Por: Joaquim Arena
Atravessou geografias e conheceu de perto a maior parte das figuras proeminentes que mudaram a literatura, a política e o pensamento do século XX: Fidel Castro, Che Guevara, Mao Tsé Tung, Jean-Paul Sartre, Ho Chin Minh, Albert Camus, Louis Aragon, Pablo Neruda, Jorge Amado, Aimé Césaire, Léopold Sedar Senghor, Edouard Glissant. Na sua passagem por Paris, nos anos cinquenta, o então jovem médico e futuro escritor cabo-verdiano, Henrique Teixeira de Sousa, cruzou-se com ele. E do encontro e do encanto do poeta haitiano, René Depestre, pela história das ilhas de Cabo Verde, resultaria a tradução para o francês do Poema do Mar, de Jorge Barbosa, publicado no Boletim de Cabo Verde.
Aos 98 anos, e alimentando ainda o sonho da ‘grande casa das humanidades’, René Depestre parece escolhido por uma providência qualquer para testemunhar, guardar e relatar a aventura do pensamento revolucionário do século XX. Recentemente, o realizador haitiano Arnold Antonin dedicou-lhe um documentário com título sugestivo: On ne rate pas une vie eternelle (algo como, Não se deve desperdiçar uma vida eterna). Dotado de uma prodigiosa memória, Depestre circulou entre as Caraíbas, a Europa e a América do Sul, levado pelas suas convicções políticas e a alegria de uma ‘poética geral da vida’. Da sua Jacmel natal, entre a baía e as montanhas verdes, até à tranquilidade sua casa de Lézignan- Corbières, no departamento de Aude, no sul da França, o poeta parece perseguir a eternidade. A eternidade do instante.
Uma vida iniciada na tradição oral que juntou o crioulo e o francês, o vudu e o catolicismo. E o que ele designa por ‘audience’ – a forma mágica, haitiana, de contar histórias. Vinda do francês, a palavra ganha novo significado no crioulo haitiano, passando a ser uma forma de narração popular. A ‘audience’ da infância haveria de se encontrar com o surrealismo de Aimé Césaire e André Breton, que fugindo aos escombros da Segunda Guerra Mundial, passa seis meses em Port-au-Prince, a capital haitiana (de Setembro de 1945, a Fevereiro de 1946). Mas também todas as suas leituras dos autores do século XIX, como Balzac, Émile Zola, Flaubert, Lautréamont, Jules Verne, Victor Hugo, Fenimor Cooper.
Primeiros poemas
René Depestre já tinha publicado os seus primeiros poemas – na linha de Rimbaud, Verlaine, Lautréamont, Lamartine – quando Aimé Césaire chega ao Haiti, para lhe abrir os olhos e ‘aliviá-lo’ do academismo e da poesia tradicional. É a descoberta do verso livre. Os novos poetas a seguir são Guillaume Apollinaire, Louis Aragon, Paul Éluard e todo o movimento surrealista. Com a chegada de Césaire descobre o quanto os poetas haitianos ainda são provincianos e a sua necessidade de entrarem definitivamente no século XX. O poeta da Martinica – e um dos fundadores da Negritude -, traz também consigo o conhecimento dos escritores negros americanos, da Harlem Renaissance, que vão igualmente influenciar o jovem Depestre. Após a morte do pai, farmacêutico, René deixa a mãe e os irmãos e vai viver com a avó materna, em Port-au-Prince, onde conclui o ensino secundário, em 1944.
No ano seguinte, aos 19 anos, publica o seu primeiro livro de poemas Étincelles, influenciado pelo realismo mágico do escritor cubano Alejo Carpentier. Logo depois, com mais dois amigos funda o jornal La Ruche, ‘para ajudar os haitianos a tomarem consciência das suas capacidades e a renovar os fundamentos históricos da sua identidade.’ A ousadia do pensamento e do texto livre incomoda demasiado os políticos. E é o início de um período de fugas, exílios, perseguições e ameaças de morte, por parte do governo do Haiti e de outras paragens. Reformado da Unesco, para onde entra, quando a vida lhe pede mais calma e um emprego fixo, e a viver no sul de França, desde o final dos anos oitenta, Depestre desenrola o carrocel que foi a sua vida.
Mas a sua expressão endurece quando o tema é o caos em que o Haiti está mergulhado. Fala em duplo sismo: o terramoto que devastou e empobreceu ainda mais o país (2010) e o sismo na forma de ‘um homem do Carnaval’ – Michel Martelly, que chegou à presidência do Haiti, (2011 a 2016). O poeta fala de um fenómeno de ‘carnavalização’ da história haitiana, a tragédia do Haiti. Nas suas palavras, duzentos anos depois da independência, conquistada à França a ferros e a sangue, os haitianos ainda não conseguiram construir uma nação. “Somos, quando muito, uma nação cultural…se estamos de pé é graças à cultura.” O que lhe traz alguma esperança. A cultura feita pelos artistas plásticos, músicos e escritores, acredita, acabarão por construir um ‘civismo’ haitiano. E este poderá levar à construção de um Estado de direito. A violência histórica e política, vivida pelo país, repete-se em diferentes ciclos, sufocando os haitianos.
A guerra contra a França, a reintrodução da escravatura por Napoleão, o terror herdado da Revolução Francesa, os ‘jacobinos negros’, como foram apelidados. Tudo isto antes de passarem a viver sob uma espécie de tutela das finanças, de bancos e bolsas internacionais. E antes de caírem nas mãos dos americanos, já no início do século XX. A solução agora, diz Depestre, passa pela ‘refundação’ do Haiti. Mas não através dos milhares de ONGs que se instalaram no país, mas sim juntamente com os haitianos. E face à fragilidade das instituições deita-se a mão à consciência cultural. Colocar os valores à frente do assistencialismo internacional, ‘modernizar a imaginação dos haitianos’. É o autor marcado pela insularidade, que fala do horizonte. Condição que faz com que o ilhéu tenha, defende René Depreste, mais poder de imaginação que os habitantes dos continentes. Apesar da sua obra maior, Hadriana de Todos os Meus Sonhos (Prémio Renaudot, 1988), cuja história decorre em Jacmel, durante o carnaval de 1938, ter sido escrito em França, longe da costa. O mar que o leva a imaginar outras ilhas crioulas, outra insularidade mestiça na costa da África, descrita e contada por Teixeira de Sousa, na época colaborador do Boletim de Cabo Verde.
Do erotismo fará poesia, na construção de uma cosmovisão lúdica e hedonista. Mas hoje, confessa, o poeta e o homem que o enforma, interessa-se por outras qualidades femininas, que não apenas o corpo: a sua cultura, a sua língua, maneira de ser, ‘sem mentiras, sem conquistas…’ Nunca foi um ‘conquistador de mulheres’, assegura, mas alguém que procurou sempre estabelecer com elas ‘contactos de ternura, de cumplicidade, de confidencialidade, como caminho para chegar ao acto físico.’ E é este acto físico que Depestre diz ter substituído o sagrado, na sua vida, quando esteve muito próximo da Igreja. Então renunciou à ideia do sagrado religioso, na acepção cristã, para adoptar o sagrado feminino, do qual resulta o acto sexual – ‘l’oeuvre du sacré par excelence.’
Sartre, Senghor e outros
E é durante a sua passagem por Paris, em 1950, como estudante bolseiro de Ciência Política, na Sorbonne, que o jovem Depestre discute política com Jean-Paul Sartre, Edouard Glissant, Senghor, e outros membros da intelectualidade francesa. Torna-se no líder dos Estudantes do Ultramar, por via das amizades não só com estudantes africanos, mas também vietnamitas, indo-chineses, marroquinos, argelinos, sul-americanos, antilheses. As discussões giram em torno das ideias independentistas do pós-guerra. A polícia convoca-o para lhe dizer que ele não é francês e por isso não tem nada que se imiscuir nos ‘affaires d’Outremer’ franceses. Do aviso feito, Depestre faz orelhas moucas. Certo dia, às quatro da madrugada, a polícia bate-lhe à porta, e dá-lhe 48 horas para abandonar a França. É a catástrofe para o jovem estudante.
A solução é recorrer ao amigo e poeta surrealista, Paul Éluard, que imediatamente contacta o embaixador da Checoslováquia, em Paris. Por seu lado, este consegue que o seu ministro conceda, ao abrigo da lei, o estatuto de exilado político para Depestre. Por esta altura, já tinha lido praticamente tudo sobre o marxismo e estudado o materialismo histórico: O Capital, de Marx, as obras de Lenine, a problemática do comunismo desde a Antiguidade Clássica, de Demócrito, Heráclito. Na Checoslováquia encontra não uma ditadura do proletariado ou dos trabalhadores, mas do comité central e do ‘bureau central’ do partido comunista checo, mantida também pela ditadura de Estaline. Depestre está chocado. Vive com a primeira mulher, Edith Sorel, uma judia de origem húngara, em Praga, na companhia de vários estudantes brasileiros, mexicanos e italianos.
Todos, naturalmente, estão contra as orientações do partido comunista checoslovaco. E é Jorge Amado, na altura a residir com Zélia Gattai num castelo para escritores exilados, que vai livrar o rebelde Depestre dos problemas com a polícia checa, na sua permanente revolta contra a ‘impostura’ comunista. René torna-se, então, secretário privado do escritor baiano, também com o apoio do partido comunista brasileiro. Mas a polícia checa desconfia que a esposa branca do jovem negro Depestre seja, na verdade, uma espia francesa. Quem também está de passagem pelo castelo dos exilados políticos é o poeta chileno Pablo Neruda. E chocado pelo tratamento que as autoridades locais dão aos exilados sul-americanos, durante um evento, com a presença do primeiro-ministro checoslovaco, Neruda decide então provocá-los. Incentiva-os a cantar os hinos republicanos espanhóis, da Guerra Civil, Los Quatro Generales, Non Passaran, etc. No dia seguinte, René Depestre e a mulher têm 24 horas para deixar o castelo.
Não podendo regressar ao Haiti, Jorge Amado consegue que Depestre e a esposa viagem para Cuba. Mas, mal desembarcam em Havana são logo presos pela polícia de Fulgêncio Baptista, acusados pela embaixada do Haiti de serem agentes de Moscovo. Algemados, são novamente expulsos de Cuba. Regressam então à Europa, de onde são também expulsos de Itália. Daqui entram, clandestinamente, em França, de onde são novamente expulsos. Na Áustria, para onde se mudam, participam no Congresso Mundial da Paz. Passam novamente por Praga, de onde voam para o Chile. É aqui que começa a ‘sul-americanização’ de René Depestre. Vai viver quase um ano em Santiago, tempo suficiente para ajudar Pablo Neruda a preparar o Congresso Continental da Cultura, em Abril de 1953. Após uma estadia na Argentina, onde se encontra com o poeta espanhol Rafael Alberti e colabora com a revista Sur, de Victória Ocampo, o casal chega ao Rio de Janeiro via o Uruguai, onde o espera Jorge Amado e Zélia Gattai. Vivem em Copacabana, muito perto do poeta e compositor Vinícius de Moraes, de onde se mudam para São Paulo e aqui ficarão por dois anos. Através do escritor Jorge Amado, René recebe uma formação junto do partido comunista brasileiro, inclusive formação militar.
E é graças às intervenções dos amigos Aimé Césaire e Leopold Sedar Senghor – este último agora muito influente na política da III República francesa- que René Depestre regressa a França. Os livros de poesia continuam a sair e em 1956 participa no Congresso dos Artistas Negros, na Sorbonne, em Paris. No Haiti, François Duvalier chega ao poder em 1957 e Depestre, juntamente com Edith e a sua biblioteca de quase 6 mil livros, chegam nesse mesmo ano ao país natal, para felicidade da família. Mas o presidente haitiano fica chateado por Depestre ainda não o ter ido visitar. Não perde mais tempo e convida o seu antigo parceiro do jogo de cartas para responsável da secção cultural do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Mas Depestre recusa. Depois de falar com a mãe, decide ir visitar Duvalier no seu palácio. O poeta fica abismado ao tomar conhecimento do programa político do ditador haitiano.
Duvalier oferece-lhe o posto de embaixador do Haiti em Paris ou nas Nações Unidas. Mas não gosta da reacção do amigo de juventude e a relação entre ambos fica tensa. Enquanto conversam, Depestre repara num revólver pousado ao lado de uma Bíblia, na secretária de Duvalier. E os problemas começam quando o casal recusa o convite oficial para um jantar com baile no palácio presidencial. A sua casa passa a ser vigiada pelos Tonton Macoute, a força paramilitar da polícia secreta de François ‘Papa Doc’ Duvalier. E é o chefe da polícia, amigo de Depestre, que o avisa de que corre perigo e para não ficar no Haiti. “Votre vie est en danger.” O poeta evita sair à noite, com medo de ser assassinado. Então, durante essas noites, em casa, Depestre escuta a Rádio Rebelde, da guerrilha de Fidel Castro, emitida a partir da Sierra Maestra. Descobre a revolução cubana e os seus líderes, através dos programas e entrevistas. É o único horizonte possível para ele: deixar o Haiti e juntar-se à guerrilha.
Fidel Casto e Che Guevara
A leitura de um artigo a favor dos rebeldes, publicado num jornal de Porto-au-Prince, leva Che Guevara e Fidel Castro a convidarem Depestre a juntar-se-lhes em Havana, já depois do triunfo da ‘revolución’. Através de um falso convite de Nicolas Guillén, para uma conferência literária, René Depestre deixa o Haiti rumo a Havana, onde ficará por quase vinte anos (e encontrar a sua segunda mulher, Nelly Compano) até ao célebre caso ‘Padilla’ (Herberto Padilla, poeta cubano humilhado e obrigado a retratar-se publicamente dos seus escritos ‘contra-revolucionários’, em Março de 1971) que irá dividir os escritores e a intelectualidade internacional de esquerda, de Jorge Edwards a Mário Vargas Llosa, Gabriel Garcia Marques, Júlio Cortázar, Régis Debray, entre outros. René Depestre será dos poucos a defender Padilla e a enfrentar Fidel Castro.
As viagens, as expulsões e perseguições terminam para o poeta de Jacmel, quando entra para a Unesco, de regresso a Paris, onde irá trabalhar ao lado de Henri Lopes, diplomata e escritor congolês. Em 1979, sai pela Gallimard o seu primeiro romance, Le Mat de Cocagne. Seguem-se L’ État de Poesie e outros livros de poesia, romances e ensaios, vários prémios literários, como o Renaudot para Hadriana de Todos os Meus Sonhos, em 1988. Para o poeta quase centenário, retirado na sua casa do sul de França, não adianta temer a morte ou inventar fantasias, livros (Bíblia e Corão), ou a eternidade, para tentar escapar à nossa morte. René Depestre, o homem das mil vidas e aventuras, socorre-se do filósofo alemão Nietzsche, para explicar que “a nossa vida é que é a vida eterna, enquanto falamos vivemos um momento de eternidade nesta conversa; viver ou morrer são aspectos vitais em si mesmo, são um falso problema, porque não temos respostas para isso, e não deve ser visto como um drama.”