Por: João Serra*
Enquanto a maior potência económica, militar e política do mundo, com interesses globais, é inegável a enorme influência que os Estados Unidos da América (EUA) exercem sobre a economia global, independentemente de que partido exerce o mandato, seja ele democrata, seja ele republicano, embora com nuances bem distintas. Na verdade, o PIB estadunidense representa cerca de um quarto da economia global, e o valor do seu orçamento militar é praticamente igual ao somatório dos gastos militares de todos os outros países em conjunto, o que dá aos EUA um alcance sem comparação no cenário internacional.
Assim, tendo ganho Donald Trump, do Partido Republicano, e tendo esse partido também assegurado uma maioria nas duas Câmaras do Congresso dos EUA (Câmara dos Deputados e Senado), o Presidente eleito parece ter a vida facilitada para implementar a sua polémica agenda política populista. Se Trump colocar em prática apenas uma fração das suas promessas eleitorais radicais – tarifas comerciais mais altas, deportação em massa de imigrantes ilegais, desregulamentação e mais exigências de financiamento aos parceiros estadunidenses da aliança militar (NATO) –, os impactos da pressão sobre o crescimento económico, as finanças públicas, a inflação e as taxas de juro serão sentidos em todos os “cantos do mundo”.
No presente artigo, procuramos analisar o que significa a política económica de Trump para a economia global e, em especial para a economia da Europa – o principal parceiro económico e de desenvolvimento de Cabo Verde –, bem assim, as suas consequências para a nossa economia. Abordaremos os impactos do reforço do protecionismo e da eventual apreciação do dólar dos EUA (doravante, apenas dólar) face ao euro, moeda à qual o nosso escudo (ECV) está ancorado.
I – Impacto do reforço do protecionismo na economia da Europa e de Cabo Verde
A vitória de Donald Trump terá consequências económicas para o resto do mundo, que poderão ser profundas a médio e longo prazo. O Presidente eleito prometeu reduzir ainda mais os impostos e a regulamentação e, simultaneamente, aumentar as tarifas e restringir a imigração. Ora, a combinação de tudo isso poderá ter efeitos inflacionistas significativos para a economia dos EUA e fortes efeitos recessivos para a economia europeia, mormente da Zona Euro (ZE).
Desde a primeira corrida à Casa Branca que a imposição de tarifas é uma das bandeiras de Trump. Assim, não é de estranhar que um dos principais pilares da sua política económica e provavelmente o que terá o maior impacto global, são as tarifas de importação, incluindo uma tarifa universal de 10% sobre as importações de todos os países estrangeiros e uma tarifa de 60% sobre as importações da China. Tarifas sobre produtos e disputas comerciais entre grandes economias parecem iminentes, já a partir de janeiro de 2025.
A acontecer mais uma vez, a imposição de tarifas alfandegárias terá um impacto direto quer no comércio internacional, quer na economia, na medida em que tarifas mais altas sobre as exportações reduzem a procura externa, enquanto que sobre as importações aumentam os custos internos de produção. Ora, as tarifas inibem o comércio global, reduzem o crescimento dos exportadores e pesam sobre as finanças públicas de todas as partes envolvidas. Consequentemente, o comércio mundial fica abalado, com o risco de turbulências comerciais, especialmente entre os EUA, a União Europeia e a China.
A visão nacionalista de Trump sobre a economia pode gerar conflitos comerciais, o que pode afetar a economia global e criar instabilidade no mercado financeiro. E isso ocorre precisamente num momento em que o FMI já tinha caraterizado o crescimento global como fraco, com a maioria das nações tendo um desempenho económico anémico. Pelo que é provável que um novo impacto no comércio global represente um risco de queda na projeção do FMI para o crescimento da economia mundial em 2025.
Com efeito, no último “World Economic Outlook”, publicado no mês de outubro pp., o FMI estimou que se os EUA, a ZE e a China impusessem tarifas de 10% sobre os fluxos comerciais entre as três regiões – e os estadunidenses sobre as restantes regiões também –, o impacto abrangeria cerca de um quarto do comércio mundial de mercadorias e afetaria cerca de 6% do PIB mundial.
“Se os aumentos de tarifas se materializarem poderão desencadear retaliações por parte de outras economias, levando a uma guerra comercial que, no pior dos cenários, poderá levar os EUA a uma recessão”, assinalam economistas da Allianz GI, num comentário citado pelo jornal português online “ECO”, edição de 07 de novembro pp. Saliente-se que o FMI, por exemplo, estimara no já referido “World Economic Outlook” que o PIB estadunidenses pode, neste cenário, contrair-se 0,4% em 2025 e em 0,6% em 2026.
Para a Europa, com a vitória de Trump, o “pior pesadelo económico tornou-se realidade”. Tal afirmação consta de uma nota de “research” dos economistas do banco ING, também citada pelo jornal “ECO”. E, particularmente, para a ZE, uma nova guerra comercial iminente poderá empurrar a sua economia de um crescimento lento para uma recessão total, consideram os analistas do ING.
Já os analistas da Goldman Sachs projetam que as mudanças de política nos EUA poderão ter um “impacto de 0,5% no PIB real na Área do Euro, variando entre 0,6% na Alemanha e 0,3% em Itália, com um impacto moderado de 0,4% no Reino Unido, lê-se ainda no jornal “ECO”.
Refira-se que o FMI reviu, em outubro pp., em baixa o crescimento da ZE para 0,8% este ano e 1,2% em 2025.
Ora, um crescimento lento ou uma recessão parcial ou total na economia europeia, em especial na ZE, teria certamente impactos significativos na economia cabo-verdiana. Com efeito, Europa continua a ser o principal parceiro económico e de desenvolvimento de Cabo Verde: (i) as importações da Europa representam cerca de 70% do total das importações e as exportações para a Europa representam cerca de 95% do total das exportações de bens e serviços; (ii) os países europeus são os principais financiadores do processo de desenvolvimento de Cabo Verde; e (iii) as remessas dos emigrantes provêm, sobretudo, dos países europeus (fonte: BCV e Eurostat).
As previsões do Governo de Cabo Verde, constantes da proposta de Orçamento do Estado 2025, apontam para uma taxa de crescimento do PIB de 5,3%, no pico, e para uma taxa de inflação a rondar 1,7%. Entretanto, a incerteza geopolítica e política existente aquando da elaboração desse cenário macroeconómico terá aumentado com a vitória republicana nos EUA, caraterizando-se, agora, por uma deterioração das perspetivas de crescimento da atividade económica e, possivelmente, por uma inversão da tendência de desaceleração dos preços nos principais parceiros económicos do país. Pelo que, face ao aumento dos riscos potenciais existentes e do risco de eventos imprevisíveis, não se pode dizer, com probabilidade razoável, se se tratam de metas realistas, ou não.
Seja como for, os riscos do cenário macroeconómico do Governo pendem de forma descendente para o crescimento da atividade económica e de forma ascendente quanto à inflação para 2025. Pois, é preciso ter em consideração o facto de Cabo Verde, como pequena economia aberta, estar exposta às consequências económicas e sociais dos efeitos adversos da inflação alta e do crescimento baixo das economias dos seus principais parceiros comerciais.
II- Impacto da eventual apreciação do dólar e depreciação do euro na economia da Zona Euro e de Cabo Verde
No essencial, são os seguintes dois conjuntos de fatores que poderão determinar a apreciação do dólar relativamente ao euro, no novo mandato de Trump: (i) a redução de impostos e a expetável política orçamental expansionista e (ii) a política comercial protecionista monetária e as medidas para controlar a imigração.
Na verdade, a promessa eleitoral de redução dos impostos e a expetável política orçamental expansionista geram expectativas de alta nos juros no novo mandato de Trump. Tal situação, associada à segurança nos retornos, torna os ativos estadunidenses mais atrativos por comparação com os dos demais países. Isso faz com que haja mais entrada de dólar nos EUA, o que fortalecerá ainda mais a moeda estadunidense face ao euro. Outrossim, segundo escreveu o economista e vencedor do Nobel de Economia de 2001, Joseph E. Stiglitz, “os défices crescentes resultantes de despesas que não aumentam a produtividade agravariam ainda mais as expetativas de inflação, prejudicariam o desempenho económico e acentuariam as desigualdades.” (Retirado de um artigo publicado no “Project Syndicate”, no dia 03 de setembro de 2024)
Por outro, a aplicação de taxas aduaneiras mais elevadas nos produtos importados também tem efeitos nas taxas de juro nos EUA, uma vez que as taxas são repassadas para os preços finais, gerando inflação.
Outro fator que tenderia a aumentar a inflação é a perspetiva de deportações de milhões de migrantes ilegais. Segundo analistas, menos imigração deverá exacerbar a escassez de mão-de-obra, particularmente em setores fortemente dependentes de trabalhadores estrangeiros, como a agricultura e construção. E a falta de pessoas para trabalhar, por sua vez, poderia conduzir ao reaparecimento de subidas de salários que alimentariam mais as pressões inflacionistas.
Nesse quadro, o lema “América Primeiro” de Trump, consubstanciado na subida de impostos, na política orçamental expansionista, no aumento de tarifas nas importações e na deportação de forma massiva de imigrantes, poderá provocar fortes pressões inflacionistas (subida generalizada de preços), bem assim, efeitos desaceleradores sobre o ritmo da atividade económica.
Essa natural revisão nas políticas económicas poderá colocar pressão adicional sobre a política monetária, forçando o Fed (“Federal Reserve”, Banco Central dos EUA) a agir com uma política monetária mais rígida porque muitas dessas políticas têm potencial para impulsionar a inflação.
E com a inflação a subir e o Fed forçado a aumentar as taxas de juro, a economia enfrentará uma tripla adversidade: crescimento mais lento, inflação em alta e maior desemprego.
Nesse sentido, a perspetiva é a apreciação do dólar face ao euro, prejudicando a economia da Área do Euro. Por exemplo, segundo o “ECO”, a Goldman Sachs prevê que o euro perca até 10% do valor face ao dólar, caso seja posto em prática apenas o plano de Trump para aplicar taxas alfandegárias aos produtos importados.
Escrevi vários textos sobre o regime cambial existente em Cabo Verde. Num desses textos, publicado na edição deste jornal de 26 de janeiro, debrucei-me sobre os impactos da depreciação do euro face ao dólar no contexto do regime cambial de paridade fixo.
Recupero, aqui, algumas ideias-chave desse texto, na parte que interessa para o escopo do presente artigo.
Em 1998, foi assinado o Acordo de Cooperação Cambial entre Cabo Verde e Portugal, ficando o ECV ligado à moeda portuguesa por uma relação de paridade fixa, o que significa que Cabo Verde passou a dispor de um regime de câmbio fixo unilateral.
Ora, se o regime de câmbio fixo tem como principal vantagem o controlo da inflação (dado que evita o efeito “pass-through”), bem como a previsibilidade nos negócios e no retorno do investimento estrangeiro, tem também as suas desvantagens. Estas fazem-se sentir, mormente, em períodos de grandes dificuldades económicas e, para o caso concreto de Cabo Verde, também quando há uma depreciação da moeda de ancoragem face às principais moedas internacionais.
Na verdade, com a depreciação da moeda única europeia são necessários mais euros e, por força do regime de “peg” fixo, também mais ECV para comprar produtos importados e pagar o reembolso da dívida externa em dólar.
É o que aconteceu, por exemplo, em 2022, com a depreciação do euro face ao dólar, impactando, ascendentemente, os valores despendidos, em ECV, com as importações de bens e serviços e o pagamento do serviço da dívida externa, além do contravalor em ECV do “stock” da própria dívida pública em dólar. Tendo, nesse ano, o dólar apreciado, em termos acumulados, cerca de 29% em relação ao euro, pode estimar-se, do ponto de vista meramente teórico, que o contravalor do adicional despendido em ECV para as importações e o pagamento do serviço da dívida externa em dólar aproxima-se dessa percentagem. Não dispondo de dados, estimo que foram, certamente, largas centenas de milhões de escudos que Cabo Verde teve que gastar a mais para acomodar as consequências do dólar mais caro.
E com o dólar a apreciar-se em relação ao euro, as importações dos países da moeda única europeia, bem como daqueles que têm a sua moeda nacional ancorada ao euro – como é o caso de Cabo Verde – ficam mais caras. Isso significa que será preciso gastar mais euros e mais ECV para comprar um determinado produto e pagar em dólar.
Saliente-se que, segundo o Eurostat, quase metade dos produtos importados na ZE é faturada em dólar, contra 40% comprados em euros. Já para Cabo Verde, estimo que a relação entre os produtos e serviços importados em dólar e o total das importações de bens e serviços não ultrapassará o intervalo de 20% a 25%, o que, mesmo assim, não deixará de constituir, em termos absolutos, valores relativamente avultados.
A depreciação do euro face ao dólar afeta diretamente o poder de compra do euro e, por arrastamento, do ECV. Desde logo, porque o barril de petróleo, que é essencial para produzir gasóleo e gasolina, é negociado em dólares. E o efeito de “bola de neve” daí resultante pode afetar toda a economia. Na prática, se os combustíveis sobem, aumentam os custos com os transportes e a indústria, refletindo-se, posteriormente, em toda a cadeia de consumo.
De igual modo, o trigo, a partir do qual se produz a farinha usada no pão, e outras matérias-primas são também negociados em dólares. Consequentemente, com a depreciação do euro, importar estes produtos fica mais caro para os países da ZE e, também, para Cabo Verde, o que se reflete, sempre, no preço a cobrar aos consumidores.
Além disso, para Cabo Verde, a depreciação do euro face ao dólar aumenta o custo do reembolso da dívida pública externa, para além de impactar o contravalor em moeda nacional do próprio “stock” de dívida externa contraída em dólar. É preciso ter-se em consideração que, do total da dívida externa do país (cerca de 203 mil milhões de escudos em 2023), mais de metade foi contraída junto de credores multilaterais, cerca de um quarto junto de credores comerciais e a parte restante junto de credores bilaterais, o que nos leva a assumir que o dólar tem direta ou indiretamente um peso relativamente acentuado, tanto na sua composição como, sobretudo, no pagamento do respetivo serviço (amortização e juros).
Assim, caso venha a confirmar-se a depreciação do euro face ao dólar, a economia cabo-verdiana, necessariamente, também sofrerá.
Praia, de 23 de novembro de 2024
*Doutorado em Economia