Concebida a pensar no ambiente, empregando mão de obra sobretudo feminina, a Fazenda de Camarão, em São Vicente, é o espelho do seu mentor: Nelson Atanásio Santos. Em cima dos seus 80 anos de idade, este boa-vistense, há muito estabelecido na ilha do Monte Cara, avisa que ainda o vamos ter por cá, por muito tempo . Por ora, conta este ano passar de 22 para 44 toneladas de camarões. “Camarões saborosos”, como faz questão de frisar, “made in São Vicente”.
Localizada em Calhau, ilha de São Vicente, a Fazenda de Camarão é, seguramente, o grande empreendimento da vida de Nelson Atanásio Santos, figura bastamente conhecida dos cabo-verdianos. Afinal, nestes quase 50 anos de independência, este boa-vistense, de 80 anos, feitos em Maio passado – da política ao desporto, passando pela economia – , esteve em várias frentes da luta pelo desenvolvimento de Cabo Verde (ver perfil).
Hoje, contra ventos e marés, a Fazenda de Camarão é uma realidade, que resiste e avança, desde a sua inauguração, em 2017. Primeiro, à descrença daqueles que não acreditavam que um tal empreendimento fosse possível em Cabo Verde; segundo, contra as dificuldades habituais que se interpõem no caminho daqueles que querem investir em qualquer que seja o ramo de actividade neste país. A terceira, e última grande prova de obstáculo, foi a pandemia da covid 19, em 2020.
“Na altura, também nós, chegamos a temer pelo futuro. Tínhamos trabalhadores por pagar, dívidas por saldar e sem rendimentos, já que tudo estava encerrado, sem dia de reabrir”, recorda o empresário.
Independentemente de tudo, é Nelson Atanásio Santos que, qual guia, nos vai conduzindo pelas várias secções da Fazenda, principalmente pelos viveiros instalados em terra, por forma a proporcionar um ambiente controlado e sustentável, na produção de camarão. A pensar ainda no ambiente, aqui, esses crustáceos crescem em água filtrada e “recirculada”. A alimentação, esta, é orgânica, com base em microalgas produzidas internamente e ração local, a partir da sêmola comprada à Moave e a farinha de peixe à SUCLA, na ilha de São Nicolau.
Energia, regulação e intervenção estatal
A Fazenda possui estações de produção eólica e solar, o que tem permitido uma importante redução dos custos e factores de produção. Aqui, Nelson Atanásio encara-nos nos olhos e lamenta as discrepâncias na tarifação eléctrica. E desabafa: “Quando a Fazenda produz energia excedente e a fornece à Electra recebe 8 escudos por quilowatt-hora, quando é o contrário paga 30 escudos por cada KW. É uma troca injusta”.
O nosso entrevistado apela por isso a uma “regulação justa”, afora as outras queixas, também habituais, de falta de apoio do Estado para o desenvolvimento da iniciativa privada. Os problemas, como deixa também a entender, são conhecidos há muito pelos governantes do país, vários dos quais já visitaram a Fazenda, elogiando-o pela ousadia e contributo para o avanço da economia azul, além de outros afagos e palmadinhas nas costas.
“Cabo Verde é cercado por mar, e com o mar podemos produzir alimentos”, sublinha, lamentando, desta feita, que os conhecimentos já reunidos pela Fazenda não sejam aproveitados pela academia e pela comunidade científica. Sugere que as universidades e os centros de formação profissional ligados às “coisas do mar” enviem estagiários para aprender e com isso criar um verdadeiro “know how” no campo da aquacultura, um domínio com grande potencial em Cabo Verde, neste caso, em São Vicente.
“É assim que os países se desenvolvem, o ensino superior não pode estar desligado da prática, das empresas”, alerta para quem o quiser ouvir.
Até esse dia, segundo o nosso entrevistado, a Fazenda de Camarão seguirá comprometida em melhorar continuamente a qualidade dos camarões e a eficiência da produção. Investe em pesquisa científica, explorando novas técnicas de alimentação, manejo e monitoramento.
Dessalinização
A Fazenda dispõe igualmente de uma pequena dessalinizadora para a produção de água doce para a criação dos camarões pequenos.
Inaugurada em 2017 (portanto, já lá vão sete anos), a Fazenda de Camarão abastece não apenas o mercado de São Vicente, mas também as ilhas do Sal, São Nicolau e Santo Antão. Sal, por causa dos hotéis, é o principal destino dos camarões produzidos localmente, na ilha do Monte Cara.
Pelo tamanho do seu mercado, o maior sonho de Nelson Atanásio, conforme revela, é chegar a Santiago. “Em Santiago não tem sido fácil, por causa do velho problema dos transportes”, afirma.
Também ele, enquanto cidadão e empresário, diz não compreender como é que Cabo Verde, ainda hoje, não conseguiu resolver este “grande entrave”. “Sem transportes eficientes, marítimos e aéreos, não podemos falar de desenvolvimento. A falta de transportes estrangula tudo, só não vê quem não quiser ver”.
E tudo seria mais fácil, como também advoga, caso houvesse, em Cabo Verde, uma melhor organização logística nos transportes. Com o mercado de Santiago acessível, “a empresa garantirá a sua viabilidade e sustentabilidade”. Por isso, acrescenta, “pela dimensão do mercado de Santiago, não desistimos de ter uma presença mais constante, da mesma forma que queremos exportar os nossos produtos para o mercado europeu”.
Mulheres
Mas a Fazenda de Camarão não é apenas uma fonte de “camarões saborosos”, como diz o entrevistado do A NAÇÃO. Para uma ilha como São Vicente, é também um empregador significativo. Dezenas de pessoas, principalmente mulheres, a maior parte contratada em Calhau, encontram trabalho e sustento nessa zona, sem ter que se deslocar ao centro do Mindelo.
E isto é algo que enche de orgulho o nosso anfitrião, por, à sua maneira, estar a contribuir para o tal empoderamento feminino de que os políticos tanto falam. “Elas desempenham um papel significativo na economia e cultura local, e a Fazenda continuará a oferecer oportunidades de trabalho e capacitação a essas mulheres”, disse.
Empresário experiente, Nelson Atanásio compartilhou connosco sua visão para o futuro da Fazenda. Por ora, o plano inclui a produção de outros mariscos, como a lagosta, e a criação de peixes para abastecer a frota pesqueira. A fábrica, que antes importava larvas de camarão, agora as produz internamente, garantindo a qualidade do produto.
“A nossa ideia é atender à demanda nacional por camarões frescos, um produto bastante apreciado e consumido pelos hotéis, que antes tinham de recorrer à importação, poupando com isso a saída de divisas do país”.
Da pesca ao futuro
Antes de se lançar na produção de camarões, Nelson Atanásio Santos foi armador de pesca. Com os anos, viu sua frota enfrentar desafios crescentes: menos capturas e maiores gastos. Cansado de remar contra a maré, decidiu abandonar a pesca tradicional e apostar na aquacultura. Algo que no princípio pareceu impossível de acontecer, ainda por cima, a partir de uma ilha como São Vicente.
No ano passado, a fazenda produziu 22 toneladas de camarão fresco e este ano espera ultrapassar as 44 toneladas. Apesar das dificuldades e das restrições impostas pela pandemia de covid-19, a empresa retomou as actividades e está a progredir em bom ritmo. “Sim, acreditamos que é possível duplicar a produção, de 22 toneladas para 44”, assegura, quando questionado.
A fábrica, que antes fazia apenas a engorda do camarão trazendo as larvas de outros países, hoje já as produz dentro da própria Fazenda. Esta garante a qualidade do produto por os produzir em viveiros e tanques com água retirada do oceano Atlântico, com uma estação de bombagem construída na Praia Grande.
João A. Rosário