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Colunistas

Outras vozes, outras vidas: Nho Balta, Cabral e Chiquinho

Por: Joaquim Arena

Durante muito tempo, pensei que Amílcar Cabral fosse mesmo cantor. E que o desenho da capa do LP Música de Cabo Verde – Protesto e Luta, uma edição dos serviços culturais do PAIGC, de 1973, representava os seus homens repousando numa praia qualquer, depois de uma dura batalha contra os ‘colonialistas’. A mulher com a faca enterrada entre os seios tinha tanto de horror como de sensual. Os seios e as coxas eram perfeitos, apelativos. As caras eram assustadoras, gente com aspecto de mortos-vivos, os olhos arregalados. Tudo com a bandeira da estrela negra em pano de fundo, entre a lassidão dolorosa da praia e o sol de esperança. Nho Balta não me pareceu ser nome próprio. Assim como eu era ‘Jack’, o meu irmão ‘John’, o meu primo Manuel ‘Manelona’, Nho Balta só podia ser ‘nominho’ qualquer de Cabral. 

Assim, quando Manelona, que emigrara do Sal para Lisboa aos 17 anos, chegou a nossa casa de sumbia na cabeça e pôs o disco no aparelho, alguma coisa mudou. Com ele vieram também Baby e a irmã Suely, jovens tocadores de mornas e coladeiras. Suely tinha unhas compridas, mas dedilhava choradinhas que faziam a minha mãe chorar. Outros tocadores também por lá passaram, como Djô Manel, funcionário do Aeroporto, irmão de Nhela e Alcides Spencer. Sábados e domingos havia bailes e tocatinas lá em casa, intercaladas com Nho Balta ‘Cabral’ no gira-discos. Por fim, Protesto e Luta expulsou Gianni Morandi, James Brown e Neil Diamond do gira-discos. 

A verdade é que a nossa casa de Moscavide foi a responsável pelo estabelecimento de várias famílias das ilhas na zona oriental de Lisboa. Algumas ainda por lá andam. Logo depois de chegarmos, passou a servir de pensão informal para familiares e amigos. A minha mãe avisou-nos: não podíamos dizer que tínhamos hóspedes. Uns vinham em busca de trabalho, outros em trânsito para a Itália (sobretudo mulheres) Estados Unidos e Holanda. Alguns, para morrer num hospital de Lisboa, outros atropelados no Campo Grande, ou esfaqueados numa rixa no Bairro do Alto de Santa Catarina. Por essa altura, o negócio da falsificação de documentos para obter a nacionalidade portuguesa estava em alta. Mas havia quem hesitasse em escolher a nova nacionalidade, desconfiando do PAIGC. 

Trabalho havia à escolha: construção civil, cozinhas de hotéis e restaurantes, armazéns de cargas e descargas. Um deles tornou-se mesmo cobrador nos autocarros da Carris. Havia quem também viesse estudar, mas poucos. Destes, recordo o jovem Tuta, hoje o conhecido empresário de material eléctrico, Semedo Brito. Estudante empenhado de compêndios de circuitos eléctricos, Tuta de Nho João Beto e dona Valentina era aplicado e mantinha-se à parte das farras. O nosso quarto andar esquerdo compreendia um sótão. Uma escada de madeira levava a mais três quartos de tecto oblíquo e paredes de placas de madeira prensada. De inverno, quase se morria ali de frio. No Verão, era uma verdadeira ‘frigideira’. Mas crianças nunca sentem frio ou calor. Os hóspedes eram quase todos do Sal, antigos conhecidos ou filhos de famílias amigas da minha mãe. 

Mas também do Fogo e de Santo Antão, como o senhor António e o senhor Paulo. Com a independência de Cabo Verde, em 1975, alguns funcionários do Aeroporto do Sal escolheram continuar ligados à empresa. Aqueles que não foram transferidos para o aeroporto de Santa Maria, nos Açores, vieram para Lisboa. Quatro deles ficaram instalados em nossa casa. Passavam as horas livres jogando Guriti Pau, Corenta de Cuz, nos quartos, e a beber vinho tinto de garrafões brancos. A minha mãe não permitia visitas femininas. Nesses tempos de 1975/76 eu e o meu irmão íamos para a cama ao som de Seis One na Tarrafal e Céu di São Tomé. Certo dia, Manelona chegou e contou que ele e outros crioulos tiveram de fugir quando entraram numa manifestação contra a guerra colonial. Afixou na parede do quarto uma grande bandeira do PAIGC e ouvíamos Protesto e Luta de manhã à noite. Foi o doutrinador dos hóspedes que passaram pela nossa casa. A maior parte não queria saber de política, mas achavam graça ao seu fervor patriótico. A minha mãe só dizia, ‘Só M ca crê policia ta batê na nha porta…’

 

Chiquinho no PREC

Uma das notícias que me chamou a atenção, esta semana, foi a reedição em Portugal do romance Chiquinho, de Baltasar Lopes, pela editora Caminho, do Grupo Leya. O facto foi saudado nas páginas do Diário de Notícias, por Guilherme de Oliveira Martins, antigo governante e presidente do Tribunal de Contas, e no Correio da Manhã, pelo escritor e editor Francisco José Viegas. Este último declara-se um apaixonado da primeira hora do romance, fundador da modernidade literária nas ilhas. Por seu lado, Oliveira Martins destaca o romance de cariz biográfico, que “é pioneiro numa encruzilhada de referências culturais, dando ao crioulo um especial protagonismo, através de uma riqueza vocabular única, emblemática para a geração da revista Claridade, numa espécie de placa giratória, envolvendo diferentes manifestações da língua comum”. 

Entre outras considerações da biografia do escritor natural de São Nicolau e algumas personagens, como Tio Joca e Nho Chic ’Ana, Guilherme de Oliveira Martins recorda como o gosto pela narrativa de Baltasar veio da avó, Mamãe-Velha, que “além de ser pessoa antiga e ter corpo queixoso, levantava-se logo assim que os galos davam a última pousa, no alvor nascente da ante-manhã”. Nha Rosa Calita era incansável e “vinham no fim os contos do Lobo e do Chibinho, em que a contadeira pitorescamente opunha a estupidez lorpa daquele à esperteza deste”. “Mamãe entretinha-se na sua renda de duas agulhas, cuja perfeição de acabado era muito gabada pelas menininhas luxentas da Vila”.

Antes desta edição da Caminho, o romance Chiquinho já havia saído em Portugal pela Prelo, Vega, para além de uma edição de bolso e vendido em conjunto com um semanário lisboeta.

Chiquinho traz-me sempre a memória da minha avó Clara. Posso dizer que personagem e a figura de Baltasar Lopes são um marco na minha vida literária. Foi uma das melhores coisas que o Processo Revolucionário em Curso – conhecido como PREC, iniciado em Portugal, em 1975, poderia trazer a uma criança de 11 anos. Estava eu no 1º ano da Escola Preparatória Gaspar Correia, nos primórdios da Portela de Sacavém. A professora Branca, de língua portuguesa, decidiu dividir a turma em grupos de quatro. Tínhamos de ler, analisar um texto e apresentá-lo oralmente na aula seguinte. O livro de textos chamava-se Reticências. Os novos manda-chuvas da Educação tinham acabado de reformar os manuais de leitura. 

Os novos textos eram agora de autores progressistas como, Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Altino do Tojal, Manuel da Fonseca, Érico Veríssimo, José Lins do Rego, José Mauro de Vasconcelos, Jorge Amado. O neo-realismo português e o romance de Trinta brasileiro, inspiradores do Homem Novo. Mas, para meu espanto, o texto que coube ao meu grupo falava de ‘farinha-de-pau’, dinheiro ganho ‘riba de água d’mar’, ‘enganha de milho’. As frases e o vocabulário da minha avó e da minha mãe, naturais de São Nicolau, ali expostos num texto de leitura. Tudo muito igual às histórias que iam e vinham na nossa sala de visitas de Moscavide. Mostrei à minha mãe e ela sorriu. “Quel é estória de nho Baltasar de Caleijão”, tomando o livro de leitura, deliciando-se no sofá. Com a minha avó ia trocando impressões, nomes deste e daquele personagem, deste e daquele lugar. A minha avó, nascida no ano de 1900, havia conhecido bem o pai de Baltasar Lopes. Lembrava-se bem daquela família, que ela via sempre quando ia visitar o cunhado na sua casa do Caleijão. Perguntei à minha avó se ela havia conhecido também aquela personagem misteriosa, o homem de São Nicolau que voltou da Guerra do Paraguai, carregando o seu fuzil. Mas ela não soube responder. 

Na aula seguinte, graças à informação ‘privilegiada’, não só analisei, ao pormenor, o capítulo que coube ao meu grupo, como tirei as minhas notas e acrescentei detalhes biográficos sobre as personagens, Caleijão, a ilha de São Nicolau e a figura o prestígio daquele escritor famoso, autor daquele romance, que a minha avó conhecera na juventude – tudo para espanto da turma e grande satisfação da professora Branca. Muitos anos depois, o acaso fez com que a minha voz fosse uma das escolhidas para dar vida a uma das personagens, na primeira gravação do áudio-livro. Mas ainda hoje, é o ex-combatente da Guerra do Paraguai a minha personagem preferida do romance de Baltasar Lopes. 

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