Esta é a história de um músico que começou pela construção civil. Benfiquista de coração, ele içou – de punho vermelho – a bandeira do Sporting e participou na construção do verde Alvalade XXI… “porque me pagaram”, justifica-se ele. Hoje, reformado, tem um segundo hobby que não o larga: o horto de lavra. Sempre com música no peito, realizou agora em Junho um grande sonho “cantar para o mundo”, através do programa Show da Manhã, da TCV.
Poderia responder pela alcunha de Chico Didi, uma homenagem ao pai, mas prefere que seja chamado de Chico D’Ina, nome artístico para eternizar a mãe, aquela que sempre o quis por perto, talvez mesmo “debaixo das suas saias”, particularmente, nos momentos em que Didi Fernandes se atirava a ele para lhe arrancar o couro, quando em criança pisava a linha vermelha.
Tinha desenvolvido muito afecto por Ina Landim, uma mulher batalhadora, protectora, lá das bandas de Rebelo-Abaixo, localidade encravada na encruzilhada entre os concelhos dos Picos e de Santa Cruz, povoada por gente fustigada pela pobreza 24 horas por dia. E por isso mesmo Chico D’Ina jurou romper com esse ciclo, dando uma vida mais digna à mãe. Mas sendo certo que não seria possível cumprir este desígnio neste cutelo, a solução seria vencer o dilema bem cabo-verdiano: partir, mesmo querendo ficar. Só precisou de 3.000$00, o preço de um bilhete de avião à época, para sobrevoar o mar, fixar residência perto de Lisboa e trabalhar, começando como servente de obra. Estamos, então, em 1973, ano em que Chico D’Ina desafiou corajosamente a sua idade – 16 anos – a tal fronteira entre a adolescência e a fase adulta, o ponto onde o ócio é permitido e o trabalho remunerado condenado.
“Meu primeiro salário? Tive que dar luta ao encarregado da obra. Aliás, a primeira coisa que lhe perguntei foi ‘quantos é que me iria pagar’. Lembro-me que ele olhou-me dos pés à cabeça e, avaliando-me por baixo, respondeu sobranceiramente: ‘50$00’. ‘Mas isso nunca! com este dinheiro eu não poderei ajudar a minha pobre mãe!’, respondi em prantos, chorando muito. Sensibilizado, ele também se emocionou, dobrado pelos objectivos que me moviam. E lá atirou com outros 25$00, agora num total de 75$00 por dia”, recorda hoje Arnaldo Barros Gomes-Chico-D’Ina, ao fazer uma retrospectiva relativa ao dia em que assinou o seu primeiro contrato de trabalho.
Estava aberto o caminho para a concretização do sonho de Chico D’Ina – ajudar a mãe que tanto ele também amava. De resto, logo no primeiro mês, Ina Landim recebeu 950$00; no mês seguinte, outros 950$00 e assim por diante. “Uma fortuna na década de 1970”, segundo se recorda Chico D’Ina, que manteve continuada essa remessa.
O grueiro de Alvalade XXI – benfiquista, mas de bandeira verde içada sobre a cabeça
Em 1974 Chico D’Ina viu-se forçado a regressar a Cabo Verde. Já não tinha forças para continuar a trabalhar como pedreiro, devido a uma lesão. Ajuizado como é, tinha poupado o suficiente para uma eventual reconversão profissional. Digamos que o menino de Rebelo-Abaixo desejava – e precisava – de uma ocupação laboral que lhe permitisse poupar no físico e ganhar mais dinheiro. E ser motorista seria uma alternativa boa nesse sentido. De modo que depois de aprovado na carta de condução – e ante as dificuldades de um emprego na qualidade de motorista-auto na sua terra – ele rapidamente fez o caminho de volta a Portugal, onde lhe aguardava agora uma vaga, enquanto manobrador de Dampa.
Para quem não se lembra, em 1999-2000 Portugal tinha concorrido e sido eleito para sediar o Euro 2004. “Aqui, voltei a ver uma luz ao fundo do túnel”, lembra ele. A UEFA queria estádios modernos e a Federação Portuguesa de Futebol (FCF) e os leões de Alvalade concordaram por um novo estádio – o Alvalade XXI. Muito dinheiro iria circular – 184 milhões de euros para substituir o velho José de Alvalade, então com 44 anos. Dezenas de africanos, entre os quais mais de 100 cabo-verdianos concorreram para ajudar a erigir o empreendimento. A Chico D’Ina, que já tinha uma experiência de manobrador de Dampa, foi-lhe confiada as chaves de uma grua.
Ele ia agora trabalhar a 50 metros de altura, “mais 40 do que eu estava até então habituado”, assegurou, para acrescentar: “Apesar de ser benfiquista, foi uma grande honra participar nesta obra dos ‘lagartos’, trabalhámos incansavelmente. Logo nos primeiros dias, nós, os grueiros, recebemos uma bandeira verde do Sporting que tinha de ser hasteada ao alto. Sempre que eu olhava para cima, dava-me com ela. Era esquisito, mas trabalho é trabalho, não me posso queixar por isso”, recorda hoje, agradecido.
Chico D’Ina orgulha-se de ter concorrido para que Alvalade XXI tenha hoje uma outra roupagem – Centro Comercial Alvaláxia, o Multidesportivo, o Holmes Place, a Clínica CUF, o Edifício Visconde de Alvalade – valendo o facto de ter acolhido importantes jogos do Euro-2004, sem contar com a final da taça UEFA 2004-05, sendo o primeiro estádio de Portugal a receber a distinção “5 estrelas” pela UEFA.
Ele nunca mais abandonou uma grua. Fez a vida de grueiro até 2024, ano em que se retirou do activo laboral remunerado.
Entre a arte e…
Apesar de reformado hoje, Chico D’Ina mantém-se hirto, mas agora fazendo-se pela vida entre o ócio e algum hobby, navegando entre a arte e o horto de lavra. Com a primeira, afina-se pela música que lhe persegue desde criança, tempo em que cantarolava aos ouvidos da mãe… e por aí, ao ar livre. As gravações começaram relativamente tarde. Sempre com letras de sua autoria, o primeiro álbum “Ema”, um funaná que homenageia o filho que vive nas estrelas, só saiu em 2003; depois, veio “Nka Speraba” (2013), um zook que tenta recuperar uma amizade perdida; “Conselheiro” (2022), funaná que presta tributo a um conselheiro popular de Rebelo-Baixo; “Manuela” (Idem), um zook num dueto com Marisa Semedo, retrata um amor não correspondido.
O ano de 2023 foi o mais produtivo: dois funanás – “Tchuba”, que retrata o desencontro amoroso, e “Karine”, que fala de traição e decepção amorosas; e “Angeline”, um zook relativo à separação entre pessoas que se amam. Mas em 2024 Chico D’Ina, que nasceu em Degredo (Picos), presenteou os seus fãs e amigos de infância com o maior de todos os seus álbuns: “Robelo”, um kotchy-pó, lançado nos meados de Maio para homenagear a terra que o acolheu e o viu crescer. Já vai em mais de 13.100 visualizações em menos de dois meses.
Em Maio último, Arnaldo Barros Gomes-Chico D’Ina regressou a Cabo Verde de férias para um pouco de turismo e realizar seu grande sonho – entrar pelas portas da Televisão de Cabo Verde (TCV) e participar no programa Show da Manhã. “Foi um grande momento na minha curta vida de artista”, declarou, para acrescentar: “Fui muito bem acolhido, trataram-me muito bem, particularmente os apresentadores Ângela Mendes e Jailson Miranda, e a produtora Daniela Robalo. Permitiram-me cantar para que todo o mundo escutasse a minha voz”.
…O horto de lavra… “a minha mata-vida”
Trabalhar a terra é também um exercício de terapia, uma forma de matar saudades pelo regresso a uma actividade que durante muitos anos Chico D’Ina realizou, em criança e em adolescente, entre Degredo e Rebelo-Baixo. É por isso que esta ocupação lhe persegue ainda hoje.
“Logo pela manhã, nas primeiras horas do dia, eu desço para a minha horta. Chamo-lhe ‘mata-vida’, justamente porque este horto de lavra dá-me mais trabalho de que colheita. Mas eu me divirto, é terapêutico e me permite experimentar um regresso ao meu passado de agricultor, junto aos meus familiares, em Cabo Verde. Rejuvenesço ao ver crescer e nascer tomates, cebolas, couves, milho, etc. Tudo para o consumo caseiro, mesmo sabendo que posso adquirir tudo isso a muito menos custo nas feiras”, diz Chico D’Ina, para acrescentar: “mas eu me divirto, este é um hobby adorável”.
Chico D’Ina, 66 anos, é casado com Helena Fonseca, que o acompanha desde criança e com quem teve dois filhos – o Emanuel e o Ronaldo. Vive em Rinchoa, no Rio do Mouro.
José Mário Correia