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Sociedade

Quando o ecrã substitui o afecto: Uso excessivo de telemóveis está a afectar crianças cabo-verdianas

O uso excessivo de telemóveis por crianças e jovens têm preocupado pais e professores. Algumas escolas, na capital e noutros pontos do país, decidiram proibir o uso desse aparelho, mas a questão é ainda mais crítica com a crescente exposição de bebés e crianças pequenas aos dispositivos digitais. A psicóloga Kyka Freyre alerta para os efeitos nocivos deste hábito no desenvolvimento emocional e social dos “mais baixinhos”, ressaltando a importância de limitar o uso de ecrãs desde cedo.

A verdade é que muitos pais, muitas vezes, sem alternativas, recorrem aos dispositivos digitais para entreter os mais pequenos, sem perceberem os efeitos que esta prática pode ter no desenvolvimento emocional e cognitivo das crianças. E com isto o telemóvel vai ganhando espaço como uma ferramenta comum até para bebés. Segundo a psicóloga Kyka Freyre, “o impacto do uso excessivo de ecrãs vai muito além da distração momentânea” (ver caixa).

A comerciante Cláudia Lopes, 28 anos, é mãe de dois filhos. A mais velha de sete anos, que frequenta a segunda classe no EBI de São Pedro, e o mais novo, de quatro anos, que se encontra matriculado no Jardim de Infância Brilho Celeste, também no mesmo bairro da cidade da Praia. 

Cláudia conta que o filho mais novo é “mais viciado” do que a irmã mais velha. Conforme relata, o desejo por telemóvel começou há cerca de um ano e que agora quando lhe é tirado o aparelho põe em marcha um “choro irritante”. 

“Ele gosta muito de assistir desenhos animados no Youtube e quando tiro dele o telemóvel, ele fica inconformado, irritado e muitas vezes acabo por lhe dar outra vez”, diz a mãe afirmando ser consciente dos riscos e que também esta prática não é uma boa conduta.

A nossa interlocutora relatou ainda a situação de um sobrinho de apenas nove meses que fica “quietinho” a olhar as telas, mas que, assim que lhe forem retiradas pela mãe, começa a chorar. 

Fala como nos desenhos animados

Outra mãe, Orisa Chaves tem uma menina de cinco anos. A mesma tem um pequeno negócio à beira da estrada, onde passa quase todo o seu tempo. E, por isso, deixa a filha no jardim, indo buscá-la no final da tarde. A partir daí, relata, a filha pede o telemóvel. Esta mãe conta que, às vezes, a menina a deixa dormir, apanha o aparelho e passa uma boa parte da madrugada a assistir vídeos.

“As vezes, quando estou muito ocupada, ela fica com o meu telemóvel. A principal diferença da minha filha antes desse contacto com aparelhos digitais é a linguagem; agora, ela comporta-se como nos desenhos, vejo nisso uma parte boa que é ela ter o contacto com o português”, relata, completando que a filha diz sempre ficar muito feliz quando tem o telemóvel e que gosta muito de jogar e assistir desenhos animados. 

Um cenário preocupante 

Outra mãe, Eduarda (nome fictício, pois preferiu anonimato) descreve um cenário ainda mais preocupante e que inclusive o filho de sete anos, que teve contacto com o telemóvel desde bebé já faz acompanhamentos psicológicos.

 “O meu filho fica de ombros caídos, não consegue andar bem, não se concentra em ler ou escrever no caderno porque a tela é mais atrativa, com imagens coloridas e em movimento. Ele não tem paciência para sentar e não aprendeu a escrever devido ao uso excessivo do telemóvel. Tem problemas de visão e até dificuldades motoras”, conta afirmando-se ciente dos danos que a dependência de dispositivos eletrónicos pode causar nas crianças.

Kyka Freyre

A visão da psicóloga infantil

A psicóloga Kyka Freyre explica que, ao consumir conteúdos ‘online’, as crianças ficam mais impacientes e irritadiças, com menor tolerância à frustração. Esta especialista em psicologia infantil reforça que os pequenos acabam por imitar comportamentos vistos em vídeos, muitas vezes com sotaques diferentes e expressões que não fazem parte do seu ambiente. 

“A exposição contínua às telas tem impactado não só a saúde física das crianças, mas também o seu desenvolvimento cognitivo e emocional,” afirma Kyka Freyre, completando que “quando a criança deixa de fazer atividades que gosta para apenas jogar, assistir ou teclar, estamos diante de um vício”. 

Continuando, ressaltou esta profissional que o uso contínuo de dispositivos eletrónicos gera uma descarga de dopamina, que proporciona prazer e que quando o telemóvel é retirado, a criança reage com irritabilidade devido à descarga de cortisol, o hormónio do stresse.

Consequências físicas e cognitivas

Kyka Freyre adverte ainda que os danos do uso excessivo das telas são múltiplos. “Dificuldades no desenvolvimento motor, na escrita manual e atividades que requerem precisão, sedentarismo, doenças como obesidade e hipertensão são alguns dos problemas observados. Emocionalmente, há um aumento de comportamentos irritadiços e impaciência. No âmbito social, as interações “face à face” estão a diminuir, resultando em dificuldades para fazer amigos e comunicar”, completou.

Freyre também chama a atenção para os perigos escondidos na internet, já que, conforme realçou, muitas crianças com apenas 11 ou 12 anos afirmam ter relações virtuais, sem que os pais estejam cientes do conteúdo a que estão expostas. 

“Os pais confiam demais nesse universo desconhecido e não conhecem verdadeiramente os filhos”, adverte.

Desconexão familiar 

Segundo a psicóloga, o problema não é a ‘internet’ em si, mas a solidão que leva as crianças a buscarem refúgio nas telas. As famílias, por vezes, coexistem na mesma casa sem interações significativas, e as conversas dão lugar aos chamados ‘emojis’, resultando na perda de laços afectivos. 

Conforme explicou, é comum ver crianças que, ao chegarem a um local, perguntam logo pela senha do Wi-Fi, evidenciando a dependência do mundo virtual. Para esta psicóloga, a solução não está em desligar o Wi-Fi, mas sim em criar laços mais fortes e genuínos com as crianças. 

“Uma criança preenchida de interações, sentindo-se apreciada, escutada e guiada, não necessita de se anestesiar no mundo virtual”, defende Kyka Freyre, aconselhando que os pais primeiro cuidem de si próprios para, então, serem capazes de se conectar verdadeiramente com os filhos.

Mais de 70% da população tem acesso à internet 

Dados mais recentes do INE indicam que 70,2% da população cabo-verdiana (a partir de dez anos) utiliza a Internet quase todos os dias. O acesso é maior no meio urbano, onde 74,7% dos inquiridos responderam que acedem à Internet, percentagem que cai para 56,1% no meio rural. Um dos principais meios de acesso é precisamente o telemóvel. 

Isto ajuda explicar, em parte, o nível de dependência que hoje existe em relação ao telemóveis e outros aparelhos, nomeadamente, entre as crianças, adolescentes e jovens. Afinal, a esmagadora maioria dos utentes navega utilizando o telemóvel, mesmo estando em casa. A utilização é mais expressiva nos jovens com idades compreendidas entre 15 e 34 anos, refere o estudo do INE. 

 

Elisa Moniz (Estagiária)

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