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Outras vozes, outras vidas: Cesária em Tiradentes

Por: Joaquim Arena

Ao entrar no carro, que me aguarda no Aeroporto de Confins, em Belo Horizonte, Brasil, fico a saber que o passageiro do dia anterior, o jovem pianista japonês Ryutaro Suzuki, um dos nomes sonantes desta edição do Festival Artes Vertentes, em Tiradentes, ficou sem a mala. Contrariedade maior para quem viaja de avião. Ryutaro viajou dos Estados Unidos para Tiradentes na companhia do violoncelista francês Guillaume Martigné. “Esse aí só tava preocupado com o seu instrumento, mas no final deu tudo certo”, conta Emílio, o motorista. 

Atravessando Minas à noite, Tiradentes surge como uma cidadezinha perdida no meio das sombras e feita de ruas de um tempo ido. Mais para o centro, turistas vindos de São Paulo, Rio e BH, como se referem a Belo Horizonte, a capital do Estado de Minas Gerais, preenchem as esplanadas e as ruas em volta, com música e ambiente festivo. A 13ª edição do Festival Artes Vertentes já foi inaugurada e o tema, a Alteridade, junta músicos, escritores, actores, encenadores, artistas plásticos, videoastas, curadores, pensadores, nesta cidade barroca de pouco mais de 10 mil habitantes, situada na antiga Estrada Real, por onde descia a riqueza das minas para embarcar rumo a Lisboa, nos portos de Paraty e Rio de Janeiro. 

Mas, na manhã seguinte, a primeira luz revela-nos uma cidade-museu a céu aberto, fresca, florida e ajardinada, cenário de filmes e telenovelas (Memorial de Maria Moura, Ilda Furacão, etc.), que dariam início à compra desenfreada de casas e casarões do século XVIII, “ao preço da banana, seu Joaquim”, como me afiança Emílio. E é neste cenário de filme de época, agora nas mãos de comerciantes vindos do Rio de Janeiro e de São Paulo, que os visitantes se deliciam com a arquitectura e as calçadas em lajes de pedra, lojas de artesanato, de doces e chocolate, de centros culturais em todas as esquinas, galerias de arte, cafés com pátios deslumbrantes e cobertos por árvores centenárias, com vista para a serra de São José. 

O que nos leva a pensar o que fazer das nossas Nova Sintra, Ribeira Brava ou São Filipe. Na manhã de domingo, assistimos ao concerto Ludus tonalis, na igreja de São Cristóvão – uma das várias existentes na cidade – pouco antes do meio dia. Ryutaru e Guillaume juntam-se ao pianista russo Jakob Katsnelson e a Fábio Ogata (trompa), Ara Harutyunyan (violino), a bielorussa Dária Filippenko (violino). As obras são de Bach, Hindmith, Beethoven e Mozart – para abrir o apetite para o almoço.

Para além concertos de música de câmara, durante uma semana sucedem-se exposições, sessões de cinema, leituras, lançamentos de livros e debates à volta dos seus temas, em pátios, salões e outros pontos diferentes da cidade. Escritores e escritoras falam das suas obras e motivações. O tema da Alteridade traz a abordagem do outro, a empatia ou a falta dela,  entrando pelas minorias étnicas, políticas, sexuais e raciais, a partir de pontos de vista separados geograficamente, mas em sintonia quanto às suas representações – enquanto discurso de reivindicação do lugar de cada um na sociedade. O intelectual indígena brasileiro Ailton Krenak ‘roeu a corda’, diz-me, explica um membro da organização, e preferiu entrar online, na discussão sobre as cosmovisões deste Brasil e das ilhas do Atlântico. A sala cheia indica que a audiência conquistada online, durante a pandemia, continua fiel ao mais recente membro da Academia Brasileira de Letras. 

Mas, noutras paragens, a poesia revela-nos como a ausência de alteridade se reflecte na história pessoal dos próprios poetas. Egana Dzhabbarova, 28 anos, é russa e filha de pais azeris (Azerbeijão). Lésbica assumida e perseguida na Rússia de Putin, reside numa casa para exilados, em Hamburgo, na Alemanha. Ghayat Almadhoun tem 45 anos, poeta sírio-palestiniano, de nacionalidade sueca e globe trotter da poesia em língua árabe pelo mundo. Se Egana, ao saber de onde venho, se apressa a falar-me das suas reflexões sobre o ‘colonialismo russo’ e das relações entre russos ‘brancos’ e os das mais variadas origens, como ela, e das casas em Moscovo para arrendamento ‘só para caucasianos’, o sírio-palestino Gahyat quer saber tudo sobre Cabo Verde. 

Conhece Cesária Évora, a melodia universal da morna, o apelo da distância e a nostalgia de um tempo de paz e liberdade, antes do Nakba, da catástrofe. Daí o interesse maior. Escuta-me com a curiosidade de um vendedor de especiarias. A sua poesia pede ‘desculpa pelos nossos corpos despedaçados que entram pela vossa casa, nas notícias, diariamente, e pelos soldados israelitas que apertam os botões que lançam as bombas sobre bairros…” Mas, não confundir, confessa, porque ele detesta mesmo o activismo. Os seus vídeo-poemas, filmados nas ruas de Beirute, Damasco, Gaza e projectados em paredes seculares de praças de Tiradentes, são obras de arte. ‘Valem sobretudo pela estética e não como poemas planfetários’. Lembrei-me, por instantes, de Jorge Barbosa, e quase lhe falei do autor cabo-verdiano. Do alto do seu metro e noventa, Gahyat assume-se ao mesmo tempo poeta e a “versão árabe de Nicholas Cage”, tal a semelhança com o actor americano, para riso de todos. 

No entanto, deixa cair o convite ‘envenenado’ para estar na mesma mesa redonda que a escritora israelita Tal Nitzan, acabada de chegar ao Festival. A questão nem é pessoal, diz Ghayat. Nitzan, poeta, romancista e tradutora várias vezes premiada, traduzida em mais de vinte línguas e a maior tradutora de literatura hispânica para o hebraico, é uma feroz opositora de Bibi Netanyahu. O problema, como explica o sírio-palestiniano, é o seu próprio grupo étnico. “Mal soubessem disto e eu seria automaticamente cancelado por todos os palestinianos”, explica. A azeri Egana Djabbarova podia ser turca, iraniana ou de outra república da Ásia Central, como o provam as sobrancelhas carregadas, o cabelo escuro, nariz e lábios grossos, apesar de escrever em russo e ter nascido em Moscovo. 

Acaba de ver a sua primeira colectânea de poemas (Rus Bala, em português Criança Russa) editada em português, lançada no Brasil, com uma tradução a quatro mãos por Maria Vragova e Prisca Agustoni (Prémio Oceanos 2023, Poesia). Os temas que aborda, explica, são delicados numa sociedade como a russa: o papel da mulher, o feminismo, a homofobia, a imigração, fronteiras visíveis e invisíveis, e a decolonialidade. Ou seja, tem tudo para ir parar à prisão. Alguém recorda-lhe o tempo em que os escravos da cidade de Tiradentes só podiam caminhar pelos becos para se encontrarem com os seus senhores. Daí os vários becos que a cruzam em todas as direcções e que levam à igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, frequentada pelos escravos, com a sua simbologia católica e africana. 

Por estas noites, a poesia também é dita no início de cada concerto, na igreja de São Cristóvão (que agora, dizem, serve mais às artes do que às inquietações das almas), na língua original russa, alemã, hebraica e árabe e traduzidas para o português. A sessão musical Notas do Cárcere, pelas mãos dos músicos Jesus Reina, Dária Filippenko, Samuel Silva, Jacob Katsnelson, Gustavo Carvalho e Hércules Gomes, evoca os compositores Fredrik Satie, Bach, Schubert, Beethoven (que também passaram pela cadeia), Chiquinha Gonzaga e Freitas. À noite, na casa transformada em cantina, sala de ensaios e espaço de convívio dos artistas e escritores convidados, ficamos a saber que a mala de Ryutaru finalmente lhe chegou às mãos. Já pode arrumar a camisa florida ‘estilo Mandela’ comprada de emergência. 

Alguém da organização informa todos de que o escritor cabo-verdiano toca mornas e o movimento dos admiradores de Cesária acerca-se, expectante, quando um violão surge na sala. Os pianistas Jacob, Gustavo e Ryutaru, a violinista Dária e o violoncelista Guillaume distinguem-se no domínio do seu instrumento e visão artística, de acordo com o programa do Festival, e receberam prémios internacionais. São considerados, e isso pudemos confirmar, entre os melhores executantes da música de câmara, da sua geração, com concertos em todas as grandes capitais do mundo. No entanto, as mornas Sodade e Mar Azul, arranhadas pelo escritor das ilhas, conseguem silenciar a sala e por instantes afastar as sombras de Bach, Beethoven e Schubert.

Egana Djabbarova parece esquecer, por momentos, o seu exílio em Hamburgo, tal como o sírio-palestiniano Ghayat e as suas causas, ambos emocionados pela melodia. As escritoras Tal Nitzan e Marina Sakalova (russa radicada na Suíça), sentaram-se no chão, encostadas à parede, e os pianistas Ryutaru, Jakob e Gustavo, e a violinista Dária Filippenko, aproximaram-se e escutam sentados, concentrados. Os olhos no violão ou no soalho, seguindo as palavras e a música das ilhas, pela voz não da Cesária, mas de um escritor das ilhas. Quando já atravessava as colinas esverdeadas de Minas, serpenteadas pela BR 040, a estrada que liga Brasília ao Rio de Janeiro, recordei-me de alguém que disse que, tal como o Brasil e Cuba, Cabo Verde é e será sempre um país musical, independentemente da qualidade da sua literatura. 

Uma morna, amadora e razoavelmente executada, dada antes a conhecer ao mundo na voz da sua maior intérprete de sempre, pode ainda deixar marcas mais profundas do que excertos das páginas de um romance histórico. Mesmo com a ressonância e o testemunho de anjos e santos da nave de uma igreja barroca. A prova de que parte da nossa literatura também é feita de sons, gestos e melodias. Tudo envolvido em sentimentos, tragédias e paixões, que levam as nossas histórias para lá dos mares do planeta e dos Montes Urais, dos desertos do Levante, dos cerros e das chapadas brasileiras.

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