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“Princípio de Peter” e triunfo da incompetência em Cabo Verde

Por: João Serra*

Já em tempos escrevi estar convencido de que uma das razões que ajudam a explicar o atraso no desenvolvimento de Cabo Verde é a prevalência de uma cultura que privilegia os laços de proximidade política, familiar e pessoal em detrimento do mérito, particularmente na Administração Pública (AP), esta entendida no seu sentido lato: administração direta e administração indireta do Governo central e das autarquias municipais. 

Na verdade, a falta de escrutínio do mérito profissional tem sido um entrave presente e permanente ao progresso e crescimento no país.

A partidarização e o nepotismo na AP cabo-verdiana não são fenómenos recentes, mas sim um problema estrutural e persistente, que tem origem na história política e social do país. Ou seja, é um problema que tem origens sociológicas profundas: o país é muito pequeno, praticamente desprovido de recursos naturais e com pessoas muito dependentes do Estado, além de baseadas na família e nos afins, e muito desconfiadas das outras à sua volta.

Todavia, nos últimos anos, a situação agravou-se consideravelmente, tornando-se a regra o compadrio, o nepotismo, a criação de intermediários improdutivos e de algum parasitismo em favor de interesses políticos e/ou pessoais, com quase total desprezo pela meritocracia e descaso para com a sociedade civil. 

E sem igualdade de oportunidades e reconhecimento e valorização do mérito, o desempenho das instituições públicas e a qualidade dos serviços são negativamente impactados pela falta ou inadequada qualificação profissional dos “boys” partidários, dos familiares e amigos pessoais dos detentores do poder, que são escolhidos a dedo para o desempenho de todos os cargos com maior ou menor responsabilidade e sensibilidade.

Saliente-se que não está em causa que o partido que está no poder, seja ele qual for, procure, legitimamente, os melhores mecanismos de decisão e de implementação das políticas sufragadas em eleições, sendo que as nomeações para cargos de direção na administração pública são um dos mais utilizados instrumentos de controlo dos serviços públicos.

Ora, o problema reside na excessiva partidarização da AP, com referências à nomeação e ao recrutamento apenas de gestores e servidores públicos ligados ou próximos do partido no governo. E isso é feito, amiúde, sem se importar com a existência das necessárias competências técnicas e de perfil adequado às funções.

De facto, Cabo Verde transformou-se, hoje em dia, em um dos principais mercados do mundo na experimentação do velho “Princípio de Peter”. 

O Princípio de Peter, simples e demonstrável na prática, nasce de uma obra, com teor de sátira clássica, de Laurence Peter, professor catedrático canadiano, publicada em 1969. Este princípio tenta demonstrar-nos, com base no humor, mas com sólida base teórica, que “quanto mais as pessoas são promovidas nos cargos que ocupam, mais incompetentes se tornam”.

Como exemplo, costuma referir-se o caso do sargento que sendo bom a cumprir ordens, quando é promovido a oficial e tem de ser ele a elaborar planos, a decidir, se revela um autêntico desastre. O mesmo acontece com um militante/simpatizante partidário vigoroso ou um bom cabo eleitoral: não basta que ele seja útil na defesa do partido e dos seus interesses, ou na campanha eleitoral, para que tenha como garantia ou prémio exercer cargos de gestão na AP, para os quais não tem capacidades nem conhecimentos adequados. 

Nas circunstâncias acabadas de referir, mais tarde ou mais cedo, a pessoa premiada vai se tornar incompetente para as novas responsabilidades que vai assumindo. E como, geralmente, não é despedida e nem volta para a posição que ocupava anteriormente, mantém-se no novo cargo ou é transferida para um outro, provocando sérios danos à organização que serve. Aqui, gostaria que ficasse claro que o “nível de incompetência” em questão não se refere, necessariamente, à ausência de qualquer preparação técnica e experiência, bem como à honestidade. Trata-se apenas da inadequação para a função, cujo exercício requer nível de qualificações e perfil, ou seja, requisitos diferentes daqueles que a pessoa promovida possui, bem como dos outros que a fizeram progredir.

Para além da célebre frase supracitada, Laurence Peter vai ainda mais longe ao afirmar que “a competência é mais combatida ainda do que a incompetência: nas organizações hierárquicas, o competente é alvo de críticas e pode vir a ser demitido, se não mostrar o seu pior” – o servilismo, a prepotência, a arrogância ou mesmo o “não me arranjes problemas”, como frequentemente se ouve em Cabo Verde.

Infelizmente, esta é, como já referido, a realidade que vivemos em quase todos os setores onde há intervenção direta ou influência do Estado (central e local) em Cabo Verde: na maioria dos casos, as promoções para o exercício de cargos não se justificam com o mérito profissional demonstrado, sendo, antes, uma forma de compensação pela fidelidade ao partido no poder e, por vezes, aos superiores hierárquicos. E os que não se alinham pelo mesmo diapasão, frequentemente, são prejudicados na sua carreira, quando não são perseguidos ou colocados na “prateleira”.

Todavia, em abono da verdade e da justiça, devo dizer que, ao longo da minha já longa vida profissional, também conheci muitas pessoas que subiram na vida profissional a pulso, com muito trabalho e mérito, tendo exercido cargos para os quais foram nomeadas com competência, dedicação e sem qualquer tipo de discriminação dos subordinados. E fizeram-no, sem se abdicarem dos seus princípios e valores, nomeadamente integridade, frontalidade, lealdade, humildade e sentido de justiça.

O sucesso e o rigor da análise imortalizaram Laurence Peter e a sua regra foi confirmada e desenvolvida em muitos estudos científicos ao longos de mais de 50 anos.

Efetivamente, relacionado com o “Princípio de Peter”, Peter Druker formulou um outro princípio, igualmente pertinente: “Nenhuma organização pode ir melhor do que as pessoas que tem”. Tal princípio revela, obviamente, a forma como essas pessoas são escolhidas para os lugares de topo: pelo mérito, ou pelo compadrio e pela fidelidade. Convém, porém, não confundir fidelidade com lealdade, pois, enquanto a fidelidade é canina, a lealdade é nobreza de caráter e frontalidade, contrariamente ao que ocorre atualmente em que ser “talento” é, sobretudo, “dominar a arte de bem saber agradar”, como dizia alguém.

Por seu turno, Adrian Wooldrige, editor do The Economist, citado num artigo publicado no jornal português “O Observador” (edição online de 16 de julho de 2021), publicou um livro, argumentando que a meritocracia é condição necessária para o crescimento económico. Para o autor, a meritocracia é inclusive mais importante para o avanço da economia do que a qualidade da democracia ou o tamanho do Estado. Cita, como exemplo, a Singapura, um Estado pouco democrático, mas com elevado nível de desenvolvimento económico ou os países escandinavos, que embora tenham elevado peso do Estado, têm performances económicas que contrastam com os países do Sul da Europa, onde o clientelismo e nepotismo são prática corrente.

Cabo Verde sempre teve o problema de falta de meritocracia. Mas atualmente, assiste-se o assalto da AP por “boys” incompetentes, numa dimensão nunca dantes vista e realizado com total descaramento. Pior do que isso: quando não há outra forma de enquadrar os “novos melhores filhos da nossa terra”, criam-se novas estruturas ou novos e bons “jobs for de boys”, engordando, ainda mais, o Estado. 

Entretanto, para o nosso desenvolvimento, precisamos de uma apologia do mérito no nosso contrato social. Enquanto sociedade civil, precisamos de combater o clientelismo a nível político-partidário e o nepotismo. De um modo geral, devemos ser intransigentes com todos os casos de falta de mérito, incluindo os casos que nos são próximos e onde tantas vezes pactuamos com favores, amiguismos e cunhas.

Praia, 17 de fevereiro de 2024

*Doutor em Economia

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