Todos os bens móveis e imóveis (terrenos) pertencentes à empresa macaense de David Chow, no ilhéu de Santa Maria e na praia da Gamboa, foram transferidos a favor do Estado de Cabo Verde, que reverteu assim a concessão da Macau Legend Developement, devido à “violação” reiterada as obrigações previstas. O Governo agora, que tudo indica, está à procura de novos investidores.
A “reversão” publicada esta semana no Boletim Oficial (BO) não é surpresa para ninguém. Era até esperada, a qualquer momento, tendo em conta o abandono da obra e a pressão da sociedade cabo-verdiana para devolver aquele espaço público privilegiado da orla marítima à população. Por diversas vezes, o assunto foi tratado pelo A NAÇÃO e sempre que se pronunciaram sobre o assunto os responsáveis políticos e gestores da Cabo Verde Investiments fizeram-no no sentido de tapar o sol com a peneira.
Este “volte face” que põe fim às ligações contratuais entre Estado e a MDL, empresa outrora de David Chow, surge passado pouco mais de um ano depois de Li Chu Kwan, novo presidente e director executivo da empresa ter anunciado a 4 de Outubro de 2023, durante uma entrevista a um canal de televisão de Hong Kong, a TVB, que a operadora de jogo decidiu abandonar o projecto da construção de um hotel-casino no ilhéu de Santa Maria, na Praia, também conhecido por complexo Djeu.
Agora, aquilo que sempre foi visto como muitos como um projecto megalómano e que muito dificilmente iria ver a luz do dia, especialmente quando David Chow tentou abrir um banco em Cabo Verde para dar andamento aos negócios e não conseguiu, conhece este novo capítulo, por incumprimento “reiterado” das obrigações desse empresário em Cabo Verde.
De notar que A NAÇÃO reportou num dos seus números de Julho passado noticiou a possibilidade de “reversão”, o que agora se veio confirmar. O Governo criou até uma equipa composta por um grupo restrito de conhecidos advogados da praça e um residente em Macau para tentar arranjar um novo investidor que possa assumir, na integra, o projecto de David Chow, cuja primeira pedra foi lançada, em 2016, com uma previsão de três anos para a conclusão da primeira fase.
Evitar grandes empreendimentos
Porém, como este Jornal avançou também, a decisão de voltar a conceder todo o projecto do Djéu a único operador não era bem vista por alguns economistas e empresários do ramo do Turismo. Estes consideram que toda essa área deveria ser objecto de um Master Plan, plano este onde seriam previstos vários lotes de terrenos, que seriam concessionados a promotores diferentes com a vantagem de celeridade na realização de investimentos, promoção da competividade, diversidade da oferta, competitividade e concorrência.
“Só a área enxuta são 35000 metros quadrados poderia albergar vários hotéis”, alegam os nossos interlocutores, que consideram que a cidade da Praia não tem disponível um ‘prime lands’ (terrenos disponíveis para grandes investimentos), susceptiveis de atrair hotéis e marcas top”, realçou uma das nossas fontes.
É que, segundo esses analistas, já está mais do que provado que a concessão de grandes extensões de terreno a um único operador para investimentos turísticos não significa a conclusão do projectos, como a agora aconteceu com Gamboa e Ilhéu de Santa Maria. Este, de um orçamento inicial de 250 milhões de euros, foi reduzido significativamente, mas mesmo assim não foi concluído. Uma outra prática tem sido a especulação de terrenos públicos em beneficio de privados.
Santiago Golf Resort e White Sands
Aliás, na mesma senda, é de se perguntar, igualmente, por que razão até hoje, volvidos quase 30 anos, o Governo não tomou ainda qualquer medida em relação aos terrenos do Santiago Golf Resort, destinados supostamente a um grande empreendimento turístico que nunca saiu do papel. O mesmo se pode dizer do resort White Sands, na Boa Vista, cuja primeira fase deveria ficar concluída em 2016.
“É que, se for atribuído a um promotor toda a área da Gamboa nem daqui a 10 anos veremos concretizado esse investimento. Primeiro pelo volume de investimento que requeria capacidade financeira elevada; segundo a complexidade do projeto levava seu tempo a elaborar e executar”, realçaram os nossos interlocutores, que consideram que a decisão em relação aos terrenos da Gamboa e do Ilhéu de Santa Maria “deve ser inteligente e estratégica”.
Bem público relevante
De notar ainda que em Abril deste ano, em entrevista à Rádio Macau, o vice- -primeiro-ministro Olavo Correia já havia dito à Rádio Macau que Cabo Verde queria encontrar, com a máxima urgência uma solução para o projecto.
“Cabo Verde respeita a própria privada, mas não podemos colocar à disposição de privados um bem público relevante, durante muitos anos sem que o projecto possa ser concluído”, avisou, avançando que “há um prazo para que as coisas aconteçam”, o que não se verificou e o que levou o Governo a se estribar na lei para salvaguardar os interesses do país.
O número dois do Governo assegurou que foram dadas à MLD todas as oportunidades para a retoma das obras ou para negociar a venda das acções ou a cedência da sua posição contratual a um potencial interessado na continuação do projecto, mas não foram apresentadas alternativas, obrigando o mesmo a usar a lei para reverter então a concessão.
Agora, aguarda-se com expectativa o desenlace do projecto e o surgimento de eventuais investidores, sendo certo que a população continua a reclamar para si o direito ao usufruto daquele espaço nobre da cidade, que devia ser de todos.
Histórico do empreendimento “Djeu”
O projecto do complexo “Djeu”, na cidade da Praia, que contempla casino, marina, escritórios, entre outras valências, foi anunciado em 2001. Contudo, a primeira pedra só viria a ser colocada 15 anos mais tarde, em Fevereiro de 2016, tendo o acordo com o Governo sido assinado em 2015.
Na altura, o próprio David Chow tinha dito que em três anos (2019) “os cabo-verdianos” haveriam de ver “os resultados” do seu empreendimento, o que não se efectivou. Entretanto, muitas interrogações e dúvidas à sua efectivação foram levantadas ao longo dos últimos anos, especialmente desde que o Banco de Cabo Verde chumbou o pedido de abertura de um banco na capital do país, por parte do empresário macaense, por não reunir os requisitos de conformidade exigidos pelo regulador. O BCV entendeu que Chow não tinha “idoneidade bancária”.
Eram 250 milhões, o maior projecto de sempre em Cabo Verde, que passou para 90 milhões. O “Djeu” foi apontado como o maior empreendimento turístico de Cabo Verde, com um investimento global de 250 milhões de euros. Chegou-se a falar até na eventualidade de se construir um novo aeroporto internacional para receber os clientes do casino que David Chow contava construir na cidade da Praia.
Contudo, após sucessivos adiamentos, e lançamento de várias primeiras pedras a que o A NAÇÃO assistiu, o investimento inicial passou de 250 milhões de euros para 90 milhões de euros.
Estava previsto a construção de uma estância turística, um hotel -casino de 250 quartos, que já foi construído, mas está fechado, uma piscina, várias instalações para restaurantes e bares, além de uma marina.
Inclusive, a MDL tinha anunciado em Março de 2020 que pretendia inaugurar o hotel-casino no final de 2021, depois de em 2019 ter previsto a conclusão da obra para o final do ano seguinte, sem nunca se ter efectivado. E a pergunta que não cala: qual vai ser o destino das construções edificadas na Gamboa?
A Câmara Municipal da Praia, presidida por Francisco Carvalho, do PAICV, apresentou semanas atrás uma proposta para a transformação do Djeu num centro museológico e turístico, mas, pelo sentido dos ventos políticos, muito dificilmente terá o acolhimento de um governo do MpD sob a liderança de Ulisses Correia e Silva.
Publicado na edição 899 do Jornal A Nação, de 21 de Novembro de 2024