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Diáspora

Do carvão e do mar para o jazz: a dinastia Diniz

À semelhança dos filhos dos cabo-verdianos emigrados na América, desde o final do século XX, também alguns filhos de marinheiros das ilhas, estabelecidos na cidade galesa de Cardiff, no País de Gales, enveredaram pela música. É o caso dos filhos de Francisco Diniz, marinheiro de São Vicente – Frank, José ‘Joe’ e Laurie- , que fizeram carreira no jazz e na música latina, produzida em Londres, em meados do século XX.

A herança crioula em Cardiff também deixou a sua marca na música que se fazia na época, tendo chegado até ao século XXI, com a morte de Frank Deniz, em 2005, aos 92 anos. Tal como nos Estados Unidos, estes filhos de marinheiros cabo-verdianos ocupavam o seu tempo de lazer tocando a música das ilhas que ainda existia neles.

E o caso de maior destaque são os três filhos de António Francisco Dinis (1878- 1931), natural de São Vicente, marinheiro, e da sua esposa Gertrude Blanch (1886-1974), de origem anglo-afro-americana – Frank, Joe e Laurie.

Quando o jovem António Francisco chegou a Cardiff, vindo do Mindelo, foi trabalhar para a Redcliff Company, como donkeyman, o operário encarregado de manter os motores em boas condições.

A sua futura mulher, Gertrude, também trabalhava para a mesma companhia, como cozinheira. Os três irmãos crescem no ambiente multicultural de Tiger Bay, na zona do porto de Butetown, zona de ‘bas fond’, de crime, de brigas frequentes e prostituição, frequentada e habitada por árabes, somalis, malteses, egípcios, jamaicanos, africanos, malaios, chineses, espanhóis, portugueses, noruegueses, e de outras origens, atraídos pelo comércio e indústria do carvão.

Os filhos recordam como o pai trancou a família em casa durante os motins raciais de 1919, por três dias. O pai, António, já tocava músicas das ilhas no violino e no bandolim. Frank, o mais velho, aprendeu violino com o pai, mudando depois para o banjo, até que descobriu a guitarra, quando esta se tornou mais popular.

Conhecer o mundo e as suas músicas

Depois de vender jornais e de trabalhar como ajudante de um fotógrafo, seguiu as pisadas do pai, por decisão deste, e entrou para a marinha mercante. Frank trabalhou nas cozinhas de barcos e viajou pelo mundo, sobretudo pela América do Sul, onde a música que escutava nos portos o conquistou para sempre. Numa das viagens esteve ausente por dois anos, passados na companhia da sua guitarra na cabine. Em 1931 estava a trabalhar no mesmo barco que pai, que acabou por ficar doente durante uma passagem pela União Soviética. Frank teve de deixar o pai num hospital, em Odessa, onde este viria a falecer.

Mas dez anos de mar chegaram para o jovem, que regressou a Cardiff, e se juntou à pianista Clara (mais tarde, Clare) e ao irmão Joe no grupo Blue Hawaians. Mas Cardiff é muito pequena para se ganhar a vida na música e os três mudam-se para Londres.

Frank casa-se com Clare, em 1936. No ano seguinte, Joe e Frank juntam-se à banda do cantor Ken ‘Snakehips’ Johnson, numa banda de músicos negros, para tocar guitarra. Mas um ano depois, Frank já está ao lado do pianista Fela Sowande, no Adelaide Hall’s Old Florida Club.

No início dos anos de 1940, Frank ganha algum destaque como guitarra- -ritmo. Durante a Segunda Guerra Mundial, vamos encontrá-lo como chefe da casa de máquinas de um navio, junto com o irmão Joe. Visitam o Brasil e ouvem a música do país, que lhes recorda a música das ilhas do pai, António. Ainda durante a guerra, Frank junta-se ao acordeonista Eric Winstone, em espectáculos para tropas em convalescença, em França.

De regresso a Londres, no Soho, a reputação de Frank como músico de jazz cresce e vai contar com o apoio de músicos como Ivor Mairants e do pianista Stanley Black, que já era um admirador dos irmãos Deniz. Através do pianista, Frank tem acesso à rádio BBC, a partir da qual estende o leque de conhecimentos no ramo.

Em 1953, inspirado por um encontro com a banda de Carmen Miranda, Frank Deniz e os irmãos Joe e Laurie fundam a banda latina Hermanos Deniz. Será a banda residente, por vários anos, no hotel Grosvenor House e do clube Talk of the Town. Depois de vários anos de digressões e de gravações em estúdio – a maior parte sem registo do seu nome – Frank e Clare passam parte do ano em Espanha, até Clare adoecer com Parkinson e falecer em 2002.

Frank Deniz morre em 2005, aos 92 anos, deixando duas filhas, Clare e Lorraine. Não há memória registada de Frank e o pai António terem alguma vez visitado o Porto Grande do Mindelo, o que é bastante provável, sobretudo durante as viagens para o Brasil e a América do Sul.

José William ‘Joey’ Deniz 1913-1994

O segundo filho de António Diniz, Joe Deniz, nasceu em Cardiff em 1913 e mudou-se para Londres em 1934, tendo o primeiro emprego como guitarrista no Nest Club, na Kingly Street. Aqui teve a oportunidade de tocar com vários músicos americanos de passagem, como Fats Waller, Mills Brothers. Mudou-se depois para o Cuba Club, no Soho, e depois para o Shim-Sham Club.

Em plena guerra, em 1941, durante o Blitz de Londres, na zona entre Piccadilly Circus e Leicester Square, Joe estava no palco do Café de Paris, com Johny Claes, Harry Parry e ‘Snakehips´ Johnson, quando uma bomba atingiu o Clube e fez mais de trinta vítimas mortais, incluindo Johnson. Joe escapou apenas com uma fractura no pé esquerdo. Os sobreviventes foram levados para o Charing Cross Hospital, onde Frank, que estaria a tocar num clube ali por perto. o foi encontrar sorridente.

Nas suas conversas e entrevistas, Joe costumava recordar o piano que existia em sua casa, onde a sua irmã tocava, quando ele ainda só arranhava o cavaquinho. Joe também teve como primeiro emprego a venda de jornais, tal como o irmão mais velho Frank. A sua paixão pelo jazz e pela música havaiana levava-o a comprar discos de 78 rotações, com o dinheiro que ganhava. Em adolescente já tocava em festas do bairro e da cidade de Cardiff. Em 1934 juntou-se a dois músicos locais, Victor Parker e George Glossop num trio, quando estes o chamaram de Londres. Segue-se a orquestra do jamaicano Leslie Thompson.

Na revista Who’s Who of British Jazz, Quem é Quem no Jazz Britânico, de 2004, Joe surge ao lado de músicos como Happy Blake, Al Craig, Yorque de Souza, Coleridge Goode, Jiver Hutchinson, Leslie Thompson, Louis Stephenson, que tocaram com Joe Deniz. Numa das suas entrevistas, Joe corrige o repórter sobre a forma de pronunciar o seu nome português: “é ‘Dinish’, diz ele, e não ‘Denise’.”

Laurence ‘Laurie’ Deniz 1924-1996

Laurence, mais conhecido por Laurie, nasceu em 1924, o mais novo dos irmãos Diniz ou Deniz, na grafia inglesa. Desde cedo iniciou-se no cavaquinho do pai. Neste início do século XX ainda havia muitas famílias de origem cabo- -verdiana em Cardiff e era comum os homens juntarem-se aos domingos para tocar, violino, bandolim e cavaquinho. Mas também tocou no piano que encontrou em casa e só mais tarde adoptaria a guitarra, por influência do pai. Depois das aulas, ia trabalhar para uma empresa de fabrico de azulejos. Laurie mudou- -se para Londres e comprou uma guitarra eléctrica e tocou com o acordeonista Tony Chadgidakis e faz o percurso dos clubes de Londres.

Depois de ter sido despedido do Coconut Grove, Laurie mudou-se para o Embassy Club, onde se tocava música latina. Com a chegada da guerra, suspende a actividade musical e torna-se condutor de camião, depois da guerra casa-se com Lydia e está de volta aos clubes e faz gravações, trabalhos de estúdio para vários artistas da época, alguns de grande êxito comercial. No final dos anos cinquenta, Laurie deixa a música e entra no negócio das garagens e acaba por perder todo o seu dinheiro. Regressa à música, aos clubes, gravações, até formar com os irmãos Frank e Joe Los Hermanos Deniz.

Joaquim Arena

Publicado na edição 897 do Jornal A Nação, de 07 de novembro de 2024

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