fácil, porque eu e o frio temos um problema (risos)”, fiquei inclusive doente, logo no início, corpo inchado, enfim”, diz, ao telefone para o A NAÇÃO, a partir de Pelotas, na região sul do Brasil. 

Mas, tirando isso, confessa: “Não foi um grande ‘uau! Estou num país totalmente diferente’, mas para alguém que cresceu sempre rodeado de pessoas, de início não foi fácil fazer amigos e a minha adaptação foi mais difícil neste sentido.” E a escolha do curso a seguir: Ciências Musicais – muito fora daqueles habitualmente seguidos por estudantes bolseiros cabo-verdianos – tem raízes na sua infância. 

“Desde pequena que a minha mãe dizia-me que eu tinha sido criada ‘na sala di badju’ (risos), e antes de ter ido para a Aldeia SOS, tínhamos um vizinho, nos Órgãos, que dava festas frequentes em sua casa, lá em S. Lourenço, e com 2,3 anos, a minha mãe levava-me com ela e eu dançava e cantava no meio dos adultos”. E depois de entrar para a Aldeia, aos quatroanos, esta estrutura sempre soube alimentar este seu talento para música, confessa. E para ir para o Brasil, Edneia fez um teste, passou, e teve de escolher dois cursos para a sua formação, como alternativa.

Ciências Musicais e cinema

“Ciências Musicais estava num folheto de cursos para inscrição, que eu encontrei na embaixada do Brasil, na Praia, quando fui lá entregar documentos. Achei muito interessante e escolhi esse curso sem pensar muito no assunto, foi mais por instinto, ao lado de Veterinária ou Biologia”.  

Quando Edneia recebeu os resultados dos testes e viu que tinha passado em Ciências Musicais, disse para si que tinha feito a escolha acertada. Mas outros caminhos estavam reservados para a menina dos Órgãos. 

Foi convidada para participar no filme documentário “Não tem Mar Nessa Cidade”, uma curta-metragem, realizado por alunos da sua faculdade, da área de cinema, como trabalho de fim de curso. “A realizadora teve a ideia de fazer o filme sobre imigrantes, aqui no Brasil. Ela é filha de pais bolivianos e um amigo comum sugeriu o meu nome e foi assim que entrei no projecto.” 

O filme, em que Edneia participa como actriz principal, um documentário ficcionado, foi exibido em outros países, Colômbia, Rússia, no Brasil, Belo Horizonte, em vários lugares do mundo, em festivais, até chegar ao prestigiado festival de Gramado, no Rio Grande do Sul, na sua 52ª edição.

“Fui convidada, mas não tinha a noção que era para receber um prémio. A minha área é a da música e não sigo muito o cinema, festivais, por isso fiquei um pouco perdida; só quando cheguei ao festival é que fiquei a saber que havia vários prémios, vários concorrentes. O nosso filme concorreu na categoria de melhor actriz e melhor trilha sonora e acabámos por ganhar o prémio de melhor trilha sonora, para surpresa de todos.” Uma trilha sonora em que Edneia participou, na composição, e na interpretação da canção, que ela canta no filme. 

A actuação de Edneia seria ainda premiada com uma Menção Honrosa, no XVI Festival Internacional de Cinema de Fronteira, no município de Bagé, Rio Grande do Sul, perto da fonteira com o Uruguai, em mais uma das surpresas que a estudante cabo-verdiana encontrou neste seu trajecto de vida. 

Aos 25 anos, Edneia não volta as costas à sua terra, mas vai dizendo que o Brasil tem muitas oportunidades para lhe oferecer enquanto artista. “Já surgiu uma nova proposta para eu entrar em mais um filme, há várias outras questões envolvidas, na verdade eu quero fazer o mestrado em teatro musical, fora do Brasil, em Londres ou nos Estados Unidos. É muita coisa e eu ainda não sei bem o que fazer, para já.”

Edneia considera-se uma pessoa “muito livre, não é libertinagem, mas levo a liberdade muito a sério, uma pessoa que gosta de conhecer novas culturas, novas pessoas, novos lugares, por isso não gosto da ideia de ficar presa num lugar durante muito tempo.” E Pelotas, confessa, começa a ficar pequeno para ela, mas o Brasil ainda tem muito para lhe dar. “Também sou um pouco de deixar a vida me levar, deixar na mão de Deus, mas indo fazendo a minha parte, é claro.”

A menina da Aldeia SOS

Natural dos Órgãos, na região de João Teves, Edneia Brazão cresceu numa família de mãe só e com oito filhos para criar. A mãe era peixeira e o pai alcoólatra. E apesar desse lado paterno da família até ter boas condições económicas, nunca ajudaram a sua mãe. A ida de Edneia para uma Aldeia SOS surgiu da enteada de uma falecida tia que, por sua vez, trabalhava na Aldeia. 

“Ela veio visitar a minha mãe e sugeriu que ela pusesse os filhos na Aldeia. Por coincidência, na época a Aldeia de São Domingos acabava de abrir e estavam a receber crianças até os oito anos. Então eu, com quatro anos, e a minha irmã de oito meses, fomos colocadas lá e acolhidas. A minha mãe entregou-nos e foi-se embora.” 

Casa nº 8 

Edneia ficou na casa  número 8. “Quando somos crianças, a adaptação é mais fácil, a nossa cabeça ‘deleta’ as coisas desagradáveis que vivemos, e sabemos que temos uma família. E eu apaguei muitas coisas da minha vida antes da Aldeia.” 

A vida na Aldeia, confessa, “não foi às mil-maravilhas, teve altos e baixos, mas também não foi ruim, acho. Como toda educação cabo-verdiana, se não fizesses as coisas bem eras castigada. Com certeza que viver longe da nossa família não é fácil. Sabemos que as pessoas que estão à nossa volta não são a nossa família, mas é uma instituição que existe para ajudar as crianças a terem uma vida melhor e ajudar as famílias. Deixaram sempre claro que eu tinha uma família biológica, a nossa mãe, os nossos irmãos, que nos visitavam sempre que quisessem e nas férias podíamos visitá-los, também”.

Mas Edneia não esconde as dificuldades que uma criança enfrenta na gestão desta mistura de sentimentos. “Por vezes, era difícil entender a existência de duas famílias, claro que o coração fala mais alto. Mas aprendi muito com a vida na Aldeia, pude estudar e fazer o ensino secundário e depois a faculdade, pude ter uma vida melhor, naturalmente. E hoje sou o único dos filhos da minha mãe que tem um curso superior, mas espero que os meus outros irmãos possam também vir a ter.”

Crescer numa bolha 

Edneia reconhece a gratidão para com a Aldeia, apesar de apontar vantagens e desvantagens. “Na Aldeia, crescemos numa bolha, somos protegidos de todas as formas e lá aprendemos a fazer de tudo e mais um pouco, lavamos a nossa roupinha, com oito anos limpamos a casa, aos 12 já cozinhamos, fazemos workshops e trabalhos variados, mas viver sozinha é uma coisa bem diferente. Quando vim para o Brasil com 18 anos eu já sabia cozinhar, já sabia limpar, etc., aprendi a ser autónoma desde pequena, mas já para gerir dinheiro, viver num país diferente, é outra coisa. É como em Cabo Verde, sair da Aldeia e viver numa comunidade, é totalmente diferente. Mas estou muito grata à Aldeia e tenho muito orgulho de fazer parte da Aldeia”, conclui. 

 

Joaquim Arena

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