Por: Cipriano Fernandes*
A intenção firme dos Presidentes Francisco Carvalho, Isaías Varela e Nelson Moreira, de promover o desenvolvimento futuro do território sob sua responsabilidade através de uma sociedade de desenvolvimento regional, é a melhor decisão política que foi tomada em benefício da região metropolitana da Praia desde a independência. Nos próximos textos teremos oportunidade de ver porquê, mas adiantaremos que essa é uma das mais importantes razões por que estes autarcas do PAICV precisam de ser não somente apoiados, mas também acarinhados por todos os cabo-verdianos, em geral, e reeleitos nas próximas eleições por todos os seus munícipes, em particular.
No texto anterior demonstrámos como foi que, por um simples processo de contínua subtração de áreas, o município da Praia ficou sem condições de albergar uma cidade capital a sério. Apesar de existirem mais razões (que veremos hoje) para este estado de coisas, o facto incontestável é que num país que ainda hoje se gaba de ser uma democracia de alto pedigree, os nossos dois partidos do arco da governação foram capazes de dividir, por duas vezes e em apenas dez anos, o mais importante município do país sem fazer o básico que deve acontecer em semelhante situação: Auscultar a opinião da população num referendo local, pois é ela quem mais sofre com as eventuais consequências negativas de uma decisão desse tipo.
Entretanto, os 91,67 km2 resultantes dessas sucessivas subtrações de território decididas na secretaria, quando analisados com mais atenção, revelam ainda um cenário mais sombrio para o futuro da cidade da Praia. Efectivamente, da fronteira com os terrenos do Santiago Golf Resort até à fronteira com a parte da ZDTI do Norte que fica no Concelho, existe uma coroa periférica contígua à cidade que está hoje completamente comprometida por construções clandestinas, por dúvidas sobre quem são, de facto, os proprietários dos terrenos e por um quadro jurídico que, segundo o que o Ministério Público aduziu no processo “Praia Leaks”, configura o maior escândalo de corrupção do Cabo Verde pós-independência.
Em resumo, hoje, quando se salta tal coroa confusa e intratável, cai-se noutro município!
Muito se tem atacado a 1ª República, e com razão, pela maneira como geriu a questão dos direitos individuais e colectivos no contexto de ditadura de partido único e isso, para bem e para mal, resume a maneira como acabou por ser definida historicamente.
A 1ª República cometeu ainda o erro de não acautelar, com clareza, a estatização do solo aquando da independência. Creio que muito poucos países assumem a condução do seu próprio destino deixando dúvidas sobre quem é o dono do solo. Hoje, qualquer cidadão português pode conseguir a posse de qualquer extensão de terreno em Cabo Verde a partir de um título de propriedade amarelado, deixado por um tetra-avô…
Não me parece que, na questão fundiária, este país se tenha tornando verdadeiramente livre e independente em 1975.
Mas, justiça seja feita a Pedro Pires porque, pelo menos na Praia, medidas foram tomadas na década de 1980 que, caso tivessem sido respeitadas na 2ª República, a situação fundiária dentro e à volta da cidade seria hoje, de longe, melhor. Efectivamente, nessa altura, e porque já era evidente que o resultado seria a inviabilização da Praia como capital se não se estatizasse o solo, Pedro Pires determinou a passagem para a posse do Município através de decretos de posse administrativa, muitos dos terrenos já então ocupados por uma cidade em expansão acelerada ou que previsivelmente seriam ocupados dentro de um determinado horizonte temporal. Sem prejuízo de todas as compensações que a Justiça mais tarde, eventualmente, poderia obrigar a Administração a fazer aos donos desses terrenos, essa foi uma medida muito acertada e inteligente.
Pedro Pires tem ainda o mérito de ter presidido ao único período histórico em que a Administração (tanto central como local) comandou, na Praia, um processo de produção de solo urbano livre de distorções especulativas, e com qualidade indiscutível, através dos planos urbanísticos mandados elaborar para o Palmarejo e Achada de S. Filipe. Tais planos foram totalmente destruídos na 2ª República. Basta lembrar que das mais de uma dúzia de grandes praças previstas, por exemplo, no Plano Urbanístico do Palmarejo original, resta hoje uma só, diminuta, e mesmo essa ainda com um destino no mínimo incerto. Basta lembrar ainda que o Palmarejo de Baixo NUNCA foi pensado para ser ocupado por edifícios…
A Segunda República, na sua sanha cega de apagar a Primeira da história durante a década de 1990, enveredou pelo caminho de deitar fora o bebé juntamente com a água do banho, através de decisões e políticas danosas das quais a cidade nunca mais se recuperou.
Por um lado, fez letra morta dos decretos de posse administrativa deixados por Pedro Pires e abriu a porteira de ostensivamente validar pretensões de posse fundiária anteriores à independência, algumas das quais haviam sido campeadas e litigadas pelo próprio Carlos Veiga (como advogado) que, uma vez Primeiro-ministro, se colocou em franco conflito de interesses.
Por outro lado, e muito estranhamente, ao “democratizar” o acesso aos livros dos registos das matrizes prediais, eliminou todas as proteções que o bom senso recomendaria reforçar no novo contexto. Como consequência, acabou por permitir a alguns meninos, a acreditar no que o Ministério Publico afirma no Processo “Praia Leaks”, brincar com tais livros como bem lhes apeteceu.
Paralelamente a esses dois factos, nessa década de 1990 a Câmara Municipal da Praia foi reduzida pelo Governo de então, à postura passiva de mera viabilizadora de planos urbanísticos de iniciativa privada, o que desvirtuou profundamente tanto a produção de solo urbano, como a qualidade dos tecidos urbanos resultantes desses planos. A maximização do lucro das imobiliárias privadas (sobretudo a visada pelo Ministério Público no Processo “Praia Leaks”) passou a ser a sua raison d’être, e talvez seja isso que explique a tragédia cómica que foi a urbanização da Cidadela quando, já sob a responsabilidade do PAICV, no início dos anos 2000, a CMP renunciou às respectivas áreas dotacionais com a desculpa de que não tinha capacidade financeira para assumir a parte que lhe competia na infraestruturação: Tragédia porque, estranhamente, a CMP abriu mão de, no mínimo, 40 hectares dessa urbanização; Comédia porque tal infraestruturação foi e continua a ser uma anedota de mau gosto até hoje.
Temos, pois, que, para além de uma péssima guardiã dos planos urbanísticos deixados por Pedro Pires, a CMP durante a 2ª República renunciou ao controlo da produção de solo urbano na cidade da Praia. Apenas em 2016 viria a aprovar um Plano Director Municipal (PDM) que, ainda por cima, tem sido um autêntico veneno para a capital, tema que abordarei futuramente.
*Arquiteto.
Director do Planeamento do Território e Habitação
Câmara Municipal da Praia
Praia, 19 de Agosto de 2024
(continua…)