Nas eleições autárquicas do passado domingo,1 de Dezembro, a abstenção atingiu, até esta quarta-feira, 49,8%, mas tendo ultrapassado os 50% em municípios como Praia, Santa Catarina de Santiago e até São Vicente, quando faltavam apurar cinco mesas a nível nacional. Dos 350.617 mil eleitores inscritos, apenas 176.032 votaram. A culpa, dizem várias vozes, é da emigração. Uma teoria que o sociólogo Nardi Sousa descarta, argumentando que a mesma se deve à “imoralidade” político-partidária que se vive no país.
Na sua óptica, o que está por detrás desta abstenção elevada, de forma geral?
A abstenção tem sido elevada devido a um modelo de democracia representativa que parece estar meio moribundo, em que a prioridade parece ser organizar as eleições de quatro em quatro anos para as autárquicas e de cinco em cinco anos para as Legislativas e Presidenciais, em que o ponto alto do cidadão é votar, muitas vezes sem o conhecimento das plataformas/projectos, sofrendo tentativas de manipulação, compra de consciência com dinheiro vivo e/ou produtos alimentares e de construção civil, em conluio com alguns comerciantes que aproveitam essa praxis nefasta para a sociedade como um todo.
Podemos dizer que é um modelo político desmotivador?
Sim, dado que ilude os cidadãos com promessas, e passados os quatro ou cinco anos de mandato pouca coisa acontece para a melhoria de vida comunitária, a não ser algumas obras e política de betão armado. É uma democracia que acontece entre as quatro paredes, não no espaço público; é feita nos gabinetes, entre amigos, empresários, com negociatas, muitas vezes suportadas pela venda de terrenos públicos, e também de privados, com casos de enriquecimento fácil, uma situação de baixa moralidade, insustentável.
A população sabe muito bem o que está a passar. Todos vêem, mas ficam calados. E por isso muitos já não acreditam mais neste sistema. Só um modelo de sociedade forte com base numa economia moral e muita transparência e virado para o interesse coletivo poderá recriar esta vontade de participar. É deveras preocupante. Está-se a cair no descrédito político e nenhum país poderá sobreviver à imoralidade político-partidária.
Há quem atribua esta abstenção elevada à emigração jovem. Concorda?
A emigração jovem é uma consequência e não uma causa da situação nacional. Os jovens sentem-se órfãos no próprio concelho, depois no próprio país, veem que a sua cidadania é adiada (emprego, rendimento, constituição de uma família, aquisição de habitação, serviço de saúde de qualidade) e estão dispostos a deixar a imoralidade coletiva para irem a alguns países onde trabalham, têm rendimento, serviços básicos e consumo. Os jovens fogem da dependência forçada e, muitas vezes, promíscua para uma ideia de liberdade, o que não quer dizer que encontram a liberdade lá fora, mas pelo menos tentam e conseguem o mínimo com dignidade. Lá fora não são obrigados a prostituir-se ‘física’ e mentalmente. É evidente que com a saída dos jovens a abstenção pode aumentar. Mas, a consequência dessa emigração é mais do que abstenção, é um problema mais sério a médio e longo prazo.
Mas, especialmente em Santiago, em vários municípios há uma grande falta de mão de obra em vários sectores, devido à emigração. Isso pode ser um indicativo de a abstenção estar ligada à emigração ou não?
Como disse a emigração não é causa, imediata, da abstenção, mas poderá vir a ser também. Ela tem mais a ver com o facto de os jovens não acreditarem mais neste modelo de sociedade e neste sistema político, que tem beneficiado uma minoria, seus familiares e amigos e tem ‘destruído’ a confiança coletiva, o acreditar num país que deveria defender até à ‘morte’ alguns princípios constitucionais sagrados que os pseudo-democratas dizem que defendem, mas que não defendem de facto, porque não acreditam nestes princípios: legalidade, justiça social, igualdade, pluralismo de ideias e separação de poderes. Temos mais verbo que crenças numa verdadeira democracia.
A pergunta está longe de ser nova, mas o que é que os partidos e políticos podem fazer para contrariar a abstenção e levar as pessoas às urnas?
Pôr o interesse do país acima dos interesses partidários e privados. Apesar de o país ter dado um salto em termos de crescimento e algum desenvolvimento, a corrupção e má governação (central e local) já fez muito mal ao próprio país e aos jovens. Os partidos têm de reler os princípios fundacionais dos mesmos, os valores nos estatutos, quebrar com a amnésia sofrida nos últimos 25 anos. Muito mal já se fez ao país e aos jovens. Muitas ilegalidades, muita corrupção. E isso não é atractivo, muito pelo contrário, é desmotivador.
Acredita que nas legislativas de 2026, a abstenção vai-se manter elevada, ou não?
Não creio que vá ser muito diferente. Mas, como um partido vai querer vencer as eleições e o outro não vai querer abandonar o poder, apesar do forte desgaste, poderão querer mobilizar as bases de forma intensa. A questão será convencer as populações, que já pouco acreditam em mudanças repentinas. O grande mal é que os interesses nacionais parecem cair para o segundo plano, e isto é triste e preocupante.
Tem de haver uma mudança profunda…
Sem dúvida. Uma coisa é certa, ou os partidos dão sinais de mudanças e deixam de jogos de interesses de amigos e familiares e comecem a atrair gente capaz com ideias e projetos ou poderão surgir, talvez não ainda em 2026, alternativas sólidas que vão mexer com o eleitorado e o país.
Tudo é um acto de decisão, como diria o famoso geógrafo brasileiro Milton Santos. Parece que os partidos ainda não decidiram, ou não têm certeza, se querem ser democratas a sério e pôr em prática os cinco princípios constitucionais referidos, que tanta alegria poderia nos dar como um coletivo que se quer soberano e autónomo.
Publicado na Edição 901 do Jornal A Nação, de 05 de Dezembro de 2024