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Diáspora

Grande Lisboa: A segunda vida de Amílcar Cabral

Flávio Almada

Nos últimos anos, os murais com a efígie de Amílcar Cabral passaram a cobrir paredes inteiras do bairro da Cova da Moura, nos arredores de Lisboa. No espaço de uma geração a figura icónica do líder e fundador do PAIGC passou a servir de âncora para milhares de jovens de origem africana, apostados num activismo que reivindica um espaço próprio na sociedade portuguesa. 

Para quem tem menos de 35 anos e nasceu já em Portugal, os manuais e as referências históricas que lhes eram ou são passados nas escolas, não os representam enquanto portugueses de origem africana. Pouco mudou, na verdade, desde que os seus pais e avós emigraram para este país em busca de uma vida melhor. E foi precisamente nos últimos 10, 15 anos, que a figura e o legado histórico-político de Amílcar Cabral passaram a ser referência e pilar de uma narrativa de reconstrução do edifício identitário, para quem está entre as culturas cabo-verdiana e portuguesa. Mas, em alguns aspectos, ambas se preenchem na sua dimensão com a figura de Cabral. É o caso da Revolução dos Cravos, o 25 de Abril de 1974, numa época remota para estes jovens, quando os seus próprios pais ou ainda namoravam ou eram jovens adolescentes. 

A vida nos bairros da grande Lisboa, particularmente nos chamados bairros problemáticos, as dificuldades de integração, o insucesso escolar, a repressão policial, o racismo, os vários problemas sociais e económicos que fazem o seu dia a dia, têm levado a um activismo reivindicativo, cada vez maior. E, nos últimos tempos, essas novas gerações viraram-se para o legado de Amílcar Cabral. Como conta o jovem activista Flávio Almada, ao telefone para o A NAÇÃO: 

 “Cabral já não é uma mera figura de pessoa, mas sim de esperança de um mundo mais igualitário, e que representa a aspiração de um mundo mais justo, e serve para criticar a desigualdade que existe em Portugal, ao mesmo tempo que é um símbolo de resistência e de combate para a mudança do estado das coisas”.  

O que está em curso, adianta o nosso entrevistado, é uma outra ‘reafricanização dos espíritos’ que acontece, desta feita, ligada a Cabral, através do estudo do seu pensamento, das condições históricas em que viveu, combateu e morreu. “Estive na Grécia em 2011, e eu pensava que ninguém conhecia Cabral e fiquei espantando; mesmo no Burkina Faso, onde fui em 2017, vi como muita gente lá conhece e estuda Cabral, sobretudo jovens.”

Apollo Carvalho, 34 anos, vive na Amadora e está a fazer o doutoramento com uma tese sobre o Atlântico Pan-africano, partindo da ideia do Atlântico Negro e envolvendo Cabo Verde, Portugal e o Brasil. E é perentório quando diz que, apesar de se falar em Cabral, não há a informação de que o líder histórico do PAIGC foi um dos políticos e combatentes deu um contributo importante para o 25 de Abril. “Ele é também um dos heróis de Abril, ao lado dos Capitães do Movimento das Forças Armadas”, sublinha.  

Cabralismo e legado pan-africanista

A diversidade que caracteriza a comunidade cabo-verdiana em Portugal leva a que a obra e o pensamento de Cabral tenham interpretações diferentes, já que as pessoas chegam até ele a partir de fontes diversas. 

Para o trabalho de pesquisa académica de Apolo Carvalho, Amílcar Cabral está dentro do seu material de trabalho e a sua relação com ele é muito diferente. Mas, para outros, admite, o “engajamento é mais icónico, mais pela figura, pela imagem, mas sem na verdade conhecerem muito bem quais foram as suas propostas; são jovens que vêem em Cabral uma mensagem de esperança, de alguém que lutou pela liberdade e que trouxe um conjunto de questões que ainda estão muito presentes na nossa sociedade”.  

Mas há o outro lado, o daqueles que se assumem como pan-africanistas em Portugal e trabalham a memória e o legado cabralista e têm posições concretas sobre aquilo que se passa no continente africano: a política económica seguida por Cabo Verde, Guiné-Bissau, jovens que seguem, às vezes, com preocupação, as mudanças políticas que ocorrem na África Ocidental. 

 “Há quem se interessa, por exemplo, pela posição de Cabral sobre a questão da língua portuguesa, como legado do colonialismo, e passaram a vê-lo de uma outra forma; as batucadeiras do bairro do Casal da Boba, na Amadora, que mudaram o nome para Bandeirinhas Pan-africanistas, com o pensamento de Cabral alimentando as letras das suas canções”. 

E aqui, nesse processo reinterpretativo, a figura mítica do fundador do PAIGC ganha uma força nova nos bairros da Grande Lisboa. Aqui, os activistas pan-africanos apostam numa comunicação intergeracional, no ‘conbersu’, com trocas de ideias e que, segundo Apollo Carvalho, vem ajudando a criar um outro espaço de vivência da cultura de forma mais engajada politicamente. “O seu nome está nas bocas do mundo, os mais velhos sabem que Cabral lutou, mas não têm noção de todo o seu legado, pensamento”.  

É a busca de uma história alternativa àquela que vem nos manuais escolares portugueses. Os jovens da diáspora tentam estabelecer uma relação com ela, e nessa construção das suas “identidades e reportórios múltiplos de pertença”, como designa o investigador cabo-verdiano, Victor Barros, “acabam por se conectar com essa história de Cabral, que os remete para a memória dessa figura”.  

Victor Barros

Símbolo da África que pensa

Investigador do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Victor Barros adianta que se a nova geração faz uma reinterpretação das ideias de Cabral, “esta nada tem de petrificação de Cabral ou das suas ideias no tempo, é antes um reinterpretar dessas ideias colocando-as dentro de um contexto de demandas contemporâneas, de militância, de activismo político, de demandas de diferentes lutas, como as anti-racistas”.

Estas servem, igualmente, para reivindicar uma dose de africanidade ao evocarem pensadores que servem de suporte para a interpretações teóricas sobre questões raciais, de desigualdade económica ou exploração. E é assim que vemos, nos últimos tempos, a figura de Amílcar Cabral tem vindo a ganhar espaço entre nomes como Franz Fanon, Aimé Cesaire, Thomas Sankara, Malcolm X, Che Guevara, Carlos Marighella, aqui com a vantagem de ser um pensador de língua portuguesa. O que acontece nestes bairros da cintura de Lisboa, do concelho da Amadora, Loures ou da Margem Sul, como Arrentela e Vale da Amoreira, é uma reinterpretação contemporânea pós-colonial do discurso e da memória de Cabral, não só como símbolo, mas também como texto inspirador para a contestação de políticas de desigualdade, numa luta para maior inclusão, por parte dos governos.

“Um dos aspectos que mais atrai os jovens e alimenta o seu imaginário, é que Cabral remete para uma África que ele próprio simboliza e que produziu pensadores, teóricos, ideias, pessoas que deram o seu contributo para a história da Humanidade e para as grandes ideias de contestação de sistemas de dominação e de exploração; indivíduos com a estatura intelectual de Cabral e ideias que podem ser reaproveitadas ou readaptadas em contextos pós-coloniais contemporâneos”. 

Mas nada disso seria possível sem os novos hábitos de leituras políticas e históricas, o acesso rápido à informação graças à internet, às conexões globais, redes sociais, que os colocam em contacto com ideias de outros autores e pensadores. Assim como jovens da mesma geração, vivendo noutras localidades, noutros países, que estão, também, a discutir esses mesmos temas. E isso leva à descoberta de como Amílcar Cabral é estudado, apreciado e referenciado em vários países, integrando a leitura e a bibliografia de várias universidades, académicos, militantes, activistas e intelectuais, que debatem os legados do colonialismo e do imperialismo. 

“Os tais processos que Cabral designava por ‘lutas conectadas’, pôr diferentes demandas em conexão e numa perspectiva crítica com pensamento crítico, e levar avante as reivindicações que vêm associadas a essas lutas”, diz Barros.

Âncora para jovens activistas

O fenómeno da ‘nova vida de Cabral’ – Cabral ka morri – no seio da comunidade cabo-verdiana ou africana em Portugal é recente e faz parte da busca pelo líder histórico, por parte das novas gerações. Os mais velhos foram, muito ou pouco, socializados com a figura histórica, sobretudo nos livros escolares de Cabo Verde. 

“Aqueles que têm entre 20 e 30 anos identificam o silêncio que existe nos manuais escolares portugueses, uma tentativa de silenciamento do pensamento de Cabral, pela sua falta de citação ou referência da importância histórica. Por isso, eles vão ao encontro de Cabral, da maneira que podem, já que não lhes dão Cabral, o que acaba por ter um efeito político mais forte”, frisa Victor Barros, um fenómeno que também foi influenciado pelo movimento Black Lives Matter, nos Estados Unidos, com todas as ramificações que este movimento estabeleceu um pouco por todo o mundo.

Uma sociedade que não cria heróis para todos os cidadãos, acaba por deixar essa tarefa nas mãos destes. E para os jovens cabo-verdianos, Cabral serve como uma espécie de âncora, como explica o investigador. 

“A figura de Cabral preenche, neste caso, todas as quotas: a quota do sucesso nos estudos, na popularidade, da luta que ele conduziu, a quota intelectual, de alguém que produziu pensamento e legou ideias”.  

Assim, a falta de referências africanas, que não estão nem nos manuais escolares, nem nos nomes de ruas, estátuas, monumentos, nos espaços públicos, leva os jovens a não se identificarem com os heróis do país onde nasceram. “O recurso são os heróis do local de nascimento dos pais, para onde se viram, e aí encontram a genealogia das suas identidades, de onde vieram os pais, e essa história remete-os para Cabral, que tem a si associado uma luta, o que ajuda a estabelecer uma narrativa identitária e familiar, até porque Cabral e os seus pais ou avós partilham o mesmo local de vivência ou nascimento.”

 

Joaquim Arena

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