Durante o ano judicial 2023/2024, Cabo Verde tramitou 25 mil processos judiciais, dos quais 13.038 foram resolvidos e 11.951 ficaram pendentes, alcançando uma taxa de resolução de 52,2 por cento (%) para pendências e 94,2% para processos novos, considerada “muito apreciável” pelo presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ), Bernardino Delgado. Entretanto, casos como o da libertação dos arguidos do processo mediático “Rapa Tudo” por falhas técnicas colocaram em cheque a prestação da Justiça.
Ainda sobre os casos resolvidos, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), houve uma redução de 35% nas pendências processuais, com 477 processos resolvidos, sendo 65% anteriores a 2018. Contudo, persiste um défice de magistrados e oficiais de justiça, com um rácio de 12,9 magistrados por 100 mil habitantes, inferior à média europeia de 18.
O Ministério Público destacou uma redução de 42% nos processos de averiguação oficiosa de paternidade, mas registrou um aumento de 12% nas pendências gerais, atribuído à aposentação de magistrados. Além disso, os casos de Violência Baseada no Género subiram ligeiramente, com mais 230 processos.
Críticas à morosidade e gestão da Justiça
Entretanto, em Outubro, durante o debate parlamentar sobre o estado da Justiça, o PAICV criticou, na voz do deputado Démis Lobo Almeida, a situação da justiça no país, afirmando que o debate deve ir além da contagem de processos nos tribunais, sugerindo uma análise mais profunda das questões estruturais do sistema judicial.
Para o maior partido da oposição, a falta de recursos humanos é dos principais problemas, uma vez que segundo, afirmou, muitos tribunais estão a funcionar com os serviços mínimos, diminuindo a capacidade de resposta e resolução dos problemas dos cidadãos.
Quem também foi uma voz crítica em relação à justiça foi o presidente do Partido Popular (PP), Amândio Vicente. Este falou em Novembro no mandato expirado do procurador-geral da República e do presidente do Tribunal de Contas, criticando sua atuação como defensor de interesses partidários, especialmente do MpD.
Vicente também classificou Amadeu Oliveira como “preso político”, argumentando que sua prisão não tem justificativa. Em Dezembro, o líder do PP pediu ao Presidente da República, José Maria Neves, indulto para Oliveira.
O líder do PP atribuiu os problemas da justiça à “partidarização de tudo” e à falta de valorização do mérito e do profissionalismo, ressaltando que a gestão ineficiente, a baixa produtividade e a ausência de um sistema de sanção e recompensa são os principais entraves.
“Rapa Tudo”
O processo “Rapa Tudo”, que envolve 16 arguidos acusados de crimes graves como roubo, tráfico de drogas e tentativa de homicídio, enfrentou falhas judiciais que resultaram na libertação de três réus em prisão preventiva. A causa foi a falta de notificação, atribuída à ausência de selo no passe de autocarro do oficial responsável. Uma situação expôs a precariedade das condições de trabalho no setor da Justiça, como denunciou Maria da Cruz Moreira, presidente do Sindicato Nacional dos Oficiais de Justiça SNOJ, que destacou o impacto direto dessas falhas na morosidade processual e na desmotivação dos profissionais.
Após uma audiência preliminar em Julho, o julgamento estava marcado para Outubro, mas foi adiado devido à ausência de notificações. Essa não foi a primeira falha no processo: em Abril, os arguidos já haviam sido libertados por excesso de prazo de prisão preventiva.
O caso, originado em 2022, incluiu detenções e apreensões em várias localidades da Praia e arredores. Um dos arguidos, Nene, suposto líder, foi assassinado em junho, aumentando as tensões internas no grupo. Um caso que revelou falhas sistêmicas e a insatisfação dos oficiais de justiça, que ameaçam greve diante da ausência de soluções estruturais prometidas pelo governo.
Falhas na proteção de menores
Nos finais de Agosto um caso de suposto abuso sexual de dois gémeos pelo pai levantou questionamentos sobre a eficácia das salas de escuta infantil recentemente inauguradas em Cabo Verde. Apesar das denúncias da mãe e indícios apresentados, a juíza Sara Ferreira alegou falta de estrutura para ouvir as crianças, autorizando a convivência delas com o pai. A mãe relatou sinais de agressão nos órgãos genitais das crianças e afirmou que exames realizados não tiveram seus resultados divulgados.
Manifestações populares, lideradas principalmente por mulheres, criticaram a falta de ação das autoridades e das instituições de proteção infantil, destacando o descaso da justiça e da sociedade civil. O Instituto Cabo-verdiano da Criança e do Adolescente (ICCA) afirmou que cumpre decisões judiciais, mas encaminhou o caso para avaliação. O Conselho Superior de Magistratura Judicial (CSMJ) pediu cautela na exposição pública, reforçando que não há provas conclusivas de abuso e que a presunção de inocência deve prevalecer. O progenitor acabou saindo às escondidas do país.
Investigações à Presidência
Em Dezembro, a Procuradoria-Geral da República (PGR) iniciou uma investigação sobre o pagamento de salários à primeira-dama e a divulgação ilegal de dados confidenciais relacionados a esses pagamentos. A investigação foi motivada por um Relatório de Auditoria à Presidência da República, cobrindo o período de Janeiro de 2021 a Janeiro de 2024, que apontou indícios de crimes como abuso de poder, peculato e recebimento indevido de vantagens.
A controvérsia surgiu após a divulgação de informações nas redes sociais sobre um salário de 310.606 escudos pagos à primeira-dama, Débora Carvalho, valor equivalente ao que ela recebia na CV-Móvel antes de assumir o cargo. A Presidência esclareceu que ela estava em licença especial e recebia o mesmo salário sem contrato formal com a Presidência, mas a Inspeção Geral das Finanças (IGF) considerou irregular o pagamento e pediu a devolução do montante.
Além disso, a IGF identificou irregularidades no pagamento de salários a Marisa Morais, conselheira jurídica do Presidente, recomendando a devolução de 2.259.480 escudos. O Presidente José Maria Neves garantiu que o valor já foi devolvido aos cofres do Estado. O caso gerou reações políticas e pedidos de fiscalização, incluindo um apelo ao Tribunal de Contas. A investigação está em andamento, com acusação formal já apresentada pelo Ministério Público.
Condenações
Em Novembro Tribunal da Comarca de Santa Catarina condenou Vitjay a 25 anos de prisão pelo homicídio de Artemisa Gomes Monteiro, de 22 anos. A jovem foi agredida com uma faca pelo companheiro em 24 de março, vindo a falecer no dia seguinte. O crime ocorreu após o casal retornar de uma visita à casa dos pais de Artemisa. O agressor foi detido após alguns dias foragido e aguardou julgamento em prisão preventiva. O caso gerou grande comoção e debates sobre violência de gênero.
No mesmo mês, um individuo de nome Enivaldo Gomes, foi condenado a 24 anos de prisão pelo homicídio de Pedro António Rodrigues, conhecido como “Pé Pipi”, de 113 anos. O crime ocorreu em 8 de maio, quando o centenário foi encontrado morto em sua residência. O suspeito, que aparentemente tinha problemas de saúde, esteve sozinho com a vítima na noite do homicídio. A Polícia Nacional prendeu Enivaldo após a descoberta do corpo. Pé Pipi era o homem mais velho de Cabo Verde, tendo vivido uma vida longa e cheia de descendentes.
Geremias S. Furtado
Publicado na Edição 904 do Jornal A Nação, de 26 de dezembro de 2024