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Outras Vozes, Outras Vidas: A redescoberta de África pelos indianos, a literatura como elo de ligação

Por: Joaquim Arena

Ao contrário de outras potências interessadas nos negócios com África, a Índia também aposta no aprofundamento dos laços culturais com o continente. O Festival Internacional de Literatura da Universidade de Dibrugarh dedicou a sua segunda edição às literaturas africanas. A nova estratégia de reaproximação foi definida pelo primeiro ministro, Narendra Modi, que não quer ficar para atrás diante de outras potências concorrentes.

O convite para participar num festival internacional de literatura, na Universidade de Dibrugarh, na Índia, surpreendeu-me primeiro pelo local, depois pelo tema: literaturas de África. O certo é que o país não fica propriamente aqui neste lado do globo. A primeira proposta de voos de ligação, a partir da Praia, não agradou. O trajecto via as capitais africanas, Dacar, Lomé, Addis-Abeba, Dubai, pareceu demasiado cansativo. A segunda opção, Praia, Lisboa, Dubai, através da esplêndida companhia aérea Emirates, prometia uma viagem também longa, mas mais agradável num airbus com ‘19 hospedeiras falando 13 línguas.’ Isto para além da famosa qualidade das refeições a bordo. 

Festival Internacional de Literatura

Mas ninguém entra na Índia como speaker de uma conferência sem o chamado E Visa, o visto online. E aposto que ninguém, mas ninguém mesmo, sem o apoio local ou de embaixada, consegue preencher total e correctamente todos os formulários online, para a obtenção do visto. Quase determinado em desistir desta estranha aventura burocrática e tendo isso mesmo expressado à organização, logo chegou mensagem de ajuda na pessoa de Jintumani Tahbildar, que passei a tratar apenas por Jim. O jovem destacado pela Universidade de Dibrugarh para me convencer a atravessar metade do planeta rumo a um dos Estados mais remotos da União Indiana, tinha a resposta imediata ao meu argumento do jet lag e do pouco tempo para descansar. 

A organização, disse-me, oferecia-me mais dois dias no hotel, se eu quisesse, para repouso depois do Festival. E se eu gostasse da natureza poderia disfrutar ainda do Parque Natural de Kaziranga, o cartão de visita de Assam. Poderia ir ver o animal mais emblemático da região: o rinoceronte branco. Também havia tigres, acrescentou Jim, perante o meu silêncio. O parque contém as maiores populações destas duas espécies animais, em toda a Índia. No final, serão seis ligações aéreas, internacionais e nacionais, da Praia até este remoto Estado do nordeste da Índia. Deixei Cabo Verde com tigres e rinocerontes na imaginação. 

Ganda, o rinocerante branco

Os primeiros vinham das aventuras de Sandokan, o Tigre da Malásia e de Mompracem, de Emílio Salgari. Os segundos, da história de Ganda, um rinoceronte indiano registado em xilogravura pelo artista alemão Albreicht Durer, no século XVI. Até muito tarde foi a maior referência deste animal no Ocidente. Ganda, o rinoceronte, foi oferecido pelo sultão de Gujarat ao rei português D. Manuel, como presente. Em 1515 o animal embarcou na Índia rumo a Lisboa acompanhado de um rapaz de nome Ocem, o tratador. À sua chegada espantou todos. O último exemplar deste mítico animal havia sido visto na Europa havia mais de mil anos, na Roma imperial. 

Ganda ficou num estábulo real, junto com outros animais exóticos.  Levados pelos textos de Plínio, o Velho, historiador romano, a corte portuguesa resolve colocar Ganda frente a frente a um elefante, para ver se de facto o rinoceronte era o único capaz de desafiar e vencer o paquiderme. No dia marcado, a multidão que preenchia o local fez tanto barulho que assustou o elefante e este saiu a correr ainda mal tinha avistado Ganda. 

Estes acontecimentos ficariam registados na memória de um rapazinho de 13 anos, o futuro filósofo e humanista português Damião de Góis, aluno e colega de Erasmus. Tal como tinha sucedido com Hanno, o elefante indiano, um ano antes, sem saber o que fazer deste animal exótico, o rei português decide também oferecer o rinoceronte branco ao Papa Leão X. Ganda e Ocem embarcam, desta vez rumo a Roma. Mas depois de uma passagem em Marselha, para um rei local apreciar o mítico animal, uma tempestade ao largo de Génova afunda o barco e Ganda, preso por correntes no porão, afoga-se. Ao contrário do elefante Hanno, o rinoceronte indiano nunca chegará aos olhos do Papa. 

Depois de seis conexões e exausto, sou recebido amavelmente na sala do aeroporto de Dibrugarh, em Assam, e por um par de rinocerontes bebés, em tamanho natural, talhados em madeira. Será o mais perto que estarei destes animais, na minha viagem à Índia. O Parque Nacional de Kaziranga, fico a saber, fica a uns bons 300 quilómetros de distância do hotel. A presença de indianos em África vem da noite dos tempos. Muito antes do marinheiro Sinbad ou de Vasco da Gama, embarcações do subcontinente cruzavam o Índico entre a costa oriental de África, Madagáscar e a Índia. Se a maioria eram comerciantes, muitos fariam mais tarde parte da administração colonial britânica. Assim como em Moçambique, com os muitos naturais de Goa, cristãos ou não, imigrantes nesta colónia portuguesa. Mas as coisas mudaram nos últimos tempos. 

India em busca de África

Desde 2018, com a chegada de Narendra Modi à chefia do governo de Nova Deli, multiplicaram-se as missões diplomáticas e a abertura de embaixadas da Índia no continente. Hoje, a República da índia tem a maior rede de missões e serviços diplomáticos em todo o mundo. Em África são cerca de 51 missões. A Índia mudou muito. As pessoas já não defecam em público e já não é o país atravessado pela miséria profunda e obscena, descrito por V S Naipaul nos livros An Area of Darkness (1964) ou a Million Mutinies Now (1990), que escandalizaram os indianos. 

Em Cabo Verde, a embaixada indiana tem pouco mais de dois anos. E à mesa do pequeno almoço, no hotel, já em Dibrugarh, sou informado de que Cabo Verde também tem o seu cônsul honorário em Nova Deli, que se ocupa dos assuntos respeitantes a este pequeno Estado arquipelágico, na sua relação com o país mais populoso do mundo. Ou seja, 500 mil para 1, 420 mil milhões.

O ano passado, o ministro indiano dos Negócios Estrangeiros referiu-se às “relações profundas” quando descrevia as relações África-Índia. Actualmente a quinta economia mundial, o país vem estendendo a sua influência e aumentando o número de embaixadas, mas de forma subtil, sem grande publicidade. Mas a estratégia é clara. Para quem esteve no passado dia 26 de Janeiro na recepção do Dia Nacional da Índia, na Praia, deu para perceber isso mesmo no discurso, em bom português, do embaixador indiano Sanjeev Jain, em Cabo Verde há pouco mais de dois anos. 

Mas não é apenas o aspecto económico que preside a esta mais recente investida de Nova Deli, em África. As culturas do continente também são evocadas na vasta Índia, como também referiu Sanjeev. Para dar apenas dois exemplos, o Festival Internacional de Literatura da Universidade de Dribugarh convidou escritores de Cabo Verde, Guiné-Bissau, Libéria, Angola, África do Sul, Togo, Quénia, Camarões, RD Congo, para além de um grupo de dança constituído por alunos africanos dessa mesma instituição. 

Mas também está a decorrer a 38ª edição da Feira Internacional de Artesanato de Surajkund, de 7 a 23 deste mês, em Aridabad, Haryana, cidade próxima de Nova Deli. Participam nela vários artistas africanos, entre eles uma delegação eclética ida de Cabo Verde, composta de 13 artistas: de S. Antão, Titita, Hélder Pelada (música) e Kim Capon (artesão), de São Vicente, Débora Melício (dança e música), da Boa Vista, Adolfo Gonçalves (artesão), de Santiago, Edu Guedes (dança), Goreth da Veiga, Xibiote e Trakinuz (música), Cinzo Gamboa (design e moda), Simone Spencer (artes plásticas), do Fogo, Yacine Rosa (música) e Ilha Brava, Maria de Pina (artesã), para além do bailarino e coreógrafo Manu Pretu.

Encontrar Cabo Verde na Índia

Em conversa com a diplomata Anju Ranjan, com muitos anos de experiência, esta revela-me como Cabo Verde também tem o seu cônsul honorário, em Nova Deli. Um homem de negócios, grande admirador de Cabo Verde e da sua cultura, que certamente marcará presença na feira de Nova Deli. A curiosidade por África – “de onde o subcontinente indiano veio, depois de se separar do supercontinente Gondwana” – e pelos escritores africanos justificou a edição deste ano do Festival literário, dedicado a África. Vários painéis de discussão sobre os autores e as suas obras, edições, motivações, pontos de contacto, numa perspectiva de “The Empire writes back”, a frase de Salman Rushdie, sobre a conquista das antigas metrópoles, por escritores das antigas colónias. 

Mas aqui, eram os laços históricos e uma história de colonização comum, experiências partilhadas, a unir africanos e indianos, durante uma semana. O país mais populoso do mundo, que atravessa uma fase de grandes transformações, reencontrando no continente africano possibilidades económicas e de parceria em diversos domínios, incluindo o da cultura. A nova estratégia, definida pelo primeiro ministro Narendra Modi, passa por uma relação “people-to-people” (pessoas para pessoas) na sua dimensão, implicando, entre outros aspectos e áreas de cooperação, facilidades na atribuição de bolsas de estudo para jovens e de vistos para 33 países. 

Dando um salto no tempo, recordo que a minha mãe, uma grande admiradora de filmes indianos, costumava contar como por volta de 1938, com seis anos de idade, entrou num automóvel pela primeira vez, em São Nicolau. O proprietário era um ‘médico indiano’, como ficou conhecido, que esteve na ilha por algum tempo. O veículo terá sido um dos primeiros senão o primeiro na ilha. E já no encerramento da segunda edição do Festival Literário da Universidade de Dibrugarh, é Damodar Mauzo e Vivek Menezes, escritores de Goa e que escrevem em Konkani, que me apresentam uma família indiana que durante muitos anos viveu e conviveu com cabo-verdianos, em New Bedford. Recordam e falam-me, com entusiasmo, dos amigos crioulos, da cachupa e das mornas (cantarolando…) que escutavam, nas festas e aos fins de semana, na vizinhança, antes da reforma e do regresso definitivo à sua Índia natal. Além de maravilhoso, o Mundo é realmente pequeno. Eu, na Índia, encontrar Cabo Verde através da memória desses indianos. 

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