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Crónica de umas estatísticas marteladas e de uma derrota eleitoral anunciada

Por: João Serra*

Em 1981, Gabriel Garcia Marquez (vulgo, Gabo) publicava uma das suas mais conhecidas obras literárias, intitulada “Crónica de uma Morte Anunciada”. A história verídica que serve de base a este romance pode ser resumida da seguinte maneira: vítima da denúncia falaciosa de uma mulher repudiada na noite de núpcias, o jovem Santiago Nasar foi condenado à morte pelos irmãos da sua hipotética amante, como forma de vingar publicamente a sua honra ultrajada e sob o olhar cúmplice ou impotente da população expetante de uma aldeia. 

É evidente que o objeto do presente artigo, diretamente, não tem nada a ver com o texto do grande escritor colombiano, preocupado, com a sua genial mestria, em reconstruir um universo possuído pela nostalgia, mágica e encantatória da infância e em contar histórias. Todavia, indiretamente, sim. Na verdade, o romance mostra-nos como, na vida, tudo aquilo que fazemos com manipulação ou ligeireza acaba tendo consequências graves, ou efeitos contrários aos pretendidos. 

E a opção do atual Governo em “martelar”, direta ou indiretamente dados, estatísticos oficiais relativos a aspetos fundamentais das condições de vida da população, é uma ligeireza que, muito provavelmente, terá contribuído para a humilhante derrota do partido da situação, nas últimas eleições autárquicas.

Caso contrário, não dá para entender como é que o partido de um Governo que propala até à exaustão que é, por assim dizer, o melhor do mundo em fazer crescer a economia, descer a inflação, reduzir o desemprego e a pobreza absoluta e eliminar a pobreza extrema, perde umas eleições numa dimensão histórica. Por outras palavras, tal partido teve o pior resultado autárquico de sempre, mesmo tendo, alegadamente, melhorado, como nunca antes, as condições de vida da população nos últimos 8 anos.

De facto, é muito raro e, eventualmente, um “study case”, não se ter bons resultados eleitorais quando, nos últimos 8 anos, se tem, supostamente, bons dados macroeconómicos e sociais, que fazem muitos países do mundo, inclusive desenvolvidos, morrer de inveja. Por exemplo, dados disponíveis relativamente ao ano de 2024 apontam para o seguinte panorama: i) no primeiro semestre, a economia cresceu 9,7% (BCV), ii) no mês de outubro, a inflação era de 1% (INE) e iii) no segundo trimestre, a taxa de desemprego foi de 8,8% (INE). Além disso, em 2023 a pobreza extrema caiu para 2,28% (INE).  

Nesse quadro, o péssimo resultado eleitoral obtido pelo partido no poder poderá, em parte, ser explicado com a inconsistência e a ilusão dela decorrente dos dados relativos ao PIB, à dívida pública e, sobretudo, à inflação e à pobreza, conforme já escrevi em vários artigos publicados neste semanário, dos quais recupero o essencial na parte que diz respeito ao poder de compra dos cabo-verdianos.

Limiares da pobreza absoluta e da pobreza extrema desatualizados e desajustados

Segundo estimativas divulgadas pelo INE, no mês de outubro pp., a pobreza absoluta terá passado de 35,5% em 2015 para 24,75% em 2023, o que representa uma redução de 10,75 pontos percentuais. Os dados do INE referem ainda que foi considerada como “linha de pobreza absoluta” o rendimento per capita anual no valor   de 95.908 ecv nas zonas urbanas e de 82.602 ecv nas zonas rurais. Esses valores são idênticos aos das linhas de pobreza de 2015, portanto não foram atualizados. 

Com efeito, em 2015, consideravam-se pobres aqueles que viviam em agregados familiares com consumo médio anual por pessoa abaixo do limiar da pobreza, fixado, no meio urbano, no valor de 95.461 ecv e, no meio rural, no valor de 81.710 ecv. Ora, os valores referentes às linhas de pobreza absoluta de 2023 tinham necessariamente que ser atualizados relativamente a 2015, devido à inflação média anual acumulada (IMA) de 2015 a 2023, superior a 16%, mas sobretudo à IMA acumulada do índice referente aos produtos alimentares não transformados e às bebidas não alcoólicas, superior a 25%.

Pelo que não se entende que, quase uma década depois, e com toda a deterioração do poder de compra entretanto ocorrida, o INE continua a considerar que, praticamente, os mesmos limites monetários definidos em 2015 – ou seja, 262,8 escudos diários (+80 centavos em 2023), no meio urbano, e 226,3 escudos diários (+2,3 escudos em 2023), no meio rural – servem de referência para que uma pessoa seja considerada pobre e, igualmente, receba certos apoios sociais. Note-se que, originalmente, alguém era considerado pobre quando os seus recursos são insuficientes para cobrir, sem sacrifício, as necessidades básicas alimentares e não alimentares. 

Já o limiar da pobreza extrema em 2023 foi estimado pelo INE em 2,15 dólares (PPC de 2017) por dia e por pessoa, segundo o limiar internacional estimado pelo Banco Mundial em 2017.  Tendo por base esse limiar, também não atualizado, o INE estima que a pobreza extrema foi reduzida para metade, passando de 4,56% em 2015 para 2,28% em 2023.

Porém, a melhor opção seria o próprio INE estimar o limiar atualizado da pobreza extrema, ou seja, o limiar de recursos a partir do qual um individuo é forçado a sacrificar parte das suas necessidades alimentares para cobrir as necessidades não alimentares, segundo a definição clássica de pobreza extrema.

IPC (Inflação), também desatualizado e desajustado 

Com o índice de janeiro de 2019, o INE iniciou a divulgação do Índice de Preço no Consumidor (IPC) com base em 2018, cujo indicador se baseia nos resultados do Inquérito às Despesas e Receitas das Famílias realizado em 2015 (IDRF2015).

Ora, um IPC mede a variação no custo de aquisição de um cabaz de bens e serviços representativo da estrutura do consumo. Tal implica ponderar os agregados de preços das diversas categorias de bens e serviços em devido tempo, de modo a refletir o seu peso nos orçamentos familiares. 

Normalmente, os ponderadores permanecem inalterados durante pelo menos 12 meses, devendo, no entanto, ser revistos num período de tempo nunca superior a cinco anos, conforme recomenda a OIT.

Como referido, o IPC em vigor em Cabo Verde baseia-se nos resultados do IDRF de 2015. Se até esta data (finais de 2024) ele não foi atualizado, significa que, tal qual fora constatado pelo FMI, já não reflete o padrão atual de consumo dos cabo-verdianos e o respetivo custo, padrão esse que, com toda a certeza, é diferente do de há quase uma década atrás. Talvez seja por causa disso que, frequentemente, Cabo Verde apresenta taxas de inflação inferiores às da Zona Euro, área geográfica da qual o país importa cerca de 70% do total das suas importações. Por outro, quase ninguém acredita nas nossas taxas de inflação, na medida em que praticamente todos reclamam dos contínuos aumentos generalizados de preços, o que contrasta com os valores de inflação, geralmente baixos, indicados pelo INE.  

Em suma:

A alta dos preços, mormente dos bens essenciais, não foi, nos últimos 8 anos, compensada com a atualização, na mesma proporção, dos rendimentos familiares (salários, pensões, prestações socias), apesar da narrativa falaciosa do Governo no sentido contrário. Isso provocou uma forte erosão do poder de compra das pessoas, particularmente das mais desfavorecidas. 

Por causa da carestia, sentia-se, no ar, o descontentamento generalizado das pessoas. Isso, aliado a outras razões, fez com que o sentido do resultado eleitoral estivesse previamente anunciado, tal qual a morte no romance de Gabo.

Já para o Governo, os dados estatísticos “martelados” poderão ter criado a falsa perceção de que é, conforme as suas próprias palavras, o “Governo mais social de que Cabo Verde já teve” e, em decorrência, teria, merecidamente, a confiança da maioria dos cabo-verdianos, nas últimas eleições.

E, como se viu, daqueles que votaram, apenas 31,8% fizeram-no na situação, enquanto que 68,2% optaram pela oposição.

Praia, 06 de dezembro de 2024

*Doutorado em Economia

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