Por: Germano Almeida
“…nestes tempos não tem descanso a padiola mortuária da regedoria./Levou primeiro o corpo mirrado da…” (Jorge Barbosa, in Casebre)
Desde o dia 01 de dezembro que os analistas políticos, e também outras gentes ligadas ao poder ou com interesses partidários, não têm tido descanso na busca e definição das razões que levaram à estrondosa, ainda que não inesperada, derrota do MpD nas eleições autárquicas.
E nem é caso para se dizer que cada cabeça tem a sua sentença, porque as inúmeras sentenças que têm aparecido, mais ou menos concordam na conclusão de que sobretudo o MpD perdeu as eleições, muito mais que tenha sido o PAICV a ganhá-las. É que não estava escrito nas estrelas não senhor, estava escrito e escarrapachado no dia a dia da nossa sociedade que, ainda que calada, acompanha o desprezo com que vem sendo tratada.
É por isso que há realmente diversas e diferentes razões para essa derrota, todas elas igualmente válidas. Desde a forma inqualificável como se desleixou a ligação entre as ilhas, à arrogância dos membros do Governo no trato dos considerados oposição, seja partidária ou apenas pessoal, passando pela ostentação desenfreada de que os do Governo tem vindo a dar evidentes mostras, sem já referir o não respeito pelas leis que não lhes merecem agrado e o desprezo pelo destino da população em geral, esquecidos como vivem de que são governantes de uma terra onde uma boa parte do seu povo enfrenta dificuldades diárias e concretas para levar a sua panela ao lume.
Os governantes cabo-verdianos têm-se deixado enganar pela aparente passividade do nosso povo. É verdade que não somos uma sociedade civil ativa: uma ou outra manifestação pública é sempre episódica e breve. Porém, temos essa arma perigosa que é a memória, e isso tem lixado os políticos. O povo está calado, está calado, e de repente, pumba!
Por estes dias os perdedores de 01 de dezembro estão a queixar-se dos eleitores do Maio, do Porto Novo, da Brava e de S. Lourenço dos Órgãos, mas eu lembro-me do janeiro de 1991. Por aqueles dias nenhum movimento da sociedade fazia admitir que cerca de 80% dos eleitores estavam contra o partido no poder e ainda que as sondagens mostrassem isso mesmo, era óbvio que acabavam merecendo pouco ou mesmo nenhum crédito. E afinal…
O insuspeito Ki-Zerbo, na sua História da África Negra, refere algures que quando os europeus decidiram proceder à importação de negros em larga escala, primeiro encarregaram um grupo de estudiosos de irem examinar in loco que povos africanos seriam mais facilmente escravizáveis. Ao fim de algum estudo, terão concluído que seriam os sedentários que viviam da agricultura; os povos guerreiros nómadas eram de difícil domesticação. E realmente começaram por aqueles.
Igualmente os EUA, ainda em plena segunda guerra com o Japão, concluíram que seria uma questão de tempo vencerem os japoneses. E também sabiam que no pós-guerra necessariamente os dois povos teriam que conviver em harmonia. E como tinham consciência de muito pouco conhecerem a cultura nipónica, encarregaram um avultado grupo de cientistas sociais que, ainda em plena guerra, se deslocou ao Japão e a final produziu diversos estudos sobre os diferentes aspetos da cultura japonesa e que viriam a ser publicados em livro sob o título de O Crisântemo e a Espada. Lê-se ainda hoje com prazer e proveito.
E agora, acho que vale a pena perguntar, qual e quantos dos nossos políticos se têm preocupado em minimamente conhecer o seu povo? Diria que poucos, porque o próprio presidente da República não se teria deixado enredar nas caricatas e ridículas cenas à volta da “primeira dama” se tivesse tido o cuidado de “ver” o seu povo para além das aparências.
Alguém saberia responder em que medida as maldades que foram cometidas pelo Poder contra o deputado Amadeu Oliveira terão contribuído para essa clamorosa derrota eleitoral a que assistimos? É que não é pelo facto de as pessoas não darem públicas mostras da sua repulsa a essa perseguição atroz ao deputado que deixam de a sentir como inadmissível abuso de autoridade. E na primeira oportunidade, revelam a sua aversão àqueles que acusam de serem os seus responsáveis. E a questão é que esse “aqueles” está longe de ficar circunscrito a certos juízes de certos tribunais. Pelo contrário, com ou sem razão, esse “aqueles” estende-se a toda a corporação judicial, apanhando na sua ampla rede até aqueles magistrados reconhecidamente impolutos.
Infelizmente, não houve nem há coragem da parte do poder para agir contra os magistrados prevaricadores. Por exemplo, o desembargador Simão Santos cometeu um evidente crime de prevaricação ao legalizar a prisão de um deputado ainda em pleno exercício das suas funções. Foi um crime público, cometido por quem tinha especial dever de não o praticar. Por diversas vezes já o denunciei na imprensa escrita. Sempre inutilmente, apenas o silêncio dos surdos como resposta.
O deputado Amadeu Oliveira tem legalmente direito a um computador portátil para seu uso na cadeia. Teve um, mas foi-lhe abusivamente retirado. Já pediu diversas vezes a sua restituição. Eu mesmo denunciei esse abuso de poder na imprensa escrita. Sempre inutilmente, apenas o silêncio como resposta.
Ora engana-se quem pensa que esses abusos de autoridade ficam sempre impunes. É que o povo conhece os abusos e os abusadores e, mesmo sem conhecer diretamente a lei, sabe que são abusos de quem abusa do poder que lhe é dado.
E assim, a pouco e pouco, de desencanto em desencanto, o respeito para aqueles que detêm o poder vai-se resvalando pelo cano abaixo. E neste momento pergunta-se, que crédito merece um tribunal que condena um homem a sete anos de prisão pelo único crime de ele ser deputado? Sim, porque ser deputado foi o único “crime” encontrado em Amadeu Oliveira para ser acusado de atentado contra o estado de direito democrático e por isso condenado.
Outro exemplo: Que crédito merece um tribunal constitucional que em 2017 diz pela pena dos seus “venerandos” juízes que “um costume parlamentar contra a Constituição” não pode “prevalecer face a um sentido claro da Constituição”, e apenas cinco anos depois diz que afinal um simples ”uso”, a que dá o nome de “costume” é suficiente para prevalecer sobre o que expressamente diz a Constituição?
E fica em maior descrédito quando se sabe que os juízes tiveram que engolir esses sapos jurídicos apenas para salvar a honra de um Parlamento que ilegal e levianamente tinha entregue um deputado ao poder judicial.
O nosso povo tem medo de falar. Tem demasiadas dependências do Estado e dos fascistas que em cada momento tomam o poder. E nem sequer só o povo. Quadros com responsabilidade social também mostram ter medo do poder. Ainda há dias um jornalista telefonou-me, queria fazer comigo uma entrevista sobre o caso do deputado Amadeu Oliveira. E mais: queria a seguir ir à cadeia entrevistar o preso. Marcamos o dia da entrevista. Mas a seguir telefonou-me a desmarcar, disse que tinha sido ameaçado, e como tem responsabilidades familiares… Porém, como o próprio povo diz, ele “oserva”. E sem dúvida que tem “oservado” os desmandos que se têm verificado neste país. Se começarmos pela Justiça, podemos passar pelo Tribunal Constitucional, pelo Governo, pela Assembleia Nacional, todos em tenebroso conluio, apostados em garantir a perpetuação no poder. Esperemos, pois, que a padiola da regedoria continue funcionando para bem do nosso país.