Para além de ser um ‘manifesto’ e homenagem à língua cabo-verdiana, 1Son+Son, o novo disco de Djinho Barbosa, resulta de uma viagem musical que já tem mais de 12 anos. Composições que acompanharam o músico de Santiago, nas diferentes fases da vida, e que agora vêem a luz do dia na sua nova carreira profissional nos Estados Unidos da América. A paisagem musical deste trabalho, que conta com a colaboração de dezenas de músicos, entre eles Paulino Vieira, reflecte as experiências e o fascínio do compositor pelas revelações e possibilidades do vasto universo harmónico.
É dos músicos cabo-verdianos com carreira mais diversificada e com passagem por alguns dos grupos mais importantes da cena musical do país. Em 2017, Djinho Barbosa ou Ângelo Barbosa, de seu verdadeiro nome, mudou-se para os EUA e aqui iniciou uma nova vida profissional, junto da família. Hoje trabalha na Bridgewater State University, como director do Pedro Pires Institute for Cape Verdean Studies.
A sua função é servir de ponte e inter-face entre esta instituição e os estudantes cabo-verdianos, nos EUA, assim como com a diáspora, as associações cabo-verdianas nesse país, para além de servir de ligação com entidades americanas com interesse em Cabo Verde. Djinho levou consigo a sua música e as composições em que vem trabalhando.
O seu mais recente projecto musical, agora na fase de finalização, viajou também com ele nesta nova vida do outro lado do Atlântico. As composições não são propriamente novas, já estavam prontas desde 2008, 2010, como explica. “Foi logo depois do meu anterior trabalho, Tras di Son, de 2006, com 16 músicas, e estas foram ficando. E neste processo algumas até foram gravadas por outros cantores, como Zeca di Nha Reinalda, a música Raiz, mas foram acontecendo várias coisas, mesmo a nível profissional, e nunca consegui pegar no projecto e terminá-lo, embora estivesse quase pronto”, revela, em conversa telefónica, dos EUA, para o A NAÇÃO.
Djinho vai encontrar na América os músicos do projecto Terreru, um colectivo que integra Calu di Guida, Jacinto Fernandes, Maruka Tavares e Djoy Amado, com produção musical conjunta. E depois dos projectos com Terreru, Djinho finalmente decidiu terminar o seu próprio último disco, que já se arrastava há anos.
“No meu estúdio pessoal em Cabo Verde, as faixas já estavam bem adiantadas, com captação de vozes, como a de Lúcia Cardoso, Maruka ou a harmónica de Paulino Vieira, numa delas, feitas, portanto, há 12 anos, para além da gravação de instrumentos, guitarras que toquei há mais de dez anos, no fundo não reinventei nada, fui buscar o material que já tinha. E depois de gravar Terreru, peguei no projecto em Dezembro e agora já está praticamente disponível para o público.”
Cabo Verde e o mundo
Apesar de cantadas em crioulo, as músicas do novo projecto 1Son+Son apresentam ritmos nitidamente de Cabo Verde e outros com uma batida mais universal, mais mainstream. É fácil reconhecer as influências do músico, que vêm desde os Beatles, da sua mais tenra idade, até Pink Floyd, Bossa Nova, música africana, Jazz, música clássica MPB, clássica, etc. São composições que surpreendem pela riqueza melódica e a arranjo da harmonia, da parte de Djinho Barbosa, como a Manhan Más Manhan, na poderosa voz de Lúcia Cardoso letra de Kaká Barbosa. Uma melodia universal, expandindo-se na voz envolvente da cantora que dá mais vida ao poema do compositor da Assomada.
Ainda recordando Kaká, a faixa Infinitu pa Kaká Barbosa entra de mansinho numa viagem pelo jazz-fusão, numa guitarra que explora escalas do universo de músicos do género, como Pat Matheny, assim como o finason final de Carlos Mendes – “ Ess Kusa li mim ka inventa, a mim reinventa.”
Em Son di Santiagu, a voz é de Djinho Barbosa e casa muito bem com a mutação melódica, num elogio à ilha maior do arquipélago e suas gentes, numa batida aqui fora dos ritmos das ilhas, embora com a gaita na parte final resgatando o som tradicional da pertença. Mas o que surpreende nesta faixa é o desenvolvimento e a variação melódica, acorde menor- maior-menor, num diálogo de leve tensão e que desemboca num refrão apaziguador e aberto como uma agradável paisagem, espaço de conforto espiritual, antes do improviso da harmónica de Paulino Vieira.
Tudo aparentemente fácil, na sua subtil complexidade. Provavelmente, uma das músicas que mais surpreenderão os ouvintes pela riqueza e inteligência da composição, e que poderá vir a conhecer muitos covers. Uma das melhores homenagens musicais à ilha de Santiago. A faixa Setembru é outra das músicas que estão disponíveis no Youtube, pertencentes a este projecto, também com voz de Djinho Barbosa. Em todas se sentem as influências do músico e compositor, do rock ao pop, que formariam o seu espírito musical aberto, para além da passagem por grupos, como Abel Djassi, que tocava vários tipos de música, ou o Finasom, mais focado no funaná.
No fundo, como explica, “absorvo e interessa-me as possibilidades que todo o tipo de música pode trazer e, à semelhança de outros trabalhos, este é uma síntese de toda a minha experiência musical. Dá para sentir o Brasil, África, América, enfim, sente-se a música do mundo, passando por Batuque, Funaná, morna, coladeira.”
Apesar de radicado nos EUA, acompanha muito do que acontece no campo da música de Cabo Verde. E confessa que, talvez por estar longe, acaba por ter um olhar “mais frio” sobre essa realidade. “Acho que pela distância conseguimos analisar melhor o que se passa, quem está a fazer o quê, os projectos dos novos músicos. E a música é isso mesmo, trazer propostas novas, mas nem sempre é fácil.”
A música como desafio, a língua como caminho
E neste contexto, Djinho fala do seu processo de composição, de forma a encontrar diálogos e estruturas musicais mais de acordo com a sua intuição. “Eu tenho uma relação com o instrumento, seja guitarra ou teclado, e nesta relação eu tento entrar em determinados labirintos de harmonia que estão implícitos na escala de uma guitarra ou teclado, porque no fundo é um mundo infinito em termos de possibilidades, e eu gosto de pesquisar essas possibilidades em termos de composição para quando as encontrar, durante as pesquisas, incorporá-las em músicas.”
Um desfio permanente, diz Djinho, essa descoberta e o fascínio pelo campo harmónico, “que deve ser usado para enriquecer a nossa própria música.” E aqui, adianta, não se pode olhar para a música de Cabo Verde de forma estanque, previsível, “como no início de uma morna, por exemplo, que já sabemos por onde ela vai, eu quero fazer precisamente o contrário, tocar uma música sem que se possa saber de antemão para onde ela nos leva”.
Um “desafio mental”, afirma, e que “pode ser chato para outros”, mas que do ponto de vista intelectual vale pelo desafio na sua construção. “Se não, não tem muito interesse”. Djinho parte do instrumento que tem em mãos para a música que quer construir, sem estar preocupado se o que sai é música de Cabo Verde ou não. “A minha motivação inicial é resolver um problema, porque toda a música, assim como uma história, um romance, tem um problema, uma narrativa, e o que queremos é resolver esse problema. Na expansão da música, no acto criativo livre, está a sua resolução.”
No entanto, há sempre um propósito maior, que é o que está do outro lado da criação artística, neste caso o receptor, de que o compositor não abdica. “Apesar da dimensão universal da música, não me esqueço de que sou cabo-verdiano e eu faço música para que os cabo-verdianos se reconheçam nela, isso para mim é evidente. Como colectividade, nós nos vemos nessa música, pelos seus elementos identitários e de afirmação, inclusive de estética, e que nos sintetiza enquanto povo, aquilo que somos.”
Trata-se de um projecto musical que Djinho Barbosa vem fazendo na companhia de vários músicos e cantores. “Temos um conjunto de cerca de 50 pessoas que participaram neste disco, para além de nomes como Paulino Vieira, Carlos Mendes, Lúcia Cardoso, pessoal que trabalha comigo no projecto Terreru, Maruka, Djoy Amado, Calu di Guida, Desirée Fernandes, filha de Jacinto Fernandes, Albertino Évora, meu colega de Abel Djassi, entre muitos.”
Isto para além da sua própria família, como Xiomara Barbosa, Ellah Barbosa, que vive em Portugal, e dos irmãos de Djinho, também músicos e ainda dos amigos Paló, Humberto Ramos, que vive em Portugal, e Carlos Matos, na Holanda. O que torna o novo disco bastante simbólico. “Este é um dos lados mais importantes deste projecto, que é trabalhar com os meus amigos e a minha família”, diz.
E já na conclusão do trabalho, as últimas misturas de 1Son+Son, foram feitas, recentemente, num estúdio em Nova Iorque, pela mão do experiente produtor americano Dave Darlington, vencedor de um Grammy Award. Uma experiência marcante, para o músico cabo-verdiano. “Foi algo extraordinário, sentar-me numa cadeira, no estúdio, onde já se sentaram músicos como Sting, Ron Carter…” E a relação com o produtor americano é para continuar. “Para além da amizade criada, mostrou-se interessado em conhecer mais sobre a música de Cabo Verde.”
O outro aspecto que tem estado nas suas preocupações, é a situação da língua crioula, da língua materna. O que parte, igualmente, de um dos objctivos do colectivo Terreru, que é ligar a música à educação.
“Este meu novo disco é uma oportunidade para eu lançar aquilo que eu chamo uma espécie de manifesto. Para que o meu disco ajude nesta questão da língua cabo-verdiana e é intencionalmente dedicado à língua cabo-verdiana. Porque existe esse confronto intelectual à volta da língua e no que respeita à arte eu digo que a música de Cabo Verde não sobrevive sem a língua crioula. Há quem diga que a nossa língua não nos leva a lado nenhum, mas é através da nossa música que alimentam o seu lado emocional. E na hora da verdade a nossa língua não serve para ser oficial, para educar pessoas, não serve para essas coisas.”
Djinho Barbosa quer criar, através deste projecto, um “confronto com determinadas pessoas, que sabemos quem são”, explica, cujo posicionamento é “reacionário” do ponto de vista intelectual. “Quero usar este projecto para isso.”
Link para o novo disco 1Son+Son: https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_mGKL7JKahGat7BsA8pC85AJhTn10X32OE
Joaquim Arena