Por: João Serra*
As estatísticas oficiais que são produzidas pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) não só são cruciais para a formulação das políticas públicas, como também orientam, praticamente, todas as decisões públicas e, em certa medida, também decisões privadas.
Com efeito, as informações estatísticas fornecem as evidências necessárias à implementação e ao controlo de políticas públicas efetivas, uma vez que identificam onde os recursos são mais necessários e facultam meios para avaliar o progresso e medir o impacto da execução de diferentes políticas.
Ou seja, decisões fundamentadas exigem estatísticas, não de quaisquer estatísticas, mas estatísticas de elevada qualidade. E para que as informações estatísticas tenham a qualidade requerida, elas devem ser obtidas através da aplicação de padrões rigorosos, a fim de assegurar que os dados são exatos, coerentes, produzidos em tempo oportuno e em consonância com as normas internacionais. Outrossim, não deverá haver qualquer interferência exterior, particularmente do Governo e dos partidos políticos, quer diretamente, quer indiretamente através do perfil das pessoas nomeadas para a gestão do órgão produtor das estatísticas oficiais.
Nesse quadro, a independência técnica e operacional do INE deve ser absoluta, porque é fundamental na salvaguarda da qualidade das estatísticas oficiais. Tal evita influências políticas e conflitos de interesses suscetíveis de afetar o rigor, o calendário de publicação dos dados produzidos, ou seja, a sua credibilidade, garantindo que as pessoas possam confiar nesses dados, em especial quando os mesmos são utilizados para a tomada de decisões que afetam o seu quotidiano.
Na verdade, citando o experiente e reconhecido estaticista português Adrião Simões Ferreira da Cunha, “nos Estados de Direito Democrático nenhum outro Organismo Público como os INE têm de se esforçar tanto para se manterem demarcados do Governo e dos partidos políticos, ou seja, de qualquer sinal de que o que medem e fornecem à Sociedade foi afetado por considerações que não sejam as da imparcialidade na escolha dos fenómenos, setores e atividades a quantificar e da objetividade na forma de os medir.
A essa demarcação chama-se Independência, que permite aos INE que as Estatísticas Oficiais que produzem além de tecnicamente fundamentadas passem o teste da credibilidade junto da Sociedade.” (Artigo publicado no jornal online “Téla Nón”, em 17 de julho de 2024)
Embora o princípio da independência dos INE seja pacífico e geralmente consagrado em dispositivo legal que o defenda, esse antigo Vice-Presidente do INE de Portugal, todavia, reconhece que “a inserção dos INE nas Administrações Públicas os pode expor a pressões oriundas dos contextos político, económico e social, podendo o problema da confiança [nos INE] agravar-se com manipulações reais ou presumíveis”. Dito doutro modo, tal situação faz com que possa haver tentativas de intromissão diretas ou indiretas dos utilizadores, particularmente dos Governos, o que poderia originar a produção de estatísticas ‘orientadas’, com a consequente perda irreparável da sua credibilidade. Neste contexto, é fundamental que tanto os INE como os seus gestores tenham independência e atitude suficientes, para resistir a pressões políticas e preservar a sua virtude, conclui o referido especialista.
Nos termos dos seus Estatutos, o INE é um instituto público do regime especial, que goza de independência técnica e profissional no exercício da atividade estatística oficial, nos termos da Lei do Sistema Estatístico Nacional e demais legislação aplicável.
Grosso modo, presume-se que o INE tem agido dentro do quadro da sua independência técnica e operacional, cumprindo, basicamente, a sua missão.
Não obstante o INE desde a sua criação ter procurado expandir o seu campo de atuação, abarcando mais áreas de incidência da sua atividade, e, também, ter feito algum esforço de inovação na recolha e tratamento de dados estatísticos, acompanhando, de certa forma, as tendências internacionais, a verdade é que não só o âmbito da sua intervenção é ainda relativamente curto, como também há uma certa inércia na atualização temporal de vários pressupostos que estão na base do cálculo de informações estatísticas de enorme importância como, por exemplo, o índice de preço no consumidor (IPC) e o limiar da pobreza absoluta.
IPC, desatualizado e desajustado
Segundo noticiado pela Lusa, em 22 de novembro de 2023, o FMI recomendou ao INE uma atualização dos valores que servem de base ao IPC, ou seja, para cálculo da inflação, de acordo com um relatório publicado pelo FMI no dia anterior (21) sobre uma assistência técnica prestada ao INE e dedicada a melhorar e atualizar o IPC.
“As ponderações atuais do IPC baseiam-se em dados de despesas recolhidos durante o inquérito aos agregados familiares em 2015”, lê-se no relatório, referindo que estes dados estão ultrapassados e “é urgente atualizá-los”.
Entre outras notas, sugere-se que o INE use a inflação homóloga a 12 meses como índice principal ao divulgar a evolução da inflação, para refletir as variações de forma mais rigorosa, em vez da média móvel de 12 meses, utilizada atualmente como indicador de destaque.
De facto, o INE, com o índice de janeiro de 2019, iniciou a divulgação do IPC com base em 2018 (IPC2018), cujo indicador se baseia nos resultados do Inquérito às Despesas e Receitas das Famílias realizado durante o ano de 2015 (IDRF2015). Recorde-se que os resultados finais do IDRF2015 só foram publicados em 2018, isto é, três anos após a recolha de dados.
Ora, um IPC mede a variação no custo de aquisição de um cabaz de bens e serviços representativo da estrutura do consumo. Tal implica ponderar os agregados de preços das diversas categorias de bens e serviços em devido tempo, de modo a refletir o seu peso nos orçamentos familiares.
Normalmente, os ponderadores permanecem inalterados durante pelo menos 12 meses. Em alguns países, os ponderadores são revistos no início de cada ano (anualmente), visando aproximá-los tanto quanto possível das alterações nos padrões de consumo. Em geral, ainda que possam permanecer constantes por mais de um ano, os ponderadores devem ser revistos num período de tempo nunca superior a cinco anos.
Em Portugal, a revisão da ponderação dos vários bens que compõem o cabaz que serve de base ao cálculo IPC é feita todos os anos pelo INE, para refletir mais fielmente os hábitos de consumo dos portugueses e a variação no custo de aquisição do respetivo cabaz representativo. Por exemplo, a taxa de inflação publicada ao longo de 2023 pelo INE desse país teve em conta uma sobreponderação em 7,02% das despesas da habitação e em 8,32% as despesas com vestuário e calçado.
Como referido, o IPC em vigor em Cabo Verde baseia-se nos resultados do IDRF de 2015. Se até esta data (finais de 2024) ele não foi atualizado, significa que, tal qual constatado pelo FMI, já não reflete o padrão atual de consumo dos cabo-verdianos e o respetivo custo, padrão esse que, com toda a certeza, é diferente do de há quase uma década atrás.
E a sua não atualização durante tanto tempo poderá estar a induzir a que Cabo Verde esteja a ter taxas de inflação inferiores às que realmente teria caso houvesse uma atualização do IPC, o que, a confirmar, compromete a credibilidade tanto das taxas de crescimento do PIB, como do indicador do poder de compra dos cabo-verdianos, pondo também em causa toda a política de rendimentos e preços seguida nos últimos anos.
Assim sendo, torna-se imperativo que o atual IPC seja urgentemente corrigido, tendo por base o novo cabaz de bens e serviços representativo da estrutura do consumo, que se espera sair do novo IRDF realizado em 2023 e cujos resultados já deviam ter sido publicados desde o mês de setembro pp.
A problemática do limiar da pobreza absoluta fica para uma próxima oportunidade.
Praia, 09 de novembro de 2024
*Doutorado em Economia