Por: João Serra*
Em 2024, o Banco Central Europeu (BCE) deu início à redução das suas taxas de juro, tendo feito um total de quatro cortes. Com isso, a taxa diretora passou de 4,5% em 2023 para 3,15% em 2024. No sentido inverso, o Banco de Cabo Verde (BCV) fez um total de três subidas de juros em 2024, passando a taxa diretora de 1,25% em 2023 para 2,25% em 2024, com o intuito de reduzir o diferencial de juros entre os dois bancos centrais e, deste modo, mitigar os riscos associados a uma potencial saída de divisas de Cabo Verde – conforme justificou.
Ora, que eu saiba, o objetivo principal da política monetária, executada autonomamente pelo BCV, é garantir a estabilidade de preços. No cumprimento desse objetivo, o BCV deve também ajudar Cabo Verde a assegurar a manutenção do regime cambial de paridade fixa do escudo face ao euro, embora isso não conste, de forma explícita, da Lei Orgânica do nosso Banco Central. Tal significa que a inflação não é a única variável a ser considerada nas medidas de política monetária, contrariamente ao BCE que não tem a preocupação com a sustentabilidade do regime cambial.
Na verdade, o BCE toma as suas decisões sempre com uma meta em mente, a estabilidade dos preços, para garantir, por exemplo, a manutenção do poder de compra dos cidadãos. Porém, quando decide a política monetária, o BCE também pode levar em consideração preocupações com o crescimento económico e o emprego e a estabilidade financeira, desde que tal não prejudique a estabilidade de preços.
Nos países da moeda única europeia, isto é, na Zona Euro (ZE), a liquidez que o BCE disponibiliza aos bancos comerciais constitui uma forma importante de influenciar as condições nos mercados financeiros e de transmitir a política monetária. Isso porque, em todos esses países, os mercados de capitias e cambiais funcionam na sua plenitude, o que facilita a transmissão monetária. Ou seja, na ZE as decisões do BCE têm dupla influência: por um lado, nas taxas de juro que os bancos comerciais cobram e oferecem aos clientes quando lhes concedem empréstimos e aceitam os seus depósitos e, por outro lado, na disponibilidade de moeda em circulação. E estes são instrumentos que, por sua, vez, influenciam o consumo e o investimento. Mas, pode levar vários trimestres até que uma decisão de política monetária se reflita plenamente nos preços.
O mesmo já não acontece em Cabo Verde. Efetivamente, condicionantes estruturais, nomeadamente a incipiência do mercado de capitais, aliadas à manutenção do excedente estrutural de liquidez bancária, têm constrangido os mecanismos de transmissão monetária, afetando os objetivos dos decisores de política. Em face disso, os canais de transmissão, com destaque para o canal das taxas de juro, não são tão eficazes como o são nos países da ZE, apesar dos enormes esforços feitos no passado recente, com vista à sua melhoria. Levam muito mais tempo a produzir efeitos do que na ZE, entre 18 meses a 2 anos.
Assim, não dá para entender que a preocupação principal subjacente às medidas de política monetária em Cabo Verde tem a ver com a redução do diferencial entre as taxas de juro do BCE e do BCV, uma vez que, do ponto de vista prático, tal não faz sentido, e nunca fora esse o objetivo de política monetária em Cabo Verde. Com efeito, apenas com tal preocupação, muito dificilmente se alcançará os objetivos pretendidos de garantir a estabilidade de preços e de mitigar o risco que a saída de divisas pode representar para a manutenção do regime cambial vigente em Cabo Verde, pelas razões já aduzidas no artigo anterior.
Mais do que a difícil convergência das taxas de juro diretoras dos dois bancos centrais, o BCV deve procurar ter uma política monetária autónoma e adequada à realidade do país.
Nesse sentido, no desenho dos instrumentos de política monetária do BCV é preciso ter em conta uma panóplia de variáveis, nomeadamente as especificidades de Cabo Verde, a conjuntura interna e externa, mas também, as regras do mundialmente renomado economista dos EUA, John Taylor. As chamadas “Regras de Taylor” determinam de que forma um banco central deve estabelecer a taxa de juros de curto prazo, com o objetivo de manter a taxa de inflação baixa, a taxa de desemprego e outras variáveis macroeconómicas controladas.
As regras foram adotadas por vários bancos centrais ao redor do mundo, incluindo pelo BCV, naturalmente “mutatis mutandis”, quando desempenhava as funções de governador desta instituição, de dezembro de 2014 a janeiro de 2021. Taylor defende que os países precisam desenvolver a sua própria política nacional, para conseguir, posteriormente, participar de modo mais forte da economia global. Nesse caminho, ele exclui atalhos como “seguir por seguir” o que bancos centrais de outros países ditam, no que se refere a aumento de taxas de juros, por exemplo. (Comunicação feita no 7º Congresso Internacional de Mercados Financeiros e de Capitais, realizado em Campos do Jordão – São Paulo, Brasil, em agosto de 2015)
Nesse quadro, face à ineficácia da transmissão monetária por via de subidas nas taxas de juro de referência, o BCV dispõe de um instrumento muito mais poderoso e impactante que, associado ou não a algumas mexidas suaves nas taxas de juro, pode contribuir significativamente para enxugar parte do excesso de liquidez no sistema bancário, praticamente sem que o poder de compra das famílias e o custo de financiamento da economia sejam afetados.
Refiro-me às reservas mínimas, denominadas Disponibilidades Mínimas de Caixa (DMC), isto é, uma certa percentagem dos valores dos depósitos de clientes que os bancos comercias são obrigados a deter junto do BCV (à semelhança do que acontece em todos os bancos centrais), enquanto um instrumento relevante na condução da política monetária no contexto de excesso estrutural de liquidez.
Efetivamente, as reservas mínimas influenciam diretamente o dinheiro em circulação. Por exemplo, quanto maior for a sua percentagem, menor é a quantidade de dinheiro circulando, o que acaba por esterilizar algum excesso de liquidez, além de contribuir para estabilizar a inflação.
Ora, o facto de haver menos liquidez ou de esta ser mais cara influencia as decisões dos bancos comerciais, nomeadamente sobre a remuneração do “funding” (depósitos de clientes). E com taxas de juro mais elevadas, as pessoas ficam mais incentivadas em canalizar as suas poupanças para constituição de depósitos a prazo, porque recebem rendimentos superiores, o que pode desincentivar a saída de divisas do país.
Em 2014, o coeficiente das DMC era de 17%. Foi sendo reduzido, até se fixar em 10% em 2020, no âmbito do pacote de medidas excecionais de estímulo monetário, adotado pelo BCV face à crise provocada pela pandemia de Covid-19. Nessa altura, apenas com a redução das DMC em três pontos percentuais, de 13 para 10%, libertou-se um montante estimado de cerca de 4 milhões de contos em capital bancário adicional, para reforçar a capacidade de concessão de empréstimos por parte das instituições de crédito.
O coeficiente das DMC não foi normalizado no período pós-crise pandémica, pelo que se mantém até hoje.
E se a banca nacional tem tido resultados positivos históricos nos últimos anos, isso deve-se também ao facto de ter sido beneficiada com a redução das DMC. Por isso, encontrando-se o país numa situação de perda continuada de reservas externas, julgo que é razoável que essa mesma banca contribua para a manutenção do regime cambial existente no país, aceitando um aumento impactante das DMC.
Além disso, o BCV deve continuar a sensibilizar os bancos que fazem as operações de arbitragem de recursos, que devem evitar fazê-las, restringindo a saída de divisas ao âmbito das operações comerciais. Ou seja, os bancos deverão ser sensibilizados e, de alguma forma, administrativamente controlados pelo BCV, no que diz respeito às suas operações cambiais.
Praia, 18 de janeiro de 2025
*Doutorado em Economia