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Governance da Segurança: apontamentos sobre a dimensão política da segurança humana na realidade cabo-verdiana

 Por: José Rebelo*

Como a ausência de confiança nas instituições políticas eleitas e não eleitas, pode afetar uma democracia jovem e um país economicamente frágil como Cabo Verde?

A segurança humana é um conceito que ganhou nova dinâmica com o relançamento do debate teórico sobre a noção da segurança que envolve a comunidade internacional. Ao contrário de uma abordagem tradicional de segurança que se limita à defesa territorial e à proteção do Estado, a segurança humana busca estabelecer o foco nas condições necessárias para que os indivíduos possam viver sem medo ─ freedom from fear, com dignidade e sem privações ─ freedom from want, e capacitado para agir e ajudar o outro a agir e exigir do Estado a necessária proteção ─ freedom to act (PNUD, 1994). 

As suas dimensões mais distintas valorizam a garantia da segurança económica, ambiental, alimentar, pessoal e comunitária, não menos importante, a segurança política (Kofi Annan, 1995). No contexto atual, a governance da segurança, nomeadamente, da sua dimensão política, emerge como um aspeto crucial e transformacional para as dinâmicas internacionais importantes para o desenvolvimento (Buzan, 1988), válidas também para um Estado como Cabo Verde. 

Na sua veia imperativa da relação cooperativa supraestadual, infraestadual e da participação cidadã (Santos, 2015), a importância direta, como a dimensão da segurança política é ou deve ser interpretada, impõe refletir sobre os aspetos, indispensáveis e de cruciais importância, da visão emergente da governance (Banco Mundial, 1994) no quadro do diálogo construtivo que a sociedade pós-moderna requer.

Numa imersão analítica e opinativa, os fundamentos teórico-hipotético da presente abordagem assentam sobre a observação da dimensão política da segurança humana em Cabo Verde, na forma como a ausência da confiança nas instituições políticas tanto eleitas quanto não eleitas, pode estar a impactar a estabilidade de uma democracia jovem e a resiliência de um país que, apesar de significativos ganhos alcançados, ainda conserva vulnerabilidades consideráveis em vários domínios.

A teoria ‘duvergeriana’ sobre a representatividade política já questionava sobre a governabilidade e a estabilidade política, alertando para o facto de contexto bipartidário onde as decisões possam não refletir a diversidade das opiniões da população, a desconfiança institucional pode levar a população ao desencanto, tornando-a menos propensa a participar no processo democrático, tanto por meio do voto quanto da participação civil ativa (Duverger,1917–2014). Seria esta uma situação aplicável a situação contextual do país?

Cabo Verde exercício do poder político e democracia

Cabo Verde tem experimentado, desde a independência em 1975, formas de exercícios de poder político, caraterizadas como relativamente estáveis, marcadas por uma transição própria do regime (Miranda, 2005) e por alternâncias democráticas sem sobressaltos, desde 1992. 

O país, já ocupou a posição 23.ª da democracia global entre os aproximadamente 168 países avaliados no ‘ranking’ da democracia (Economist Intelligence, 2016), uma das primeiras entre os países africanos e por algumas vezes a mais bem avaliada entre os países de língua portuguesa. Ocupa atualmente a 35.ª posição a nível do mundo (Economist Intelligence, 2024), com ganhos marcantes nos quesitos, Processo Eleitoral e Pluralismo, Liberdades e Respeitos pelos Direitos Humanos. Contudo, uma nação jovem e com uma faixa significativa da população (32%) a viver ainda na pobreza (INE, 2023), diante da fragilidade económica e agravada por fatores externos e crises globais, começam a surgir sinais visíveis de alguma preocupação. 

A ausência da pedagogia política passível de serem observada na competitividade discursiva e nas práticas quotidianas, na forma como das disputas ideológicas bipolarizadas, quando observada a partir dos indicadores produzidos (INE e AFROBARROMETRO, 2001–2024), sugerem perdas contínuas de confiança dos cidadãos nos atores políticos eleitos e não eleitos. Hipoteticamente, tais perdas de confiança são frutos de ineficiência e/ou desvio dos fins que, existindo, sustentaria a boa relação entre os representantes e os representados.

Dos indicadores atuais sobre segurança, paz e governance 

Não obstante, se tornar comum referir–se a perda de confiança nas democracias mais maduras como um fenómeno comum e cujas causas se atribuem aos efeitos da globalização, em Cabo Verde, sem prejuízo de outros fatores, a desconfiança reinante nas instituições, entretanto, parece envolver questões básicas a reclamar devida atenção. 

No capítulo Direitos Humanos e liberdades individuais, fora as avaliações positivas para liberdade religiosa (72,9%), eleições livres e transparentes (58,0%) e a liberdade política (56,3%), os inquiridos acreditam que, a liberdade de imprensa (38,3%), a liberdade de expressão (36,2%), o alcance das avaliações sobre a liberdade contra a discriminação (31,8%) e a igualdade perante a lei (29,2%), estejam muito a quem do que seria expetável para a lealdade da representatividade no Estado poder político.

No concernente à Integridade e Transparência (Corrupção), segundo a população de 18 anos ou mais inquiridas que tiveram contactos com as instituições assinalam uma significativa perceção que entidades públicas estão envolvidas em corrupção, como sejam os casos das Autoridades Fiscais e Aduaneiras (64,1%), Polícia (61,3%), Funcionários Municipais (55,4%) e os Representantes do Governo Nacional (52,8%).

Não menos preocupante, ainda que de maneira moderada, quando comparado com os demais, a perceção do nível de corrupção afeta também os Juízes, Procuradores e Oficiais de Justiça (40,7%), sinais, que pela natureza das respetivas funções, deixam sérios avisos para a importância da integridade e transparência do sistema. Valores menos expressivos, sobre o setor da Saúde (25,7%), Segurança Social (25,6%) e Educação (23,8%) não desmerece atenção a respeito, quando sobre os Funcionários Públicos (de forma geral) recaem 46,0% de perceção da corrupção.

Em consequência, o nível de confiança da população acima da média se verifica apenas no setor da Educação (73,7%), Segurança Social (55,8,7%) e saúde (53,5%). A confiança na governance situa–se abaixo da média em segmentos fundamentais como os dos Representantes do Governo (41,7%), Polícia (40,4%), Serviços Municipais (35,2), Tribunais e Procuradorias (32,6%) e Autoridades Fiscais e Aduaneiras (31,5), (INE, 2024), factos que demonstram algum desconforto na margem da confiança no poder representante.

O facto, é que num período relativamente curto, depois de uma melhoria significativa, a queda dos indicadores começa a suscitar algumas preocupações. Apesar de a larga maioria dos cabo-verdianos verem inequivocamente a democracia representativa como o melhor regime, dados do último inquérito da INE indicam que, na generalidade, apenas 14,2% da população de 18 anos ou mais tem a perceção de que os políticos respondem verdadeiramente às preocupações e às necessidades da população (INE, 2024), tendência esta, em queda, que estudos antecedentes já haviam dado sinais de amostras. 

A desconfiança sobre o sistema gera algum alerta no nível de risco da consolidação democrática e na dimensão da segurança política. A sacrossanta realização periódica das eleições, com uma transição de regime e alternâncias sem sobressaltos, que constituíam até então, evidências demonstrativas, de uma segurança política e estabilidade do país pode estar a ser colocada sob alguma pressão, pese embora, uma abstenção eleitoral tendencial de aproximadamente 40% seja demonstração já registada da pertinência de uma melhor mobilização/engajamento a respeito. Dada às fragilidades identificadas, alguma dúvida sobre a capacidade da resiliência do sistema, despertam, por isso, alguma carência de vigilância e sugerem medidas urgentes para os desafios a pairar sobre a segurança política. 

Ausência da confiança e os hipotéticos desafios e constrangimentos

Ainda que longe de qualquer ideia de rotura institucional ou de acesso subversivo ao poder por meio de golpes, amostras significativas começam a surgir, recomendando cautelas em como a representação defeituosa poderá estar a gerar insatisfação ou os supostos desvios dos fins estejam a deteriorar cada vez mais a perceção dos índices de satisfação dos cidadãos. 

Alertas de analistas, já sugeriram que a história política do país já foi marcada por mais rigor na gestão da coisa pública, onde os representantes das administrações políticas tinham mais consciência de que o bem que gerem eram de todos. Diante do cenário, torna–se inevitável uma governance da segurança política que mobilize a capacidade ética do Estado para implementar políticas, controlá-las e avaliá-las com regularidades (Lima, 2017), para tanto promover o bem-estar das pessoas, como garantir também a liberdade, a ausência de medo e a capacitação do cidadão para agir e exigir do Estado a necessária proteção (PNUD, 1994). 

Quando vários relatórios publicados evidenciam extinção de processos por arquivamento devido a decursos de prazos ou a justiça não decide ou decide tardiamente por falta de meios ou por motivos que suscitam dúvidas relativamente a outros processos, quando análises de conteúdos mediáticos dão conta que as próprias decisões dos tribunais são engavetadas ou não cumpridas, haja denuncias públicas de administradores públicos que decidem por conveniência, certo das fragilidades do sistema judiciários, onde a lei é derrogada e os conceitos interpretados aleatoriamente, sem que quem tenha poder atue, estas não deixam de representar constrangimentos visíveis à dimensão da segurança política.

Na ausência da incapacidade de controlo hierárquica, quando abundam denúncias de suspeitas de contas públicas cujos saldos não batem certos, onde o zelo seja instrumento de condicionamento às realizações de direitos individuais ou os sonhos e o carater podem ser passíveis de assassinatos e quem tem obrigação e dever de intervir ou mandar parar, não o faz, numa sociedade pequena, quando de tais se suspeitam ou aconteçam, os mesmos não passam despercebidos.

Não menos alarmante, a ausência de consenso que têm dificultado a indicação e substituição de órgãos fundamentais e importantes à governance, sejam dos Órgãos Externos ao parlamento como sejam a Comissão Nacional de Proteção de Dados – CNPD, Agência Reguladora para a Comunicação Social – ARC, Comissão Nacional das Eleições – CNE e outras reguladoras, ou ainda de departamentos governamentais, como o caso de Conselheiro Nacional de Segurança – CNS e a Inspeção Geral da Administração Interna – IGAI, sem titulares, há mais de quatro anos, a conformidade da importância do controlo de qualidade para a segurança das políticas, fica gravemente abalada.

Nenhum ato violador da dignidade da pessoa humana é banal.  A expressão da confiança nas instituições que o cidadão membro do – Estado Comunidade faz sobre o Estado Poder Político (Gouveia, 2018) é importante para a segurança. Sem uma governance íntegra, transparente e eficaz, sem os instrumentos que garantem o dever da moral ética do Estado para a suficiência, mas, que também evite os excessos (Fontes, 2018), as consequências podem ser desastrosas para a segurança política e para a democracia do país.

Como a ausência de confiança pode afetar a democracia e o país 

Quando os cidadãos sentem que as suas vozes não são ouvidas e que as instituições não estão ao serviço do bem comum ou haja défice de estruturas orgânicas indispensáveis, eles podem optar por alternativas não institucionais para expressar o seu descontentamento (Duverger,1917–2014). 

Tal situação, por sua vez, pode resultar em instabilidade social, aumento dos protestos e, em casos extremos, na violência. As manifestações são reflexos de uma crescente frustração com instituições que não atendem às expectativas do povo. Em Cabo Verde, a confiança nas instituições é vital para garantir um ambiente onde a governance da segurança política seja inclusiva e responda às necessidades dos cidadãos. 

A ausência de confiança também afeta diretamente as políticas de segurança e a capacidade do Estado de proporcionar uma proteção eficaz. Se a população não confia nas forças de segurança e nas instituições encarregadas de zelar pela ordem pública, a eficácia das políticas de segurança humanas reduz significativamente. A criminalidade, pela incidência tendencial de 7 mortes por 100 mil habitante – segundo os dados assumidos da Polícia Nacional e de 11 homicídios simples e qualificados, consoante análise dos dados do Conselho Superior do Ministério Público, eleva a classificação insegurança, a luz dos parâmetros aplicáveis, para um nível endémico ou preocupante. 

Sem a confiança, os cidadãos hesitam em colaborar com as forças de segurança, dificultando a identificação de criminosos e a implementação de programas de prevenção. Além disso, a instabilidade política gerada pela falta de confiança nas instituições pode desviar a atenção do governo das questões económicas essenciais. Num país onde a economia depende fortemente do turismo e de remessas, qualquer sinal de instabilidade pode originar um efeito cascata prejudicial à economia. 

Uma democracia jovem e uma economia frágil são, portanto, permeáveis a falta de confiança nas instituições. Se o investimento estrangeiro diminuir, o turismo pode sofrer e, as condições económicas deterioram–se, resultando numa pobreza que, por sua vez, gera mais insegurança e instabilidade, fugas de quadros necessários, emigrações inconvenientes e imigrações oportunistas.

Frente a estes desafios, é imperativo que Cabo Verde continua a investir no fortalecimento das suas instituições políticas. Programas de controlo de integridade, transparência e prestação de contas, que aumentem a participação cidadã em processos decisórios, são fundamentais para reconstruir a confiança em queda nas instituições. 

O engajamento da sociedade civil na elaboração e implementação de políticas públicas pode contribuir para a criação de um sistema político mais inclusivo e responsivo às necessidades da população. Além disso, a educação cívica e a promoção do diálogo entre cidadãos e instituições também são essenciais para fortalecer a confiança mútua e fomentar um ambiente democrático saudável e menos bipolarizado.

Conclusão

Em conclusão, a boa governance da segurança humana em Cabo Verde está intrinsecamente ligada à saúde da sua democracia e à sua capacidade de sustentar uma economia resiliente. A ausência de confiança nas instituições políticas, sejam elas eleitas ou não, associada a bipolaridade política –discursiva e prática que apenas privilegia o poder na ideia do “novo tribalismo” – nosso ou dos que são nossos, avesso à construção de consenso representativo e à contribuição cidadã, não apenas pode comprometer a segurança humana como também ameaça a estabilidade, segurança política e económica do país e a democracia. 

Enfim, é dever da liderança consciente, perceber a situação e promover a retoma da renovação da confiança, que assegure a construção de uma democracia sólida e a proteção efetiva dos direitos dos cidadãos. A única forma sustentável de promover a segurança política é por meio de instituições que não só funcionem, mas que também sejam percebidas como efetivamente, íntegras, justas e representativas. 

“Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”!

BIBLIOGRAFIA E OUTRAS REFERÊNCIAS

AFROBARROMETRO (2001–2024), Inquérito sobre Segurança, Paz e Governance, 2001–2024.

ANNAN, Kofi (1995), Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 1995.

BUZAN, Barry, Security: A New Framework for Analysis, London, 1997.

CONSELHO SUPERIOR DE MINISTÉRIO PÚBLICO (2014–2024), Relatório Anual da Procuradoria–Geral da Républica, Praia, Cabo Verde, 2014–2024.

DUVERGER, Maurice, Os Partidos Políticos – título original: Les Partis Politiques, France, 1951.

ECONOMIST INTELLIGENCE UNIT (2016–2024), Annual Report Democracy Index, 2016–2024.

FONTES, José, (2018) O dever Ético do Estado na Garantia da Segurança, 70 Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, MAI, Lisboa, 2018.

INE (2004–2023), Inquérito sobre Segurança, Paz e Governance, 2004–2023.

INE, (2023), Relatório do Índice Multissectorial da Pobreza, 2024. 

LIMA, Aristides, (2017), in Prefácio, (In) Segurança Prevenção: Retratos de Desafios da Mudança, REBELO, José, Praia, 2017.

MIRANDA, Jorge (2005), Democratização dos Países de Língua Oficial Portuguesa, Coimbra, 1995.

PNUD, Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 1994.

POLÍCIA NACIONAL (2014–2024), Relatório Anual, Praia, Cabo Verde, 2014–2024.

SANTOS, Sofia & GOUVEIA, Bacelar, At. all., In, Enciclopédia do Direito e Segurança, SANTOS, Sofia, Segurança Cooperativa, Almedina, 2015.

*Doutorando e Mestre em Direito e Segurança

  Docente e Investigador, Auditor, Formador e Consultor de Segurança Interna

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