Por: Démis Lobo Almeida*
Por razões mais do que óbvias, está muito longe de se ter por seguro que a interpretação dos Serviços da Presidência da República sobre o estatuto da Primeira-dama virá merecer acolhimento da parte das chamadas instâncias de controlo, no caso o Tribunal de Contas e a Inspeção Geral das Finanças, esta um serviço na total dependência hierárquica do Vice-Primeiro Ministro, o que já diz muito da isenção do seu aguardado veredicto.
Entretanto, o que já se pode ter por cristalino é que os membros do Governo que se têm pronunciado publicamente sobre o assunto, em especial o sr. Primeiro-Ministro e o sr. Vice-Primeiro-Ministro, não se têm primado pela coerência, pelo rigor e, muito menos, pela lealdade institucional.
Muito pelo contrário, têm-se esforçado, num misto de trapalhadas e inverdades, por dizer, ou deixar entender, que é tudo ilegal.
O primeiro a se pronunciar publicamente sobre a matéria foi o sr. Primeiro-Ministro que, ao ser questionado, à saída dos cumprimentos de ano ao sr. Presidente da República, do porquê de o Governo não ter ainda resolvido a questão do estatuto da Primeira-Dama, respondeu que a matéria não é da competência do Governo, mas sim do Parlamento, pelo que o assunto estaria a ser ainda – mais de um ano sobre a data em que recebeu a proposta da Presidência da República! – objeto de ponderação.
Já o sr. Vice-Primeiro-Ministro, ao ser entrevistado na Rádio de Cabo Verde, no programa Café Central, do jornalista Carlos Santos, do passado dia 19 de Janeiro, mostrou-se mais peremptório. Sem apelo nem agravo, sentenciou logo que “em Cabo Verde não existe a figura de Primeira-dama. Não existe, Carlos, nem na Constituição, nem em qualquer outra lei. Se não existe, não se lhe pode atribuir um salário”.
Simplesmente confrangedor!
Confrangedor, desde logo pela inverdade proferida ou crassa ignorância revelada. Mas também pelos enormes danos reputacionais que, ao anunciar a posição oficial do Governo, o também Ministro das Finanças acaba por infligir à credibilidade de instituições do Estado, supostamente independentes, de quem se aguarda ainda um pronunciamento, com a devida isenção, sobre a matéria.
Senhor Vice-Primeiro Ministro, ao contrário do que afirma, aparentemente, sem se preparar minimamente para falar desse assunto em público, em Cabo Verde a figura de Primeira-dama está, há já alguns anos, escarrapachada na lei.
A Primeira-dama é titular de um alto cargo público, com estatuto autónomo, não por capricho dos Serviços da Presidência da República, mas sim por expressa determinação legal.
Sem necessidade de ir mais longe, convido Vossa Excelência a ler e a interpretar o Decreto-Lei n.º 14/2017, de 30 de março, aprovado no dia 9 de fevereiro, pelo Conselho de Ministros de que o Senhor faz parte, e promulgado pelo então Presidente da República, Dr. Jorge Carlos Fonseca, que introduziu uma alteração ao Decreto-Lei n.º 15/2014, de 26 de fevereiro, precisamente para fazer acomodar na lista dos Titulares de Altos Cargos Públicos desta República, isentos da sujeição ao rastreio nos aeroportos, a figura da Primeira-dama, assim expressamente designada por lei, Senhor Vice-Primeiro Ministro!
Já o Decreto-Lei n.º 12/2019, de 22 de março, também do Governo de que Vossa Excelência faz parte, vem confirmar no seu preâmbulo, e de forma bem enfática, que se está perante uma “lista de titulares de altos cargos públicos”, de que fazem parte, entre outros Altos Dignitários, o Presidente da República, o Presidente da Assembleia Nacional, o Primeiro Ministro e demais membros do Governo, o Presidente do Tribunal Constitucional, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o Procurador Geral da República e, ao lado deles, a Primeira-dama.
Mais, a Primeira-dama é tida como uma entidade autónoma, por inerência do seu estatuto oficial, pois goza dessa prerrogativa por direito próprio e em qualquer circunstância, mesmo que esteja a viajar sozinha, tal como os outros Altos Cargos Públicos que constam desse elenco, ao contrário, por exemplo, dos cônjuges do Presidente da Assembleia Nacional e do Primeiro-Ministro, que só beneficiam dessa isenção se estiverem a acompanhar os respetivos esposos.
É, assim, muito grave ouvir da boca da segunda figura da hierarquia do Governo deste país, em entrevista à Rádio Nacional, a afirmação de que “em Cabo Verde não existe na lei a figura de Primeira-dama”, pelo que não se lhe pode atribuir uma compensação, quando exerce o cargo a tempo inteiro. Sobretudo porque fê-lo com o indisfarçável propósito de condicionar e inquinar o sentido dos esperados pronunciamentos dos seus subalternos da Inspecção Geral das Finanças, quiçá até do Tribunal de Contas.
Já agora, impõe-se ir mais longe e colocar a decisiva questão: se o Governo de Ulisses Correia e Silva pôde, como já ficou bem demonstrado, chamar a si em 2017 a competência para, através de um Decreto-Lei, alcandorar o cônjuge do Presidente da República ao elenco dos altos cargos públicos da República, por que razão em 2022/23, e para os demais aspetos do respectivo estatuto, o Governo já prefere refugiar-se no argumento de que a competência é da Assembleia Nacional?
Então, o mesmo Governo ora tem competência própria para legislar na matéria, por Decreto-Lei, ora deixa de ter competência, a seu talante, consoante quem for, em concreto, o Presidente da República e a Primeira-dama do país?
Isso é digno de um Governo de um Estado decente?
É certo que essa postura do Governo tem contado com a solícita e efusiva assessoria digital de certas luminárias, sempre à espreita de mais uma avença.
Mas, é notória a intrínseca incongruência, para não dizer a falta de seriedade, dos que afirmam que a competência para regular a matéria atinente ao cônjuge do Presidente da República pertence exclusivamente ao Parlamento, ao mesmo tempo que vão dizendo que nessa matéria Cabo Verde se deve inspirar no exemplo de Timor-Leste.
É que em Timor-Leste todas as disposições atinentes ao estatuto do cônjuge do Presidente da República, incluindo as que preveem que ele tem direito a um subsídio de compensação, quando tiver que renunciar ao seu emprego, foram aprovadas, sem qualquer controvérsia, pelo Governo, através de um Decreto-Lei, o Decreto-Lei nº 44/2015, de 28 de dezembro, ou seja no âmbito da competência legislativa, constitucionalmente prevista.
Ora, haverá em Cabo Verde algum óbice constitucional a que o Governo legisle também sobre o estatuto do cônjuge do PR, através de um Decreto-Lei, como já fez no passado, ao introduzir a figura de Primeira-dama na nossa Ordem Jurídica, elevando-a à dignidade de alto cargo público? Haverá alguma disposição na Constituição que reserve à Assembleia Nacional a competência legislativa absolutamente reservada para legislar sobre o estatuto do cônjuge do PR, cargo já criado por lei?
Muito sinceramente, da nossa parte não a vislumbramos.
Seja como for, a bola está indiscutivelmente do lado do Governo, que não deve perder mais tempo com tergiversações, inverdades e outras escapatórias, que não lhe ficam nada bem, devendo, ao invés, dar sinal de boa vontade e de predisposição para a leal cooperação institucional com o Presidente da República, o órgão de soberania, o representante da Nação, eleito por sufrágio universal, direto e secreto de todo o Povo de Cabo Verde.
Afinal, é a dignidade desta República que o exige.
*Deputado à Assembleia Nacional
Jurista | Mestre em Direito