Por: Germano Almeida
Terminou com alegre circunspeção os dois dias de Jornadas da Justiça. Um dos presentes no evento referiu, em brejeira conclusão, não sei se apenas própria, se generalizada ao conjunto dos participantes, que a justiça é um bem de todos e, portanto, compete a todos cuidar dela. Sem dúvida! La Palisse não seria mais brilhante nessa ingénua conclusão que não poderá ser posta em causa por nenhuma sumidade intelectual, é daquelas certezas parecidas com a outra de se afirmar que a Terra gira à volta do Sol.
Mas já a segunda conclusão me parece mais pertinente, porque de efeitos práticos e urgentes: compete sobretudo aos magistrados cuidar para fazer da JUSTIÇA UM BEM DE TODOS! Porque os doutrinadores podem criar doutrinas muito belas, mas se essas doutrinas não forem aceites por aqueles que definem o direito no caso concreto, a saber, os magistrados, de nada valem essas doutrinações.
Um magistrado português já jubilado, mas que continua ativo na sociedade, o Dr. Álvaro Laborinho Lúcio, que foi, entre outras coisas, ministro da Justiça e diretor da escola de formação de magistrados em Portugal, fez há bem pouco tempo numa entrevista essa afirmação lapidar: “Temos de estar muito atentos aos fascistas que existem dentro de cada um de nós”.
Pessoalmente aderi sem reservas à grande verdade que existe nessa chamada de atenção: nos pensamentos fascistas que existem dentro de cada um de nós, mas que felizmente e na maioria dos casos não se transformam em atos.
Desde sempre tenho defendido, porque constatado na vida corrente, que crescemos e fomos formados, formatados seria melhor dito, dentro da doutrinação fascista de que “quem não é por nós é contra nós”; “melhor é obedecer do que mandar”; ”o indivíduo nada é perante o Estado”. Não é por acaso que o símbolo do fascismo é um feixe onde todos se encontram arrolados. E quem se permitir abandonar o feixe, está traçando o seu destino quando se permite desafiar a carga da violência dos poderes públicos que se unem como um só homem, como diria o MRPP, com o único objetivo de o destruir.
A ordem de “conter” o deputado Amadeu Oliveira que partiu do presidente da Assembleia Nacional é demonstrativa e exemplar dessa ideia e dessa necessidade de total e completa subjugação do inimigo. Na Idade Média, em muitos casos, além de literalmente esmagar e espalhar in partibus os restos do inimigo desfeito, chegava-se ao ponto de mandar salgar o lugar do patíbulo para que nunca mais ali se produzisse fosse o que fosse. No presente não se vai tão longe, porém, uma como que espécie de morte branca é decretada sobre o declarado inimigo.
Creio que não haverá dúvida em ninguém consciente de que, expressa ou tacitamente, houve e continua viva uma conspiração entre os diferentes poderes do Estado para, pelo menos, calar (conter!) o deputado Amadeu Oliveira.
Conforme uma página de uma edição do telejornal encontrável na internet, ele esteve acusado de 14 crimes de ofensa contra os juízes do supremo tribunal de justiça.
Ele proclamava em alta voz diante das câmaras: A Justiça não é séria, a Justiça não é honesta, deixam os processos prescrever, eles não querem responsabilização, eles funcionam como uma máfia, o Supremo Tribunal é fraudulento e criminoso… Ele proclamou no Parlamento: Estudei durante seis anos as falhas, as fraudes, os atrasos do STJ, porque tem falhas graves. Eu já ofereci a minha cabeça para ser preso, até estou estupefato porque ainda não fui preso… eu não sou obrigado a respeitar nenhuma ordem do ST que seja manifestamente inconstitucional e abusivo…
Foram ofensas, humilhações excessivas, ele nunca poderia ser perdoado. Seria exigir demais, exigir que homens normais como nós outros, tivessem senso suficiente para discernir e agir como juízes e separar as coisas e julgar o Amadeu Oliveira com equidade.
Mas talvez fosse exigir demais dos nossos juízes, esperar que agissem com sensatez num caso em que era evidente terem sido humilhados e vexados pelo réu. A gente ouve as intervenções de Oliveira no Parlamento depois do seu eufórico regresso da França, ouve e pensa, mas ninguém disse a esse fulano que ele estava a dar lenha a esse sistema que humilhou ou antes, se deixou humilhar escandalosamente, para que o queimassem? E sequer tiveram a dignidade de se declararem impedidos enquanto ofendidos!
Costumo dizer que tudo está nos livros, a gente já tem pouca coisa para inventar. E então penso no processo do Amadeu Oliveira e lembro-me da execução de Calígula, quando os nobres que ele humilhava de todas as formas e feitios, incluindo obriga-los a adorar o seu cavalo que tinha erigido em deus, finalmente decidiram mata-lo. Ele soube da conspiração, mas era tão grande o seu desprezo por eles que não acreditou que aqueles cobardes levassem até ao fim o propósito de o matar. Enganou-se! Amadeu também se enganou ao acreditar na seriedade de alguns juízes!
Depois do escândalo da saída do país, nas barbas das autoridades, de alguém que devia estar em prisão domiciliária, e sobretudo depois da desnecessária exibição do deputado no plenário do Parlamento, o sistema fechou-se num coro em busca de vingança e lançou sobre o deputado o juiz Simão Santos que, certamente sabendo-se mandatado e protegido nos seus atos, não cuidou nem se deteve diante de nenhuma ilegalidade: prendeu um deputado, como qualquer regime fascista faria!
A advogada dra Lígia Fonseca foi a única jurista que de alguma forma contestou a prisão preventiva do deputado Amadeu Oliveira ordenada pelo juiz Simão Santos. Reagiu com surpresa, disse a televisão, porque “a prisão preventiva não pode ser antecipação de qualquer pena”. “Em momento algum eu posso aceitar que a reposição da justiça se faça contra a realização da própria justiça”. Ela foi o único jurista a levantar a voz contra essa violência cometida por um magistrado que não só sabia que a lei não lhe permitia agir do modo perverso como agiu, como também que tinha especial dever de impedir a sua execução.
Todos aqueles que conhecem as leis terão acreditado que o juiz Simão Santos seria sancionado pela prática de um crime de prevaricação. Mas foi o contrário, ele foi promovido a conselheiro do Supremo Tribunal. E com ele começou o calvário de Amadeu Oliveira que, de degrau em degrau, foi descendo até chegar ao tribunal constitucional que viria a praticar o supremo milagre de transformar pão em pedra no memorável aborto que foi o acórdão que tentou salvar a honra do Parlamento criando “costumes” que eles mesmos meses antes tinham obstinadamente renegado. Por isso Laborinho Lúcio tem razão, é urgente combater os fascistas que existem em nós. E as jornadas sobre a Justiça poderiam ter sido uma excelente oportunidade para começar esse combate necessário.