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São Vicente

Mindelact: 30 anos de resiliência e teimosia

O Mindelact, festival internacional de teatro do Mindelo, festeja três décadas de existência. Resiliência e teimosia para fazer vingar as artes cénicas, na certeza que existe um antes e um depois do festival para o teatro nacional e no contexto da África lusófona. 

Tudo começou em 1995, por iniciativa do núcleo cénico do Centro Cultural Português do Mindelo, na altura, só com a participação de grupos de São Vicente e Santo Antão. Um ano depois, expandiu-se a outros colectivos teatrais nacionais e em 1997 internacionaliza-se. Assim nascia o Mindelact. Hoje, uma marca internacional.  

João Branco

“Penso que é certeiro afirmar-se que no dia em que se fizer a história do teatro em Cabo Verde, teremos que considerar o antes Mindelact e o pós Mindelact. Isto mesmo vem sendo dito pelos mais variados quadrantes sociais, culturais e políticos ao longo destes anos: não existe outro evento ligado à produção teatral com o mesmo impacto ou durabilidade em todo o arquipélago ou mesmo considerando todo o continente africano”, começa por afirmar João Branco, actor, encenador e ex-presidente da Associação Artística e Cultural Mindelact.  

Continuar a fazer o Minlectat trinta anos depois, representa, para João Branco, uma “prova inegável” de resistência e de um profundo amor e dedicação pelo teatro e por Cabo Verde. E mais do que questionar o que mudou nas artes cénicas em Cabo Verde com o Mindelact, o nosso entrevistado prefere questionar o que é que Cabo Verde já ganhou com três décadas de Mindelact? 

“Ganhou dezenas de grupos de teatro que reúnem centenas de pessoas. Ganhou públicos com sentido crítico. É que, nos trinta anos que já conta, cerca de 250 mil pessoas assistiram a perto de 1.000 espetáculos nas 30 edições do festival. E ganhou uma associação de artistas e amantes das artes, que não exclusivamente do teatro, unidos na promoção artística cabo-verdiana”, analisa.

Se impor quando a música domina 

Uma promoção artística que resiste num país onde a música se impõe como a principal manifestação artística e que, segundo o mesmo, “canibaliza quase todas as outras formas de expressão”. E, sendo assim, não tem dúvidas que o Mindelact é um fenómeno de resistência cultural que contribui, sobremaneira, para a evolução do teatro local ao permitir aos agentes teatrais cabo-verdianos o acesso a espectáculos cénicos de múltiplas origens, de diferentes géneros e correntes.

Isto, como afirma, numa programação que aposta na diversidade em termos geográficos, linguísticos, estéticos, plásticos, técnicos e dramatúrgicos, e que contribui, então, para o aumento de forma “exponencial” da evolução dos grupos nacionais.

“Graças a este veemente espírito de troca de experiências, abre-se todo um campo de novas oportunidades para actores e técnicos cabo-verdianos que podem encetar contactos, forjar alianças, promover os seus trabalhos. O Mindelact é como uma porta: tens que passar por lá antes de poder fazer teatro no resto do mundo”, argumenta.

Efeito multiplicador

Ao longo destes 30 anos, João Branco enfatiza que o Mindelact contribui para várias participações de grupos de teatro cabo-verdianos em festivais internacionais, com destaque para o emergente mercado dos eventos de teatro de língua portuguesa. 

João Branco não tem dúvidas que o Mindelact tem sido um espaço de trocas, de confronto de realidades diversas, de vivências, de experiências, de leituras do mundo, com europeus, africanos e latino-americanos, todos em pé de igualdade. 

“Apesar das diferenças, todos têm uma experiência comum, que permite iniciar o diálogo, tanto os jovens que seguiram um curso de iniciação teatral, como os actores de experiência e renome que o Festival tem recebido”. 

Desafio da inconstância de um povo 

Hoje, olhando para estas três décadas, o entrevistado do A NAÇÃO destaca que o Mindelact se assumiu como uma “janela aberta que permite ao agente teatral cabo-verdiano um contacto direto com o mundo e em pé de igualdade: dando tanto quanto recebendo”.

Como realça, o festival trouxe o teatro do mundo ao arquipélago e deu uma contribuição decisiva para que o teatro cabo-verdiano passasse a ser não só considerado como procurado pelo mercado dos festivais internacionais. Algo que teve um impacto directo na melhoria da qualidade técnica e artística das produções cénicas locais. 

“Todos os anos semeamos e, no entanto, nunca damos como certa a efectivação de um bom ano agrícola. As técnicas agrícolas vão melhorando, os nossos homens e mulheres do campo estão cada vez mais e melhor capacitados mas nunca se consegue dar nada por garantido. Nas artes em geral, e no teatro em particular, essa inconstância é inevitável derivado da natureza migratória do nosso povo, da impossibilidade de reter os nossos melhores artistas e de nunca sabermos efetivamente se de cada nova geração formada – as tais sementeiras – teremos condições e vontades para dar continuidade ao trabalho realizado, e, mais ainda, continuar a evoluir”, justifica. 

Como exemplo, dá a Licenciatura em Artes Performativas, no Mindelo, que só ainda não arrancou porque não teve inscrições em número suficiente. “Isto numa cidade onde o amor pelo teatro é insuperável. Mas como se constata, nem só de amor vive o homem ( e o artista), daí que os inúmeros problemas estruturais e de falta de recursos que o sector vivencia ainda faça com que o teatro ande aos avanços e recuos, longe do patamar ideal, para usar o conceito da vossa questão”.

Aflição financeira, ano após ano

O maior desafio ao longo destas três décadas, garante o entrevistado do A NAÇÃO, é a sensação de que se tem que começar tudo de novo a cada ano que passa. “É cansativo e por vezes, desesperador”, diz em tom de desabafo.

Desesperador se tivermos em conta o factor financiamento, ano após ano, a maior dor de cabeça da organização como atesta também Yannick Fortes, presidente da Associação Artística e Cultural Mindelact (ver caixa pág. Xxxxx).

Naturalmente, viver do teatro em Cabo Verde continua a ser uma miragem. “Se, por exemplo, os orçamentos municipais da cultura não fossem tão diminutos e quase todos eles gastos em elevadas percentagens nas festas dos municípios, que alimentam a indústria musical, dos palcos e técnicos dos grandes concertos deixando umas migalhas para tudo o resto, quando deixam. Poderia ser melhor se fosse introduzido no ensino formal, da base ao ensino secundário, disciplinas de teatro, contratando gente formada na área”, explica. 

No contexto acima descrito, João Branco adverte que o mercado interno de animação socio-cultural, o mercado do ensino e o mercado dos eventos “deixam pouco ou nenhum espaço para o teatro”, conclui. 

Yannick Fortes

35 espectáculos para ver até sábado 

A 30ª Edição do Mindelact começou no passado dia 1 e prossegue até ao próximo sábado, 9, pelos diferentes palcos do festival, incluindo as ruas da cidade, 35 espetáculos apresentam uma diversidade de géneros e estilos para celebrar a riqueza da dramaturgia nacional e internacional.

Segundo Yannick Fortes, presidente da Associação Mindelact, a novidade principal desta edição é o tema “Bodas de Pérola”, em comemoração ao 30º aniversário do festival. “Além disso, incluímos duas exposições e cinco formações inéditas, explorando novos olhares sobre as artes cénicas e o teatro em Cabo Verde”.

No total, o festival conta com a participação de 25 grupos, de cinco países, incluindo companhias locais, que vêm enriquecendo o evento, trazendo uma diversidade de vozes e estéticas aos palcos do Mindelact. 

Os maiores desafios, garante Yannick Fortes, têm sido de natureza financeira e logística. “O festival expandiu-se em programação e actividades, o que aumentou significativamente as necessidades de patrocínios, especialmente para cobrir viagens e alojamentos de artistas. Além disso, garantir o equipamento técnico necessário tem exigido esforços adicionais, devido à falta de recursos locais”.

O orçamento desta edição é de aproximadamente 70 mil euros (cerca de 8 mil contos) mas, como atesta Yannick Fortes, a organização não possui, sequer, 50% desse valor. “Continuamos a fazer o festival graças ao apoio dos parceiros e das pessoas que trabalham de forma voluntária”.

A bilheteira representa apenas uma percentagem pequena do orçamento total, pois o festival depende maioritariamente de apoios institucionais e patrocínios para cobrir os custos de produção e execução. Se está no Mindelo, ainda vai a tempo de assistir ao festival e pode consultar o programa na página oficial do evento em www.mindelact.org ou na página do Facebook.

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