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Colunistas

Poetas… e a realidade que temos

Por: Germano Almeida

Certamente que foi num momento de ternurenta saudade das suas ilhas que o poeta Mário Fonseca recitou este verso imortal: mon pays est une musique!

Mas não só ele teve dessas fraquezas patrióticas. Entre muitos outros, também o poeta Corsino Fortes, feroz nacionalista, não se acanhou de afirmar que “se a ONU tomar Cabo Verde como vela/o mundo não dormirá às escuras”. Isso para além de ter fantasiado a ideia de darmos golpe de estado no paraíso. Mas claro que devemos dar-lhe uma desculpa considerável, ele escreveu esses versos publicados num livro a que deu o nome genérico de A CABEÇA CALVA DE DEUS, e dificilmente vamos identificar esse deus careca com aquele outro que conhecemos, barbudo e de longa cabeleira hirsuta, este sim, com fama de todo poderoso. 

  Muitos outros poetas têm posto Cabo Verde nos píncaros da lua, delirando palavras e ideias que nada têm a ver com a daninha realidade em que sobrevivemos. Os claridosos, intelectuais que tiveram que aprender a viver com os pés fincados no chão, tinham outra ideia de nós, mais cruel, diziam que Cabo Verde tinha um clima que tinha a capacidade  de desqualificar o homem.

Certamente que prefiro para nós a bazofaria dos nossos poetas mais modernos que os claridosos, e então lembrei-me do poema de Mário Fonseca ao ver há dias uma cena no porto da Palmeira na ilha do Sal. Chega um navio da sociedade Inter Ilhas e tem a bordo um camião carregado de víveres frescos embarcado na véspera na Praia. O destino é mesmo aquele porto. Mas parece ter havido um problema qualquer com o camião no início da viagem, e embora já esteja no porto do destino, os donos do navio não lhe permitem desembarcar. Nem o seu conteúdo, embora seja tudo produtos rapidamente deterioráveis. As donas das mercadorias bem que imploraram diante da televisão, clamando, mais que reclamando. Em vão! Inutilmente! O barco voltou a partir, levando com ele o camião e os consumíveis, cujo destino final será certamente o mar.

  Vendo aquilo, uma maldade que nada parecia justificar afora a mesquinha necessidade de mostrar quem tem poder, comecei a pensar como tinha sido possível acontecer essa inconcebível crueldade num país onde já não se morre de fome, é certo, mas onde ainda há muita gente que passa fome. E sem que tivesse aparecido alguém, uma autoridade qualquer, uma única pessoa de senso, a chamar a atenção, a dizer aquilo que pareceria mais evidente, a saber, ainda que o camião tenha chegado até aqui incorretamente, nada justifica que pelo menos o seu conteúdo não seja desembarcado, são víveres essenciais para a ilha e rapidamente perecíveis, sem contar com o evidente prejuízo para as mulheres proprietárias, gente pobre das nossas ilhas de vida nhanida. 

  E a gente pergunta, que grau de desumanidade alguém precisa possuir para agir deste modo bárbaro? Se chegar a ficar a saber de uma atitude desta ordem de selvajaria, o Marião continuará a dizer que o seu país é uma música?

  E então, a ideia de Cabo Verde poder alguma vez ser vela para o mundo não ultrapassa o nível da simples poesia sentimental, não obstante todo o reconhecido patriotismo de Corsa de David. Com efeito, e continuando ainda com poetas, neste caso um português Camões de todos nós, o nosso país está atravessando um período, por sinal já demasiado longo, de uma apagada e vil tristeza em que nada parece acertar com os delírios dos políticos no poder.

  Pensemos, por exemplo, nos transportes aéreos, começando  pela Binter de má memória. Entrou no país não só com uma agradável baixa nos preços das passagens, como também com um rigoroso cumprimento dos horários de voo. Ambas as situações foram festejadas porque não estávamos habituados a essas mordomias de sermos tratados como cidadãos.

   Mas eis que a Binter adquire o monopólio dos transportes aéreos e o direito de abusar de nós: não só aumenta os preços dos bilhetes de forma escandalosa, como deixa de se preocupar com o cumprimento dos horários. Ganharam um dinheirinho e depois foram-se embora, não tinham qualquer contrato a respeitar, conforme o primeiro-ministro disse aos deputados nacionais quando questionado, havia entre as partes apenas um memorando de intenções. Ficaríamos sem voar se a BestFly não tivesse aceitado socorrer-nos. Mas por causa dos seus permanentes atrasos e incumprimentos, ganhou já o certeiro apodo de BedFly.

  Ora se no ar estamos mal, no mar vamos muito piores. Que se pode dizer da sociedade de transportes inter-ilhas? Dela de facto não vale a pena dizer seja o que for. Há é que questionar os governantes que, consciente ou inconscientemente, entregaram a ligação entre as ilhas a uma empresa que o poeta João Vário certamente classificaria de simples “passadores de pau”: até agora só trouxeram para este país navios seguramente recuperados da sucata e beneficiados com uma pinturinha.

 No entanto, os nossos governantes, certamente que imitando o personagem Pangloss de Voltaire, vão à televisão e vociferam alegremente que vivemos no melhor dos mundos possíveis, no país onde há melhor democracia, melhor justiça, melhor serviço de saúde, melhor educação, apenas com alguns pequenos problemas ocasionais nas ligações entre as ilhas, enfim, um país que mereceria o júbilo do próprio professor Zagalo. Porcos em delírio, diria deles certamente o poeta Jorge Carlos Fonseca quando ainda passeava pela cidade da Praia celebrando as suas ruas de leite e deleite. 

  Mas mais que em delírio parecem viver alguns dos nossos políticos na autarquia de S. Vicente. Ainda há dias ouvi na televisão o presidente da UCID, partido político com representação parlamentar, portanto com responsabilidade nacional, dizer sem qualquer tentativa de moderação nas suas palavras, que o presidente da Câmara Municipal da ilha devia estar na cadeia por gestão municipal danosa. A gravidade dessa afirmação, seja ela informação ou acusação, deveria ter consequências a nível do Governo. Pelo menos uma inspeção, um inquérito, qualquer coisa séria em que as pessoas pudessem vir depois a ter confiança, não um simples 31 de boca inconsequente. Sequer o MP mostra ter tomado conhecimento dessa afirmação.

 Parece, pois, que o único assunto sério que preocupa o Governo é descobrir o que é que ainda temos para vender embrulhado na palavra “privatizar”. A nossa extrema sorte é que por enquanto ainda somos constitucionalmente sujeitos de relação jurídica, pelo menos enquanto o tribunal constitucional não for levado a reconhecer e declarar que tendo nós passado tanto tempo a abrir mão e a não exercer a nossa cidadania, transformados nós próprios no costume de sermos coisa, perfeitamente que pode o Governo considerar-nos também objeto negociável. E aí seria vermos magotes de cabo-verdianos atirados para os porões de navios e levados não se sabe para onde, porque já não há caminho de S. Tomé.

Mas o medo verdadeiro é se um dia o Governo, quando não tiver mais nada que vender, resolver vender o mar. Não seria inédito, mas seria terrível, ilhéus sem mar! Querem um exemplo? Basta ler o romance O Outono do Patriarca de Garcia Marques, quando ele privatizou tudo, e não tendo mais nada para vender, negociou todo o mar que rodeava o seu país, e os americanos compraram tudo e foram com os seus imensos navios e sorveram todo o mar que havia por ali, e mais os seus peixes e outras coisas que havia dentro, e levaram tudo com eles, e o país do patriarca ficou seco, vazio, e onde tinha estado o belo mar agora havia apenas rochas lunares reverberando ao sol ou refletindo a lua. 

Será de certeza que não corremos esse risco? Bem entendido que ganharíamos a vantagem de ir de carro ou mesmo a pé de uma ilha para outra, sonho muito acalentado pelo poeta José Lopes ou pelo próprio Corsa de David na cabeça calva do seu Deus na sua ânsia de juntarmos os nossos dez grãozinhos de terra.

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