Por: Alexssandro Robalo
Quando escrevi, para este semanário, em meados do ano passado, questionando acerca de quem realmente tem a legitimidade para falar da educação pública, não fazia a mínima ideia de que realmente poucos meses depois estaríamos perante um momento singular em termos de enfrentamentos públicos em prol da educação em Cabo Verde. Pouca ideia também fazia de que uma nova história iria ser escrita em termos de luta dos educadores e educadoras deste país.
Em outubro e novembro de 2023, as ruas de Cabo Verde foram ocupadas por uma classe que há muitos vem dando sinal de cansaço, indignação e uma profunda revolta com o atual estado de coisas na matéria da educação. Ignorar a indignação sem precedentes por parte dos educadores destas ilhas (des) afortunadas só pode ser resultado de uma enorme desconexão com a realidade e/ou uma inexplicável arrogância, mormente por parte dos dirigentes que vêm comandando o establishment.
A manifestação de outubro, com massiva aderência, assim como a greve de novembro servem para demonstrar que definitivamente já não há como tapar o Sol com as mãos. Dizendo de outro modo, o silêncio e a inoperância da classe foram abolidos, permitindo que no chão firme da luta fossem lançadas sementes que hão-de germinar novas possibilidades para a educação e quiçá para o futuro desta nação.
Devemos admitir que o atual sistema educativo vem dando inúmeros sinais de colapso. Para ilustrar tal colapso basta uma análise crítica e atenta do cotidiano das escolas do país. O desânimo, a desmotivação e o desinteresse por essa instituição demonstra de modo inequívoco o aceleramento de tal colapso. Os dois sujeitos que melhor evidenciam a atual crise do sistema são os professores e os estudantes. Ambos poderão ser diagnosticados com um estado psicológico muito similar. Daí, urge (re) pensar a saúde mental no ambiente escolar!
A distância entre a atual retórica (propagandística) governamental e a situação real enfrentada por parte dos protagonistas do sistema educacional vem atingindo um nível abismal. Um exemplo paradigmático foi a apresentação cinematográfica dos novos manuais do 9º ano, com a honrosa presença do Ministro da Educação da (antiga) metrópole, quando numa ilha como Maio, durante todo o primeiro trimestre, nenhum exemplar do referido manual sequer foi disponibilizado para a compra.
Exemplos desta natureza abundam. A reforma curricular em curso ilustra muito bem esse paradoxo, em que o “embrulho” tem toda uma aparência de excelência, enquanto o “produto” não é assim tão bom. Com a reforma e a implementação de um novo sistema de avaliação, passou-se a ter uma carga horária menor, enquanto se aumentou o número de elementos avaliativos, gerando, nos professores e alunos, maior situação de ansiedade, stress e cansaço.
Outro exemplo tem a ver com certas disciplinas que fazem parte dos documentos oficiais, pomposamente divulgadas, mas não sendo disponibilizadas nas ilhas e concelhos “periféricos”. Portanto, vê-se que o pano de fundo da atual reforma curricular é fundamentalmente cosmético. A mudança de fundo, estrutural e radical ainda se espera!
Situação mais crítica na educação atual tem a ver com o aumento da precarização laboral. Além do já normalizado atraso no pagamento dos salários dos professores “novos” no sistema, os contratos precários e “flexíveis” (prestação de serviço) vão ocupando cada vez maior espaço no processo de contratação de professores.
Para piorar, este ano vem acontecendo algo novo no mundo laboral da classe. Pois, muitos professores assinaram dois contratos num único ano letivo, sabendo que o segundo precariza brutalmente as condições dos novos professores. São esses mesmos docentes que estão neste momento com o atraso no salário novamente! Para além de me parecer ilegal, tal atitude carrega no seu bojo uma imoralidade desmedida!
O avanço da precarização laboral no sistema educativo não é somente por parte dos professores, outros profissionais do setor vão enfrentando a mesma violência do Estado! Para comprovar isso basta investigar os inúmeros profissionais que atuam nas escolas públicas do país e outras estruturas da educação para se dar conta de uma máquina burocrática com sangue nas mãos porquanto vem implementando um nível vergonhoso de exploração laboral.
Por isso, é urgente uma intervenção de fundo nesta matéria, fazendo valer as leis que tanto se propala por cá. O Estado perde total e qualquer força moral de exigir do privado o cumprimento das leis, quando ele próprio é um veterano reconhecido na matéria da exploração e violação das mesmas leis.
Paradoxalmente, num momento em que um número bem expressivo dos professores vêm pedindo licença de férias sem vencimento, outros até desvinculam unilateralmente com o Ministério. A “resposta” para tal situação vem sendo o recrudescimento da deterioração do ambiente escolar. Isso tudo demonstra uma falta de vontade genuína no sentido de se melhorar as condições de trabalho e, por conseguinte, revitalizar o sistema educativo.
Numa ocasião em que a UNESCO dá conta de uma falta gritante de professores em todo mundo, o Ministério da Educação vai andando na contramão, ao gerar condições objetivas e subjetivas de desmotivação por parte dos professores! Nas celebrações do dia do professor no ano passado, aquela agência das Nações Unidas propôs “colocar no topo da agenda global a importância de deter a redução no número de professores e de começar a aumentar esse número”, defendendo “uma profissão docente digna e valorizada ”.
Em boa verdade, o governo da república, fora da retórica oficial, vem contrariando essas orientações da UNESCO! A confirmação desta afirmação não pode vir nem do Senhor Ministro, muito menos dos deputados e daqueles cuja função tem sido defender o status quo. É preciso dialogar com os educadores e educandos destas ilhas!
Para concluir, é urgente um combate amplo e coletivo da educação pública. Esta deveria ser uma pauta de luta de toda a sociedade. Por incrível que possa parecer muitas organizações da dita sociedade civil vêm negligenciando este assunto, preferindo quase sempre as grandes questões da moda, frutos das agendas exógenas e propagandeadas pelos organismos internacionais, designadamente as ONG’s provenientes do mundo ocidental com posturas (neo) coloniais.
É preciso perceber que a luta por uma outra educação e uma nova escola pública não é um assunto exclusivamente dos educandos e educadores. Ela é um assunto que merece a atenção e o engajamento inequívoco de todos. Acima de tudo, se ansiamos por uma sociedade mais justa, equilibrada e democrática, não podemos, contudo, ignorar pura e simplesmente o papel que a educação pública deve ocupar na materialização desta utopia.
Portanto, o combate ao desmantelamento do sistema público de ensino deverá ser uma preocupação principalmente das classes mais oprimidas e empobrecidas e de todos aqueles que (ainda) sonham com um mundo melhor.