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Diáspora

Cabo-verdianos de Cardiff, uma herança em vias de extinção

Craig Ramos (à esquerda) e filhos

Chegaram das ilhas de Cabo Verde, a maior parte de São Vicente, encontraram trabalho na cidade portuária de Cardiff e aqui casaram-se com mulheres galesas apaixonadas por estes ilhéus africanos. Hoje, a comunidade cabo-verdiana já vai na terceira ou quarta geração e pouco ou nada se lembram dos seus avós. Mas alguns ainda têm histórias para contar. E há quem, como Craig Ramos, que não descanse até ver a presença e o contributo da comunidade cabo-verdiana de Cardiff reconhecidos oficialmente.

Numa tarde do final do século XIX, quando já se faziam ao mar e abandonavam a baía do Porto Grande, os marinheiros de um barco inglês reparam num jovem que nadava na sua direcção, cortando a ondulação. Entusiasmado e admirado com a coragem do jovem cabo-verdiano, o capitão David Jones mandou recolher o rapaz a bordo. Percebem que este quer ser marinheiro como eles, ver o mundo, partir para longe de uma terra pobre. 

E é assim que pouco tempo depois António Mateus, natural do Mindelo, se estabelece na cidade portuária de Cardiff, no País de Gales. E é o próprio capitão David Jones e outro galês de nome Hugh Jones que tratam da burocracia e assinam os papéis para Mateus, agora Mathew Anthony, ficar legal e começar uma vida nova e uma carreira de marinheiro a bordo de navios da marinha mercante britânica.

A aventura de Mateus tem mais de um século, mas a sua história só saiu do seio da família há pouco mais de um mês. Tudo aconteceu no decorrer de uma conversa durante um programa de rádio local. E é aqui que entra Craig Ramos, de 75 anos e neto de Philipe Bartholomeo Ramos, também marinheiro cabo-verdiano de Mindelo, que um dia decidiu ficar e casar em Cardiff. 

A Festa da Cavala (Aberaeron Mackerell Fiesta) não é muito antiga na cidade de Aberaeron. Na verdade, surgiu há 16 anos, quando alguns antigos marinheiros decidiram homenagear esta espécie de peixe, muito pescado e comercializado na região, desde épocas remotas, por gerações de pescadores. A festa tem música de DJ, muita animação, e termina numa espécie de pequena procissão de homens e mulheres vestidos de preto, usando máscaras e transportando um modelo de cavala gigante, de pelo menos uns 8, 10 metros, ao longo da marginal, desde o Hive até ao Aberaeron Yatch Club, no cais desta pequena cidade, que conta com menos de 2 mil habitantes. A festa termina com o fogo consumindo a cavala gigante, sobre os calhaus da praia, a sul da cidade. 

A família de Craig

Craig dormia e acordou com a BBC 4 a emitir uma reportagem sobre a última Festa da Cavala. De repente, ele escuta uma referência às ilhas de Cabo Verde e a história do rapaz que nadou para o barco inglês. Quem a conta é uma senhora que diz ser bisneta do capitão David Jones. Craig é um dos maiores entusiastas do estudo e da divulgação da herança cabo-verdiana em Cardiff, onde ainda se encontram os netos e bisnetos dos primeiros marinheiros das ilhas que aqui se estabeleceram, há mais de um século. 

Uma comunidade que tende a desaparecer e a diluir-se cada vez mais na população local. Na sua maioria, os traços africanos herdados dos seus pais cabo-verdianos são cada vez menos, como é o caso de Craig, praticamente branco. Isto resulta do facto dos cabo-verdianos se casarem com mulheres galesas e esse vestígio das origens paternas ir desaparecendo. Craig ainda guarda os documentos do avô, que nasceu em São Vicente no ano de 1892. O jovem crioulo Filipe conheceu Violet, uma galesa por quem se apaixona, a avó de Craig. 

Por esta altura, homens negros e de outras origens não são uma novidade para Violet e outras raparigas novas galesas, de Cardiff. Pelo contrário, sentem-se atraídas por rapazes de culturas e línguas diferentes. Mas a multiculturalidade da cidade – por esta altura, depois de Londres, Cardiff é a segunda cidade com mais negros e asiáticos do Reino Unido – entra em choque com os soldados britânicos desmobilizados da Primeira Guerra Mundial e com a falta de trabalho. Os tumultos raciais de 1919 acabam em quatro mortos e a destruição de várias lojas de africanos e asiáticos.  

Por essa razão, Filipe Bartolomeu e Violet, os avós de Craig, são obrigados a ir casar a Swansea, uma cidade a 80 quilómetros de Cardiff, para evitar problemas. 

Depois de ouvir a história de Mathew Anthony, Craig entra de imediato em contacto com Elinor Ingham, a bisneta do capitão Jones e marcam um encontro. Mateus ‘Mathew’ tornara-se cidadão britânico, em 1897, e casa com Margretta, com quem terá cinco filhos. Mas não viverá muito, falecendo aos 42 anos, em 1903. Margretta irá viver até aos 85 anos, morrendo em 1952. 

Cabo-verdianos de Cardiff, meados do século XX

O carvão e os crioulos de Tiger Bay

Se é conhecida a grande influência exercida pelos ingleses em São Vicente, ao longo de mais de um século, através das companhias carvoeiras, pouco ou nada se sabe da presença dos cabo-verdianos em Cardiff, no País de Gales, de onde provinha o carvão vendido nos quintalões do Mindelo. Este foi o porto que exportou toneladas deste combustível na era dos barcos a vapor e que alimentava grande parte do comércio mundial e em especial as trocas comerciais entre os vários pontos do Império Britânico. O que faria de Cardiff uma das cidades mais cosmopolitas do mundo, no final do século XIX, inícios de XX, com mais de cinquenta nacionalidades registadas. 

Estamos a falar de marinheiros que aqui aportavam para descarregar mercadoria e carregar carvão e que iam ficando pelo porto galês. Assim, os marinheiros cabo-verdianos também não fugiram à regra, com vários a preferirem estabelecer-se em Cardiff, em especial em Tiger Bay, bairro animado, com bares e clubes que viviam do movimento das tripulações, numa espécie de ‘red district’,ou seja, local do vício e da prostituição, como contam os relatos da época. Aliás, o nome do bairro das docas da capital galesa tornou-se, inclusive, sinónimo, entre os marinheiros, de zona de ‘má fama’ propícia a prostituição, violência e banditismo.

Para Craig, a aventura e a história de Anthony Mathew, como a do seu avô, é apenas mais uma de um passado que sempre o fascinou. “Desde os meus 6, 7 anos, quando descobri que o meu avô era diferente, que tinha este desejo de ir viajar e ir conhecer a sua terra, a sua cultura”, conta ao A NAÇÃO, ao telefone, a partir da sua casa de Cardiff. Recorda-se das longas viagens de dois, três anos que o avô marinheiro fazia pelo mundo e dos presentes que lhe trazia, sempre que estava de regresso. “Presentes do Japão, fatos de cowboy trazidos da América, e depois lembro-me dele juntamente com os seus amigos, sentado na sala da minha avó e a beber uísque”. 

Na época, conta Craig, havia vários cabo-verdianos em Tiger Bay, a zona portuária das docas de Cardiff, de onde são originários. Já o pai, Richard, vendedor de carvão e nas horas vagas tocador de modinhas brasileiras no violão, admirador de Rosinha de Valença, com quem Craig percorreu as estradas do Reino Unido no seu camião, nunca se mostrou interessado sobre as suas origens paternas, nessas ilhas de Cabo Verde. 

“Acho que estava mais concentrado em ganhar a vida e sustentar a família. Mas, no fundo, aquilo que tenho vindo a fazer, estas investigações, é o que ele gostaria de ter feito, se pudesse. Eu tinha os meus 8, 9 anos na altura e acho que a minha paixão pelas viagens vem desse tempo.” 

Numa das fotos, durante um baile com a esposa, Tessa Ramos, pode-se ver como Richard Ramos, filho do mindelense Filipe Bartolomeu e pai de Craig, mantém ainda os traços africanos e a cor da pele ainda escura do pai. Um forte contraste com a pele cor de leite da esposa. 

Quanto a Craig, foi técnico de vendas, teve uma família, mulher e filhos, até cair no vício das drogas e do álcool, que o consumiu por mais de vinte anos. Durante esse período, conta, perdeu qualquer interesse pelas origens e pelas histórias que se contavam na cidade e no bairro de Tiger Bay, sobre os antepassados cabo-verdianos. A sua vida chegou a um ponto em que precisou de ajuda para largar o vício. E aí, as suas origens voltaram a ter um papel importante na sua vida. 

“Decidi entrar para um programa de reabilitação e cura das drogas e do álcool e quando terminou e eu me senti a recuperar a pessoa que eu era, fui ver um filme que me marcou: Diários de Motocicleta (do realizador brasileiro Walter Salles, 2004), que conta a viagem que Che Guevara fez com um amigo, de mota, pela América do Sul. Então, talvez inspirado pelo filme, eu recuperei o meu sonho antigo de ir conhecer a terra do meu avô Philipe Bartholomeu Ramos.”

Richard Ramos e Tessa Ramos, os pais de Craig Ramos

Cape-verdean Society em Cardiff

A viagem de Craig Ramos até Mindelo ficaria registada no artigo que escreveu para uma revista local. Depois de um voo para as Canárias, tentou uma ‘boleia’ num dos muitos veleiros que descem rumo a São Vicente. Mas o facto de não saber falar línguas e a muita concorrência de outros viajantes, levou-o a apanhar um avião para a ilha do Sal. “E quando me sentei e vi outros cabo-verdianos entrarem também, tive uma ‘moinha’ no estômago que era a sensação de eu também estar de regresso a ‘casa’”. 

Craig ficou uns dias pelo Sal, onde conheceu outros viajantes europeus e dali apanharam o barco para o Mindelo, como conta, “numa das piores viagens da minha vida.” Mas valeu a pena. 

No Mindelo, irá percorrer as ruas da cidade na companhia de Alcindo, um pequeno empresário, que decidiu “tomar conta de mim, como um pai”, diz. Craig irá visitá-lo, tempo depois, quando Alcindo se mudou para Roterdão. 

Juntamente com os viajantes que conheceu no Sal, decide ir conhecer Santo Antão. “Quando chegámos ao topo da montanha eu mandei parar a Hiace e disse que queria fazer o resto do caminho a pé, até Ribeira Grande. Quando lá cheguei, com a mochila às costas, tinha as pernas a tremer. Mas nunca me hei de esquecer como foi caminhar e ver as nuvens lá em baixo”, recorda. 

Craig voltaria mais vezes a Cabo Verde, ao Mindelo. Numa delas, ofereceu-se para trabalho voluntário no Hospital Baptista de Sousa.  “Mas a pessoa com quem falei olhou para mim, como se eu fosse a pessoa mais estranha e nem sei ao certo se ele percebeu bem o que eu pretendia. Mas eu compreendo a sua admiração, é normal, eu apareci assim, sem mais nem menos, eu até podia ser algum maluco…” 

Cape-verdean Society

Em 2006, antes da viagem de Craig a Cabo Verde, a jornalista Marilene Pereira visitou Cardiff, vindo de Londres, onde se encontrou com ele e outros descendentes de cabo-verdianos para uma reportagem que estava a fazer. Hoje, quase vinte anos depois, ela recorda o calor do encontro:

“O que eu senti neles, pessoas já com muita idade, é que tinham muito orgulho na sua história. Havia um casal em que o senhor já tinha uns 88 anos e era o que tinha a pele mais escura, tinha ido para Cardiff com o pai, quando era criança. Os outros já eram quase brancos, pelas misturas que, entretanto, aconteceram.” 

Marilene destaca algo que a marcou, em todo este processo das famílias de origem cabo-verdiana.  “A mistura resulta do facto de as mulheres que casavam com cabo-verdianos serem todas brancas, galesas, todas mulheres bonitas, o que para a época, início do século XX, só pode ser visto como um acto de grande coragem, casar com um estrangeiro e ainda por cima negro.”  

A jornalista foi recebida num restaurante italiano junto ao porto de Cardiff, onde ouviu as muitas histórias desta aventura crioula, que escreveria na reportagem da Revista, publicada na altura pelo jornal A Semana. “Apesar de a comunidade ser pequena, a recepção que tive foi muito calorosa.” Na época, a pequena associação Cape Verdean Society ainda se esforçava por reunir os seus membros e manter a cultura crioula viva, em Cardiff.  Vinte anos depois e após o desaparecimento de muitos dos seus membros, é Craig quem testemunha praticamente o desaparecimento dessa associação, para muita pena sua. 

Marilene recorda um episódio curioso com o galês: “Na sua última viagem a Cabo Verde, Craig veio directamente para a Praia e ficou alojado em minha casa. Mas ao desembarcar no aeroporto ele não tinha visto de entrada no país e perante a insistência dos funcionários da fronteira, ele tirou a Revista, onde eu tinha publicado a reportagem, para mostrar e provar que ele realmente era cabo-verdiano, e por isso não precisava de visto. ‘I’m cape-verdean, I’m cape-verdean!’ (‘sou cabo-verdiano, sou cabo-verdiano!’), insistiu e lá o deixaram passar, como um filho que retorna a casa”.

Missão: divulgar Cabo Verde

A paixão pela cultura cabo-verdiana e a sua divulgação tornou-se a nova missão de Craig, a sua actual razão de existência. Sobretudo após a sua primeira viagem ao Mindelo. Nas fotos que guarda das suas iniciativas para o reconhecimento dos galeses de origem cabo-verdiana, ele surge numa das reuniões que juntou o cônsul de Cabo Verde em Liverpool, João Roberto, com Rhodri Morgan, antigo primeiro ministro do País de Gales.

 “Eu tinha escrito uma carta para ele e por sua vez ele escreveu uma carta para João Roberto, em Liverpool, marcando um encontro formal no seu gabinete. Depois da nossa reunião sobre a comunidade cabo-verdiana em Cardiff, Rhodri Morgan escreveu uma carta para o governo britânico, para a Casa dos Comuns, e depois fizemos contactos com Cardiff City Council, o governo do País de Gales. Mas infelizmente não deu em nada.” 

Pai de dois filhos e depois se de libertar das drogas, Craig tem agora a função de conselheiro social para aqueles que vivem o mesmo pesadelo que ele, incluindo a filha de vinte anos, dependente também do crack. Mas a sua missão já está escolhida. 

“Tenho 75 anos e antes de deixar este planeta, quero dar o máximo para que haja alguma espécie de reconhecimento oficial como os cabo-verdianos foram dos primeiros grupos de pessoas estrangeiras a estabelecerem-se em Tiger Bay”. 

O primeiro passo nesse sentido é o estabelecimento de algum tipo de geminação entre o Mindelo e a cidade de Cardiff. “O que eu posso fazer é dar início ao processo aqui em Cardiff, propor às autoridades esse projecto.” 

Vinte anos depois, a maior parte dos descendentes de cabo-verdianos que estiveram no almoço com ele e Marilene Pereira já não estão vivos e daqueles que ainda restam, Craig afirma já não estarem sequer em contacto, para pena sua. 

“Eu fiz parte da Cape-verdean Society, alguns anos atrás, mas mesmo na época eram demasiado ‘lentos’ para as minhas ideias e as coisas que eu queria fazer. Mas há pouco tempo informei-me e já nem isso existe, praticamente. Por isso, preciso concretizar este meu projecto, daqui a pouco não restará ninguém para o fazer.”

 

Joaquim Arena

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