Por: Flora Lopes*
Muitas são as razões para se desenvolver sobre a investigação criminal e as garantias fundamentais do investigado com base na Constituição da República de Caboverde. Há, no pano de fundo do proscênio jurídico, um confronto entre o direito fundamental do indivíduo e o esclarecimento dos crimes por banda do Estado.
Esse embate filosófico, que sustenta a discussão jurídica, talvez jamais encontre solução definitiva, mas é imperioso que a encontre para o tempo em que se vive, à luz dos avanços tecnológicos e da realidade das ruas. Quando uma informação de um crime chega à autoridade policial surge o dever de investigação. No entanto, é importante destacar que a nossa Constituição estabeleceu direitos e garantias fundamentais à pessoa. Logo a partir do instante que uma pessoa é considerada suspeita da autoria de um crime é indispensável à análise dos direitos constitucionais.
O confronto da dignidade da pessoa humana com o poder estatal manifesta-se no quadro da obtenção de provas tendentes a alcançar uma verdade material. Com efeito, a verdade que se almeja em processo penal não pode ser obtida a qualquer preço, de qualquer forma; nem sempre o Estado pode comprimir direitos, mas, perante necessidades qualificadas da investigação, o Estado não pode deixar de comprimir–sem os postergar-direitos para atingir a verdade.
Os métodos de obtenção de prova ganharam enorme projecção, num tempo de aceleração máxima e em ambiente virtual de interacções sociais, que caracterizam a actual sociedade de informação e comunicação.
Nesse contexto, vem assumindo particular importância a intercepção de comunicações electrónicas na investigação criminal, enquanto método oculto de ingerência no espaço digital de privacidade das pessoas, apresentando questões e especificidades na compreensão do seu regime jurídico. Trata-se de um mecanismo de investigação criminal, mais concretamente de obtenção de prova, que interpela os limites do Estado de Direito, porquanto, em qualquer processo, importa demonstrar os factos sob investigação recorrendo a novas tecnologias.
Estabelecer o equilíbrio possível entre essas componentes–necessidade de usar meios de obtenção de prova que colidem com direitos das pessoas e a necessidade de preservação desses mesmos direitos–é o maior desafio e o ponto axial de um verdadeiro processo penal com dimensão ética; Aliás, no âmbito do Direito Processual Penal, a matéria das proibições de prova encontra fundamento jurídico-constitucional no art.º 35.º 8 da CRCV que dispõe “São nulas todas as provas obtidas por meio de tortura, coacção, ofensa à integridade física ou moral, abusiva intromissão na correspondência, nas telecomunicações, no domicílio ou na vida privada ou por outros meios ilícitos.”
E neste quadro surge a questão: Em que circunstâncias poderão os fins processuais prevalecer sobre os direitos fundamentais? A resposta a esta pergunta decorre do artigo 17º nº 4 da CRCV, visando salvaguardar outros direitos e garantias constitucionais.
Cumpre assinalar que o Estado precisa esclarecer os crimes, não é verdade? Qualquer sociedade não sobrevive se houver um grau de suspeita muito elevado; e também nenhuma sociedade sobrevive se houver uma manifesta violação dos direitos humanos; pelo que todo o meio de obtenção de prova, maxime intercepção de comunicações electrónicas na investigação criminal, por ser eficaz (para aquele primacial desígnio) e lesivo (no âmbito do segundo plano enunciado), só estará legitimado quando observe os limites e parâmetros legalmente estabelecidos e quando se observe uma circunstância concreta do menor sacrifício daqueles dois domínios valiosos.
Este meio de obtenção de provas é oculto sobretudo porque quem está a ser investigado desconhece que está sendo; é extraordinariamente intrusivo e invasivo para a pessoa visada pelo meio de investigação – seja ela suspeita ou arguido –, afectando direitos fundamenais, constitucionalmente consagrados, nomeadamente o direito à privacidade e à intimidade, o direito à palavra e à liberdade de expressão, o direito à inviolabilidade das comunicações e o direito à autodeterminação informacional.
Há investigações em que se torna imprescindível o recurso à intercepção de comunicações electrónicas porque a preparação e desenvolvimento do crime ocorre com uso dessas comunicações, como sucede com os crimes de tráfico de estupefacientes, sendo este um crime de catálogo e com enorme danosidade social – razões que tendem a conferir justificação para o recurso a tal meio de obtenção de prova.
Em Cabo Verde, o legislador consagrou em termos mais precisos, indicando que as intercepções electrónicas consagradas no art.º 255.º /2 do Cód. Processo Penal só podem ser ordenadas ou autorizadas relativamente a suspeitos ou a pessoas em relação às quais seja possível admitir, com base em factos determinados, que recebem ou transmitem comunicações provenientes dos suspeitos ou a eles destinadas, ou que os suspeitos utilizam os seus telefones”).
Ficam excluídas de tal universo as conversações entre o arguido e o seu defensor ou outros arguidos obrigados a segredo profissional, com excepção dos casos em que a intercepção diz respeito a crimes envolvendo o seu defensor e nestes casos estabelecem-se também obrigações especiais de fundamentação. É de realçar ainda que, o aparelho a ser colocado sob escuta pode ser de qualquer pessoa, desde que chegue ao conhecimento da Polícia Nacional, judiciária ou do Ministério Público que o suspeito faz ou recebe chamadas através do tal aparelho.
É claro que essa consagração do Código Processo Penal redunda numa fragilidade, ou seja, reduz o universo dos escutáveis para a investigação, por ex. num crime de Rapto /Sequestro ou Violência Baseada no Género pode ser muito importante interceptar o telemóvel da vítima.
Dessa forma, é necessário que em toda a fase das investigações policiais, a autoridade judiciária sempre busque fundamentar suas decisões para que o processo se torne eficaz, pois é nesta fase que deve receber o manto das garantias constitucionais, tendo como princípio-mor o da dignidade da pessoa humana.
Ainda, acerca da profundidade da questão debatida, percebe-se que não se resolve exclusivamente em torno da mera aplicação dos dispositivos legais atualmente em vigor, exigindo profunda reflexão em torno dos princípios constitucionais que orientam o sistema, dos valores fundamentais à natureza humana, e mesmo das convicções ideológicas predominantes que devem informar a solução a ser adoptada. Esta questão é desafiadora, uma vez que no sistema processual penal acusatório, vector de um estado democrático de direito, a ampla defesa e o contraditório são pilares inafastáveis do direito de defesa e a ciência por parte do investigado, já indiciado ou não, de investigação a seu respeito, imprescindível para o exercício dos direitos constitucionais conferidos ao cidadão. Deste modo, levará em consideração, na prática, os conflitos que surgem quanto aos meios de obtenção de prova.
Inserem-se no reduto de que falava Marcelo Caetano, “quase tão velha como a humanidade é a crença na existência de certos princípios normativos da conduta social que se impõem como necessária consequência do modo de ser dos homens e ninguém, governante ou governado, pode violar sem injustiça”.
*Procuradora da República, junto do Tribunal Judicial da Comarca da Praia