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Cidade da Praia: Que futuro? (6)

Por: Cipriano Fernandes*

No último texto desta série cometi um lapso quando escrevi que não existem obras estruturantes feitas pelo MpD na região metropolitana da Praia. Efectivamente, existe uma, a recentemente inaugurada estrada asfaltada que dá acesso à Praia Baixo, no Concelho de S. Domingos. O seu a seu dono!

Feita esta correcção importa, também em abono da justiça, acrescentar a barragem do Salineiro à extensa lista de obras estruturantes feitas pelo PAICV na região da Grande Praia.

Por tudo o que já escrevi até agora, o que importa reter é que existem perspectivas de desenvolvimento regional que se abrem com a Sociedade de Desenvolvimento Regional (SDR) ora proposta pelos actuais autarcas dos municípios resultantes da divisão do antigo concelho da Praia, SDR essa que pelas vantagens que anteriormente descrevemos (e outras que nascerão das sinergias que naturalmente surgirão) permitirão, finalmente, o nascimento de uma nova capital de Cabo Verde.

Mas o percurso não tem sido fácil, e certamente não será. Existem muitas barreiras que, para serem ultrapassadas com sucesso, exigirão posturas, atitudes e comprometimentos até agora inexistentes na nossa classe política, mais exactamente, nos dois partidos políticos do arco da governação.

Desde logo existem barreiras legislativas que exigem concertação entre os deputados da Nação na Assembleia Nacional. A integração que temos estado a preparar nos últimos 3 anos inapelavelmente depende, em termos de instrumentos de gestão do território, da elaboração de um Plano Intermunicipal de Ordenamento do Território (PIMOT) que, para fazer sentido, NÃO PODE SER OPCIONAL. 

Ou seja, é necessário alterar a Lei das Bases do Ordenamento do Território e do Planeamento Urbanístico para que passe a estipular com claridade que quando dois ou mais municípios decidem elaborar um PIMOT, este significará a caducidade imediata dos PDMs até aí em vigor nesses municípios, passando esse PIMOT a funcionar, para todos os efeitos, como um Plano Director conjunto, valendo para toda a região em causa. Como está legislado na lei actual, os PIMOTs não têm força para anular qualquer PDM existente. 

A apresentação desta proposta de alteração legislativa compete aos Senhores Deputados pelo Círculo de Santiago-Sul na Assembleia Nacional e, naturalmente, impende sobre os eleitos por ambos os partidos do arco da governação. (Caveat: Um PIMOT vinculativo significará a base legal para se poder reverter a lógica da balcanização do território, sobretudo da ilha de Santiago, o que pode ser um incómodo para esses partidos, já que dos cinco novos municípios criados na ilha-mãe durante a 2ª República, os dois primeiros (S. Miguel e S. Domingos) foram da autoria do MpD e os três últimos (Ribeira Grande, S. Jorge dos Órgãos e S. Salvador do Mundo) foram obra do PAICV.

Como também já escrevemos anteriormente, o estado da cidade da Praia é calamitoso, por um lado com um caos fundiário impossível de ser controlado somente pela CMP, dada a recusa do Governo do Governo de José Ulisses Correia e Silva em permitir que a Polícia Nacional e as Forças Armadas ajudem a CMP a pôr cobro à situação e, por outro lado, com a falência generalizada de todas as suas infraestruturas, sempre mais evidente quando chuvisca. (Felizmente, até agora a misericórdia divina nos tem poupado, mas não sabemos até quando. Só Deus sabe o quanto NÃO estamos preparados para enfrentar enchentes sem incorrer em pesadas perdas humanas e materiais).  

Já vimos que o único remédio que resta à capital do país é expandir-se rapidamente, (forçosamente para territórios que já não estão sob o controlo do Município da Praia), para diminuir a pressão sobre o tecido já construído e gerar as receitas necessárias para financiar a regeneração da actual cidade. Hoje, por força do PDM em vigor, a gestão urbanística da capital se resume em regurgitar e ruminar bairros já consolidados, mediante uma perigosa prática de alteração de parâmetros urbanísticos (sobretudo ampliações verticais) para se poder atender às demandas sempre constantes e crescentes sobre um tecido urbano muito martirizado e caótico. É essencial que a capital de Cabo Verde tenha novos influxos de solo urbano em quantidade, para os mais variados usos, planeados com qualidade e geridos com muita responsabilidade, para satisfazer às demandas dos investidores, em geral, mas sobretudo dos nossos irmãos emigrados. Num mundo cada vez mais abertamente racista e hostil, é fundamental que mudemos a maneira de pensar e gerir as nossas pequenas ilhas para torná-las um refúgio seguro para todo e qualquer dos seus filhos que queira regressar para nelas viver com qualidade e segurança.

Nesta linha, urge estabelecer com muito rigor perímetros urbanos e a consequente dicotomia urbano-rural, essencial para a preservação do território, pois convém, o mais rapidamente possível, parar a indisciplina que tem caracterizado a ocupação do território, sobretudo na ilha de Santiago, onde abundam aglomerações de 10, 15 ou 25 casas (às vezes muito menos) em lugares impossíveis de infraestruturar com esgotos, por exemplo, o que compromete, a prazo, a validez dos lençóis aquíferos e a qualidade do território e o seu potencial de desenvolvimento sustentável. Uma das directrizes essenciais do PIMOT é disciplinar essa ocupação do território para, entre outras coisas, lançar as bases para finalmente sermos capazes de produzir o que comemos na região da Grande Praia e sair da dependência da ajuda alimentar, pois devia ser fácil de imaginar a catástrofe que será a situação alimentar em Cabo Verde com o eclodir de mais uma guerra mundial, cada vez mais iminente.

Em 23 de Junho de 2022, os Presidentes das Câmaras Municipais da Praia, S. Domingos e Ribeira Grande de Santiago se deslocaram a Lisboa, à sede do Instituto Superior Técnico, para aí assinarem um Acordo de Cooperação com essa mui prestigiada instituição de ensino superior e investigação, visando a elaboração do primeiro PIMOT de Cabo Verde. Dessa data até hoje, sob a liderança sábia do Professor Doutor Miguel Amado, o IST tem vindo a trabalhar connosco e mais não foi feito apenas porque (apesar da vontade e o compromisso dos três Presidentes e da Sra. Presidente da Assembleia Municipal da Praia, Dra. Clara Marques) a vontade política por parte dos restantes representantes eleitos do PAICV nos três municípios foi muito fraca e as deliberações que dariam a base de sustentação legal ao processo não saíram.

Sempre soubemos que na lei existente um PIMOT não faz sentido. Porém, sendo o único modo de resgatar a capital do país dada a brutal amputação de território de que foi vítima, estamos ainda a contar com a boa-vontade dos eleitos, tanto nas três Assembleias Municipais como na Assembleia Nacional para a viabilização do processo, que já tarda. 

É necessário aprovar, a nível das Assembleias Municipais, três deliberações sem as quais não é possível fazer avançar a integração regional e o boom de desenvolvimento sustentável de que a região da Grande Praia e Cabo Verde carecem hoje: Uma que autorize a elaboração do PIMOT, outra que autorize a constituição da respectiva Comissão de Acompanhamento e uma última que autorize a criação de um Gabinete Técnico Intermunicipal (GTI), uma entidade técnica com a autonomia para elaborar o PIMOT e outros instrumentos de gestão territorial de escala maior (Planos de Desenvolvimento Urbano e Planos de Pormenor) sempre com o foco em apresentar aos donos dos terrenos uma visão de desenvolvimento global do desenvolvimento em que todos se revejam e que acautele os seus legítimos interesses. 

Por outro lado, a colaboração do Instituto Nacional de Gestão do Território (INGT) tem sido praticamente inexistente, senão hostil, com a agravante de ter recusado receber a delegação técnica do IST, chefiada pelo Prof. Miguel Amado, na sua primeira deslocação de trabalho à nossa região, em Dezembro do ano passado. 

Existem, pois, bastantes razões para que, independentemente do resultado das próximas eleições autárquicas e das eleições legislativas em 2026, a nossa classe política, em geral, se conscientize de que as mudanças que já tardam para a viabilização da Praia como capital são incompatíveis com o estado de permanente guerrilha institucional que caracteriza as relações entre os nossos dois partidos do arco da governação. Está demonstrado com clareza que ambos se empenharam activamente num processo de sabotagem profunda da nossa capital até agora. Cabe-lhes, também juntos, parar de cavar o buraco em que nos meteram e, eventualmente, se redimirem. 

No dia 28 de Maio de 2015, a jornalista da TCV, Margarida Fontes, convidou-me a mim, ao Arquitecto Alberto Melo (então Vereador das Infraestruturas da CMP) e ao Dr. Pedro Moreira para um debate no seu programa “Conversa em Dia”, sobre o estado da cidade da Praia. Esse vídeo está preservado no Youtube para quem quiser revisitá-lo hoje, mais de 9 anos depois.

Nesse debate o Arq. Alberto Melo descreveu exactamente o que, em seu entender, era necessário acontecer para que finalmente fosse criado o ambiente institucional propício para a resolução do mais grave problema da Praia, a ocupação clandestina de terrenos. 

Passo a transcrever um minuto significativo das suas declarações (entre 22:33 e 23:33): 

“Acredito que tem que ser uma outra política de junção das energias, das forças e com vontade. Não é só chegar no período das eleições, tentar tirar dividendos políticos em relação às construções clandestinas. ‘Ah! a Câmara! Ficar a apontar o dedo à Câmara, que deixou que a Praia construísse várias casas clandestinas, tentar tirar dividendos políticos com afirmações em relação às construções clandestinas. Acho que a Câmara sozinha não dispõe de recursos nem capacidade para poder estancar esse crescimento. Esse crescimento (sic) tem que ser feito junto com o plano, juntamente com o governo, de mãos dadas, com todas as forças, com polícias, com Guarda Municipal, juntos. E tem que ser uma bandeira nacional, tem que ser uma bandeira da cidade, uma bandeira nacional de Cabo Verde”.

Não é possível deixar de concordar com ele. Mas isto aconteceu em Maio de 2015, ainda com o PAICV no poder. Um ano depois o MpD assumiu o leme do país, com maioria absoluta, continuando ainda firmemente no controlo da capital.

A pergunta que não cala e que o Arq. Alberto Melo (que já está activamente a visitar os bairros da cidade na pré-campanha para um eventual retorno do MpD ao controlo da CMP) precisa responder hoje é por que razão tudo piorou em termos de construções clandestinas na Praia, entre 2016 e 2020, sob Óscar Santos, e com ele próprio como Presidente da Assembleia Municipal? Como foi possível esquecer esta tão eloquente declaração de que o combate às construções clandestinas na Praia “tem que ser uma bandeira nacional”? Por que razão enquanto Presidente da AM não exerceu a mínima influência junto do Governo central para que o MpD, no controlo dos recursos necessários, tanto do Governo da República como da CMP, atacasse o problema de frente para o resolver de vez?

Esta ilustração visa chamar a atenção dos nossos actores políticos para o espectáculo que têm dado ao mundo com tanta incoerência e descaso relativamente aos problemas dos munícipes praienses e da cidade.

Porque muitos cidadãos estrangeiros, entre nós e não só, estão a contemplar esse espectáculo e a perguntar-se, por exemplo, isto: Como é possível haver tanta gente em risco brutal de vida se (e quando) chover a sério quando existem, dolorosamente baldios e sob o controlo do Governo central, perto de 1400 hectares de terreno seguro e de alto valor cénico e patrimonial, do Santiago Golf Resort (595 hectares) à Ponta Bicuda (mais de 170 hectares) ambos com vista para o mar, passando por S. Jorginho (605 hectares), terrenos esses que resolveriam os problemas da população e mudaria, para melhor, o destino da cidade, de um dia para o outro?

Em Setembro de 2005, chegou a Cabo Verde um novo Embaixador dos Estados Unidos da América, Robert D. Pierce de seu nome. Ele permaneceu por cá até Junho de 2008. Durante todo esse período, sob a minha batuta, a Ordem dos Arquitectos de Cabo Verde (OAC) incomodou muita gente, denunciando a ausência generalizada de planos de ordenamento do território (tanto a nível nacional como a nível municipal) e a VENDA de terrenos com potencialidade turística nas ZDTIs.

O Sr. Embaixador Pierce chegou e ficou tão perplexo com o aspecto caótico da nossa capital que convidou o então Ministro do Ordenamento do Território, Ramiro Azevedo, a lhe explicar as razões desse caos. 

Não sabemos o que o Ministro Azevedo lhe respondeu, mas podemos imaginar. O facto é que nos sentimos, na OAC, compelidos a solicitar ao Sr. Embaixador Pierce uma audiência para lhe darmos, de um outro ponto de vista, dados que certamente o terão ajudado a perceber melhor o problema que o incomodava. Inclusivamente, pedimos-lhe a ajuda dos Estados Unidos para que o nosso país tivesse melhores chances de sucesso na gestão do seu território.

“So, there are people watching…”

Mudemos o chip! 

Praia, 7 de Outubro de 2024

(continua…) 

*Arquitecto, director do Planeamento do Território e Habitação da Câmara Municipal da Praia

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