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Cabral: O homem vário

Por: António Tomás

Foi na noite de 20 de Janeiro de 1973, que, vindo de uma receção numa embaixada acreditada em Conacri, Guiné-Conacri, que o lutador pela independência da Guiné-Bissau, Amílcar Cabral, foi morto pelos seus próprios homens. Morria o homem, e nascia a lenda. 

Venho trabalhando sobre a vida de Amílcar Cabral há mais de vinte anos, desde que, em 2000, graças ao generoso apoio da Fundação Cultura, embrenhei-me em arquivos e falei com dezenas de pessoas sobre importante nacionalista africano. O resultado de tal trabalho foi a biografia, O Fazedor de Utopias (publicada em Portugal em 2007, pela Tinta-da-China, e no ano seguinte em Cabo Verde pela Spleen), cuja versão inglesa, The Reluctant Nationalist foi em 2021 publicada em Londres, pela Hurst. Ao longo de todos estes anos, fico com a impressão de que o de mais valioso que aprendi foi que um possível homem para além da lenda e do mito, um homem complexo, com os seus excessos e as suas limitações parece não existir. Cada um e cada capela que se agarra ao legado de Cabral agarra-se a apenas uma das suas várias imagens. 

Há os que se agarram ao Cabral guerrilheiro, sobretudo os que com ele lutaram pelas independências da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, ou os que de muito próximo acompanharam a sua gesta revolucionária. Há os que se agarram ao Cabral agrónomo, homem de ciência, ou o Cabral que mais recentemente se tem tornado ambientalista. Há ainda o Cabral das academias britânica e americana, cujos ensaios sobre cultura e libertação nacional aparecem em programas de ensino ao lado de Os Condenados da Terra de Frantz Fanon.  Na África do Sul, onde resido há dez anos encontrei, entre veteranos da resistência anti-apartheid, o Cabral dos aforismos, uma espécie de Cabral pré-Twitter, com frases como “Tell no lies, claim no easy victories.” 

Duas interpretações têm-me ajudado a perceber essas dimensões de Cabral. A primeira é de ordem pessoal, e a segunda de ordem mais conjetural. Vamos a primeira. Cabral é o militante clandestino que até muito tarde recusou-se a assinar documentação com o seu próprio nome, porque acreditava que nacionalismo não era coisa de indivíduos. Mas Cabral foi também, entre o grupo da linha da frente da contestação anticolonial, o nacionalista que conseguiu até mais tarde suster uma vida dupla. Conspirava contra a presença colonial portuguesa, mas também trabalhava para companhias agrícolas coloniais. Isso até 1960, antes da guerra aberta contra o colonialismo português ter começado no Norte de Angola. 

Há quem diga que o mito de Cabral repousa no facto de apesar de ter lutado pela independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde nunca chegou a governar, particularmente a governar a nação que ele imaginou, fruto da união entre os dois territórios. Deixou esta tarefa para o seu irmão, Luiz Cabral, que bem à maneira africana, foi deposto por Nino Viera em golpe de estado, em 1980.

Assim Cabral situa-se numa dimensão incompleta, que lhe permite comparar-se a outras figuras africanos e/ou revolucionárias. Cabral foi estratega e desenhou planos de ataque, mas não foi necessariamente um guerrilheiro como Che Guevara. Escreveu sobre cultura africana e grupos sociais na Guiné, mas não com a pertinência de um Julius Nyerere, por exemplo. Escreveu poemas e tinha uma sensibilidade poética ímpar, mas nunca levou a poesia tão a sério como um Léopold Sedar Senghor.  

Mas é precisamente por esta capacidade quase caleidoscópica que Cabral se tornou um dos mais relevantes nacionalistas que o continente africano conheceu. Aí, talvez, porque na sua ação partia sempre de uma certa plasticidade e um certo pragmatismo que os cabo-verdianos (mais por razões conjunturais do que propriamente culturais conseguem ter). E Cabral conseguiu muito do que conseguiu por causa desta capacidade de se apresentar de formas diferentes em relação ao contexto.

Para os soviéticos era um teórico africano muito próximo da ortodoxia marxista-leninista. Para os cubanos engajados no projeto da Tricontinental – o derrube do imperialismo –, Cabral, propondo o suicídio da pequena-burguesia, era considerado o único pensador revolucionário vindo do Terceiro Mundo a conseguir insuflar ar fresco na ortodoxia marxista-leninista. Para os americanos, para os quais falou em várias ocasiões, como em 1972 quando foi recebido no Congresso, era um pragmático que só se tinha juntado a cubanos e russos por causa da falta de apoio do Ocidente. Para os Sociais-democratas do Norte da Europa, um democrata confesso, cuja confirmação veio em forma das eleições organizadas nas zonas libertadas em 1972, para a formação dos corpos gerentes do partido que dirigiria o país assim que a independência fosse alcançada. 

Se fora da Guiné Cabral era o guerrilheiro, o revolucionário, dentro da revolução Cabral era mais um apologista da guerra para fins unicamente necessários. Sendo que o problema durante a guerra na Guiné era como libertar o território do jugo colonial, como a própria sugestão das zonas libertadas cuja criação ele incentivou deixa auferir, Cabral nunca se mostrou muito entusiasmado em explorar esta via até às últimas consequências. Porque internamente sempre se posicionou contra o militarismo, inevitável em contexto de guerra civil, mas nem sempre por razões meramente pacifistas. Era por sobrevivência também. O PAIGC tinha sido formado sobre um equilíbrio nem sempre estável entre elementos cabo-verdianos e guineenses, sendo que este último formava quase exclusivamente as unidades de combate. Avançar por uma estratégia puramente militar para a libertação, descurando os aspetos políticos e diplomáticos, seria sempre uma forma de fazer pender o fiel da balança para o lado do guineense. O que inevitavelmente aconteceria e ajudar a explicar, não cabalmente, as circunstâncias do assassinato de Cabral em Janeiro de 2023.  

Por isso talvez o Cabral diverso que se encontro em vários dos caminhos por si trilhados. Este é para mim o mais importante aspeto do seu legado. O legado de um homem que viveu o seu tempo, um tempo sombrio e que encontrou o seu espaço, a sua voz, na turbulência dos tempos em que viveu. 

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