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Inflação em 2024, 1% em Cabo Verde e 2,4% na Zona Euro: Quem explica o absurdo?

Por: João Serra*

Tenho escrito vários artigos, tentando demonstrar, com argumentos técnicos, que as estatísticas oficiais produzidas pelo INE, no que diz respeito ao índice de preços no consumidor (IPC) para cálculo da inflação, partem de pressupostos bastante desatualizados. Isso põe em causa toda a política de rendimentos e preços seguida nos últimos anos, além de comprometer a credibilidade das taxas de crescimento do PIB real, entre outras consequências. 

Aliás, o próprio FMI recomendou ao INE uma atualização dos valores que servem de base ao IPC, de acordo com um relatório publicado por aquele organismo, no dia 21 de novembro de 2023, sobre uma assistência técnica prestada ao INE e dedicada a melhorar e atualizar o IPC.

“As ponderações atuais do IPC baseiam-se em dados de despesas recolhidos durante o inquérito aos agregados familiares em 2015 [Inquérito às Despesas e Receitas das Famílias realizado em 2015 (IDRF2015)]”, lê-se no relatório, referindo que estes dados estão ultrapassados e “é urgente atualizá-los”. 

Por causa disso, Cabo Verde tem apresentado, particularmente nos últimos anos, taxas de inflação inferiores às na Zona Euro (ZE) e em Portugal, seus principais parceiros comerciais, o que não faz sentido. Ora, o país importa quase tudo (cerca de 90%) que é consumido e investido no seu território, sendo que aproximadamente 70% do total das importações provém dos países da ZE, com destaque para Portugal. Assim sendo, Cabo Verde é um país “price-taker” (tomador de preços), isto é, importa inflação, sobretudo dos seus principais parceiros comerciais.

E se alguém ainda duvidava de que eu e o FMI pudéssemos ter razão, a comparação dos dados de inflação do INE e do Eurostat (organismo de estatística da ZE) tira toda e qualquer dúvida: em 2024, a inflação em Cabo Verde fixou-se em 1,0%, enquanto na Zona Euro e em Portugal se fixou em 2,4%. 

Ou seja, no ano passado, a taxa de inflação em Cabo Verde foi inferior em 140% à taxa de inflação na ZE e em Portugal. Além disso, quase todos os outros indicadores do IPC favorecem Cabo Verde. Por exemplo, a variação homóloga do IPC em dezembro, fixada em 1,4%, é bastante inferior aos 3% registados em Portugal – uma diferença de 160% para menos. Quem explica essa situação absurda? 

Eis o panorama dos indicadores do IPC de 2024, na ZE, em Portugal e em Cabo Verde.

ZONA EURO

O Eurostat confirmou no dia 21 de janeiro que a taxa de inflação na ZE acelerou, em termos homólogos, 2,4% em dezembro. Em comparação com o mês anterior, verificou-se uma aceleração de duas décimas no índice harmonizado de preços no consumidor (IHPC).  Note-se que o IHPC é utilizado para comparar a inflação entre os vários países da União Europeia.

Das quatro grandes componentes do IHPC – alimentos, energia, bens industriais não energéticos e serviços –, os serviços tiveram a maior variação homóloga de preços no último mês de 2024. Em dezembro, o IHPC dos serviços, com destaque para restauração e hotelaria, acelerou uma décima para 4%, contribuindo assim em 1,78 pontos percentuais para a variação homóloga da taxa de inflação registada.

Com o segundo maior contributo para a evolução do IHPC em dezembro, surge a alimentação, álcool e tabaco. Em dezembro, esta componente estabilizou nos 2,7%, um valor semelhante ao observado no mês de novembro, o que terá dado um contributo de 0,51 pontos percentuais para os 2,4% de inflação.

O IHPC relativo aos bens industriais não energéticos foi o único que registou uma diminuição em dezembro, com a variação homóloga a diminuir uma décima para 0,5%. Ainda assim, terá contribuído em 0,13 pontos percentuais para o IHPC de dezembro. Por outro lado, o IHPC da energia retomou valores positivos (0,1%), após quatro meses no “vermelho”, contribuindo em 0,01 pontos percentuais para a inflação geral.

Somando os 2,4% do IHPC de dezembro à variação homóloga dos 11 meses anteriores e dividindo tudo pelo número total de meses do ano, a variação média do IHPC da ZE em 2024 terá sido de 2,4%. 

PORTUGAL

Em Portugal, a inflação em 2024 foi de 2,4%, de acordo com os dados finais divulgados no dia 13 de janeiro pelo INE português.

A variação homóloga da inflação em dezembro aumentou para 3%, taxa superior em 0,5 pontos percentuais à observada no mês anterior, lê-se no boletim estatístico do INE. Esse aumento na reta final do ano deveu-se sobretudo à subida mais acentuada dos preços da energia e dos produtos alimentares não transformados (alimentos frescos).

A inflação subjacente, que exclui os produtos que estão mais sujeitos a grandes variações de preços (produtos alimentares não transformados e energéticos), acelerou também para 2,8%. O valor compara com 2,6% registados no mês anterior. 

O IPC relativo à energia aumentou, em termos homólogos, para 4,9% em dezembro, o que compara com 2,1% no mês anterior. Já o índice referente aos produtos alimentares não transformados acelerou de 1,9% para 3,4%. “Estes dois agregados [energia e alimentos frescos] apresentaram os contributos mais relevantes para a aceleração do IPC total”, refere o INE.

Em comparação com o mês anterior, a variação do IPC foi de 0,1%, o que compara com -0,2% em novembro. A variação compara ainda com -0,4% em dezembro de 2023.

CABO VERDE

Segundo dados publicados no dia 22 de janeiro pelo INE de Cabo Verde, no mês de dezembro de 2024, o IPC registou uma taxa de variação mensal de -0,1%, valor inferior em 0,1 p.p. ao registado no mês anterior. 

A taxa de variação acumulada do IPC foi de 1,4%, taxa superior em 0,1 p.p. à observada no mês homólogo do ano anterior. 

A taxa de variação homóloga do IPC total, no mês de dezembro de 2024, foi de 1,4%, valor inferior 0,2 p.p. em relação ao mês anterior. 

No período em análise, o IPC registou uma variação média dos últimos doze meses de 1,0%, valor idêntico ao registado no mês anterior. 

Em termos de agregados especiais, em dezembro de 2024, a taxa de variação homóloga do IPC-Bens fixou-se em 0,7%, apresentando um decréscimo de 0,5 p.p. face ao mês anterior. No IPC Serviços, observou-se um acréscimo da taxa de variação homóloga, passando de 2,3% para 2,4%. O valor registado no IPC Serviço, foi determinante para o comportamento da taxa de variação homóloga do IPC total.

O IPC total excluindo energia, registou uma taxa de variação homóloga de 1,3% (1,7% no mês anterior e 1,8% em dezembro de 2023). 

O indicador de inflação subjacente (IPC total excluindo energia e bens alimentares não transformados) registou uma variação homóloga de 1,6%, valor idêntico ao registado no mês anterior, (1,6% no mês de novembro de 2024 e 1,5% em dezembro de 2023). 

Para mim, a razão para esses valores comparativamente mais favoráveis a Cabo Verde, tem a ver com o IPC desatualizado e desajustado. 

Na verdade, com o índice de janeiro de 2019, o INE iniciou a divulgação do IPC com base em 2018, cujo indicador se baseia nos resultados do IDRF2015. Ora, um IPC mede a variação no custo de aquisição de um cabaz de bens e serviços representativo da estrutura do consumo. Tal implica ponderar os agregados de preços das diversas categorias de bens e serviços em devido tempo, de modo a refletir o seu peso nos orçamentos familiares. 

Normalmente, os ponderadores permanecem inalterados durante pelo menos 12 meses, devendo, no entanto, ser revistos num período de tempo nunca superior a cinco anos, conforme recomenda a OIT.

Porque o IPC em vigor em Cabo Verde se baseia nos dados recolhidos em 2015 e, até à data de hoje, não foi atualizado e ajustado, significa que ele já não reflete o padrão atual de consumo dos cabo-verdianos e o respetivo custo. Pois, esse padrão é bastante diferente do de há uma década atrás. 

Em consequência, quase ninguém acredita nas nossas taxas de inflação, na medida em que praticamente todos reclamam dos contínuos aumentos generalizados de preços, o que contrasta com os valores de inflação, geralmente baixos, indicados pelo INE.

Praia, 25 de janeiro de 2025

*Doutorado em Economia

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