Vieram da Brava, Fogo, Boa Vista e São Nicolau para o Havai, arquipélago isolado do Pacífico, em 1820, como tripulantes dos baleeiros de Nantucket, da costa leste dos Estados Unidos. Casaram com havaianas e estabeleceram-se na agricultura, nos serviços e gerindo das casas comerciais de maior prestígio, sobretudo na ilha de O’ahu. Foram os primeiros a chegar ao Havai. Mas da cultura crioula, já pouco ou nada resta. O tempo encarregou-se de a diluir na cultura e nas tradições havaianas.
Das comunidades cabo-verdianas mais isoladas e mais longínquas da terra- -mãe, aquela que se estabeleceu no Havaí, em meados do século XIX, ganha o prémio das mais antigas e da mais remota de todas. E também será daquelas que mais depressa se misturaram e se assimilaram com a cultura e a população local. De tal modo que hoje os descendentes dos cabo-verdianos dificilmente se distinguem dos restantes havaianos, tendo a sua própria herança cultural sido diluída nessa sociedade das ilhas do Pacífico.
Estas constituem hoje um Estado norte-americano (desde 1954) e compreendem oito ilhas principais: Ni’ihau, Kaua’i, O’ahu (onde se encontra a capital, Honolulu), Moloka’i, Lãna’i, Kaho’olawe e Hawai, de onde vem o nome do arquipélago. Na verdade, são cerca de 137 ilhas e ilhéus, situados a 3200 quilómetros a sudoeste da Califórnia, no Oceano Pacífico. O que se pode afirmar é que estes descendentes crioulos serão, provavelmente, a mais invisível de todas as minorias que constituem a sociedade havaiana.
E o mais certo é que nem sequer tenham a noção de que as suas raízes estão também noutras ilhas, num arquipélago a milhares de quilómetros de distância, no Oceano Atlântico.
Contrariamente aos milhares de portugueses que emigraram da ilha da Madeira ou dos Açores para trabalhar nas plantações de cana destas ilhas do Pacífico, o nosso contributo para a cultura havaiana é hoje invisível. E também por outra razão: à época, os cabo-verdianos chegavam ao Havai como portugueses e não como um grupo étnico separado. O que levou a serem considerados como parte desse mesmo grupo de língua e nacionalidade lusa.
Do mar para a terra, para noivas havaianas
Concorre também o facto de a grande maioria dos cabo-verdianos terem chegado às ilhas solteiros, praticamente todos marinheiros dos baleeiros americanos. O que facilitaria muito os casamentos mistos e sua diluição cultural. E, de acordo com uma análise dos registos de casamentos, nenhum outro grupo se misturou antes deles ou mesmo depois como os marinheiros cabo-verdianos, quando descobriram as mulheres havaianas e a sua hospitalidade. A indústria baleeira americana chegou aos mares do Havai por volta de 1819.
E logo no ano seguinte, as ilhas já eram o principal porto de abrigo e de apoio para os barcos que sulcavam estas rotas. E as tripulações de baleeiros, como Sunbeam, Wanderer, Daisy ou Charles W. Morgan, já depois de 1830, eram compostas na maioria por marinheiros não americanos. Por esta altura, um artigo no jornal Honolulu Star Bulletin referia que 70 por cento dos marinheiros de baleeiros americanos eram negros. E os cabo-verdianos, conhecidos por bons arpoeiros, constituíam parte significativa desse percentagem.
Outro aspecto que marca a diferença entre a comunidade cabo-verdiana da madeirense ou açoriana e das outras populações que acabaram emigrando para o Havai, é que os marinheiros crioulos terão sido os primeiros a ‘descobrir’ as ilhas paradisíacas do Pacífico, já em 1820. Portanto, mais de cinquenta anos antes do primeiro contingente de madeirenses e açorianos, os cabo-verdianos já lá estavam e tinham chegado como tripulação dos baleeiros de Nantucket, ao porto de Honolulu. E logo vários se estabeleceram no Havai, adoptando nomes havaianos, casando com mulheres havaianas e adquirindo seus hábitos e costumes.
Como se disse antes, até o censo de 1900, os cabo-verdianos eram registados como sendo portugueses. E a sua presença ainda hoje pode ser encontrada nos registos desta época, referenciados como “black portuguese”, nomeadamente como residentes em Oahu. E se recuarmos aos primeiros tempos da sua presença, encontramos a referência, nestes mesmos arquivos, de quatro “black cap-verdeans” que terão fundado uma banda musical para o então Rei Kamehameha (bem antes da anexação americana). O eclipse das informações sobre a comunidade cabo-verdiana e a sua importância no Havai, assim como da sua população, começa em 1870, com o início da emigração dos portugueses da Madeira e dos Açores para trabalhar nos campos de cana destas ilhas.
E ao contrário dos cabo-verdianos, os açorianos e os madeirenses chegaram com as suas mulheres e filhos. E os solteiros continuaram a casar dentro da sua comunidade portuguesa, mantendo assim mais viva a sua língua, gastronomia, apelidos, religião católica e tradições.
Cabo-verdianos e os ‘primos’ portugueses
Curioso é que, talvez graças à distância da sua terra- -mãe e à existência de laços linguísticos e culturais que os uniam aos cabo-verdianos, os portugueses do Havai e seus descendentes reconheciam esta comunidade cabo-verdiana como uma espécie de ‘primos’. Registada foi a troca azeda de argumentos entre editorialistas de dois jornais locais de língua portuguesa, por volta de 1911.
O primeiro, O Luso, assinado por um J.S. Ramos, ataca o oponente, do jornal rival, O Popular, referindo-se aos seus “argumentos loucos d’um discípulo ordinário de Esculapio e à rhetorica [sic] immunda d’um bandido padreco de côr e semblante de Caboverdeano indígena”.
E a resposta veio do cônsul de Portugal no território: “A colónia portuguesa das ilhas de Cabo Verde n’este Território acaba de ser ultrajada pelo [sic] os rabiscadores do Luso do sábado passado. Querendo aquelles lorpas ridicularisar um dos collaboradores d’este jornal – diz – ‘e à rhetorica [sic] immunda d’um bandido padreco de côr e semblante de Caboverdeano indígena’.
“Ora esta expressão é querer deprimir o honrado e industrioso filho das ilhas de Cabo Verde; quando nós todos sabemos que a colónia caboverdeana n’este Território apezar de pequena, é a mais educada instruída e industrial das colónias portuguezas aqui estabelecidas em proporção ao seu tamanho. Senão vejamos alguns que nos occorre n’este momento: Os snrs. Centeios da rua Luzo, que são os propietários da maior mercearia portugueza n’esta cidade, bemquistos e estimados pelo commércio estrangeiro e por todos os portuguezes.
“O snr. M. J. Pereira, de Waimea, Kauai, o maior cultivador portuguez de canna d’assucar n’este Território, activo e emphehendedor [sic], outros que são proprietários de leitarias como o snr. Pires, do Kalihi, outros empregados em diversos ramos de negócios, etc., etc. fallando todos elles bom portuguez lendo- -o e escrevendo-o. A côr própria do caboverdeano é pois um signal de respeito e honradez, mais nobre e mais activa d’aquelle quem rabisca tal periódico que provavelmente tem a cara escura devido à sua sem vergonha, de caloteiro e trapaceiro que são as virtudes de quem assim procede, outros ainda parecem- -se mais com chinos que com portuguezes. Aquelles patrícios que lhes agradeçam taes amabilidades.”
E na edição seguinte, o articulista Godofredo Ferreira Affonso assina um pedido de desculpas, publicado no jornal, que vale a pena recordar: “A origem da oposição – o pasquim dos malcontentes indecentes da expressão – quer fazer capital com respeito á applicação e emprego que fizemos na semana finda relativo aos Cabo-Verdeanos.
Ê verdade que na expressão d›então, insultamos os nossos patrícios de Cabo Verde. Foi um lapso mental e por elle pedimos perdão á quelles que comprehendem a situação e ainda julgam que foram insultados.
Foi um insulto verdadeiro, que jamais commetteremos, comparar os nossos bons Cabo-Verdeanos com gente da classe do Dr. Pulha e do Padreco Bandido.
Os Cabo-Verdeanos são mil vezes superiores em caracter, educação e moral aos Judas Iscariotas Pulha e Padreco”.
Joaquim Arena
Leia na íntegra na Edição 900 do Jornal A Nação, de 28 de Novembro de 2024