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Boa Vista

Viagem pelos museus: Boa Vista, um mar de vidas e de histórias

Os três pisos do Museu dos Naufrágios, em Sal Rei, reúnem a história cultural e trágico-marítima da Boa Vista, desde o surgimento da ilha, há 40 milhões de anos, até às grandes casas comerciais, o nascimento da morna e a vida simples dos seus habitantes. Uma forma de trazer a riqueza da ilha aos turistas que a visitam, mas também para que as novas gerações se sintam orgulhosos da sua história. A Casa Sodade traz a memória de como se vivia na ilha e o Forte Duque Bragança é um exemplo de recuperação do património histórico nacional.

Depois de anos de trabalhos em pesquisa arqueológica no norte de África, pela Tunísia e a Líbia, Maurizio Rossi descobriu Cabo Verde e a sua história trágico-marítima, através da ilha da Boa Vista. Homem apaixonado pelas “montanhas atlânticas e sub-atlânticas”, pelo paleolítico e o neolítico, o italiano já tinha um currículo de publicações de trabalhos, sobretudo sobre a arte desse tempo remoto da Humanidade. Mas, como conta, a Boa Vista na sua vida é um “caso estranho”. 

Chegou por volta do ano 2000 numa altura em que tudo começava a mudar na ilha, “as novas construções, com o ‘fermento’ da modernidade, aquela mistura do passado colonial, da tradição, o tipo de trabalhos antigos, apanha da urzela, a parte velha de 1800 estava a perder-se, as novas gerações não tinham qualquer memória desses factos, dessas coisas, desse mundo, que estava a desaparecer, e toda essa grande riqueza cultura que a meu ver é um contributo inestimável para a cultura da Humanidade, e que  se está a perder graças à actual globalização, que tende a modificar tudo a tornar tudo igual”. 

O italiano aponta a praça central de Sal Rei, as casas baixas que aí estavam, “tudo vem sendo destruído a cada dia que passa, como a antiga casa do governador, a fábrica de atum, de uma arqueologia industrial fabulosa, os barcos atuneiros ‘Júlio César’, ‘Manuel Garcia’…” 

As memórias recuam ao dia em que, chegou de férias, primeiro para o Sal, “mas já havia muito turismo nessa ilha, já estava adiantado e a Boa Vista tinha características muito interessantes”. No Museu dos Naufrágios, o projecto da sua vida, “um sonho que levou três anos de trabalho e de investimento pessoal” todas as semanas recebe alunos das escolas da ilha, que têm entrada gratuita, assim como para os habitantes da ilha. 

“O museu é importante para as crianças e também para os turistas que não sabem nada sobre a história da ilha, porque raramente entram em contacto com a cultura da ilha e eu digo-lhes sempre que ela faz parte do património da humanidade.”

Percorrer a ilha a pé

A história da ilha é a grande aventura da vida de Maurizio e lamenta que, apesar de rica, ninguém está interessado em divulgá-la. “Não é só o sal, a urzela ou a ‘marinharia’, muito antes disso a Boa Vista exportava pele de cabra, no século XVII, até Cristóvão Colombo fala das cabras de Boa Vista, da carne salgada, mas o que está a mudar nestes últimos 20 anos é a rapidez da modernidade, as pessoas pensam só no sol e no mar, praia, mas a Boa Vista tem muito mais do que isso”. 

Uma descoberta que o levou a fazer as malas cinco meses depois de regressar a Florença, a sua cidade, e a voltar logo para Cabo Verde. “Era tudo muito diferente na época, havia muito peixe, vendia-se às pessoas na praia, a porta das casas deixadas abertas, um lugar ainda isolado, mas com muita humanidade.”

Voltou para percorrer a ilha a pé, para conhecer todos os seus cantos e povoados, viu que havia muito história, mas ele não a conhecia ainda, comprou então uma casinha perto do porto, onde ainda mora com o filho e a filha. A ilha surge como uma espécie de causa e razão de existência. “A história e a humanidade que ainda existem na Boa Vista é preciso ser preservada, algo que pela Europa já se perdeu. Tenho orgulho em ser italiano, mas neste momento a Europa está num rumo que não é nada bom.” 

Começou por passar seis meses por ano na ilha, numa época em que o filho e a filha eram pequenos. Maurizio apaixonou-se também pelo mergulho e uma coisa levou à outra, aos naufrágios, ao que resta de navios e galeões destroçados contra os baixios e as rochas, que repousam no fundo do mar, na zona Norte. E foi daí que começaram a vir os artefactos e objectos que hoje fazem parte do acervo do seu Museu dos Naufrágios, que ocupa todo o edifício de três andares, não muito longe do centro de Sal Rei.

Cenário de piratas

Para quem chega, encontra um piso térreo transformado numa cena trágico-marítima, ambiente sombrio, com a reconstituição de parte de um galeão: a câmara, os artefactos de marinharia, baús, canhões, espadas, instrumentos de navegação, tudo como que saído do filme os Piratas das Caraíbas, o camarote do capitão Jack Sparrow. Nos outros pisos passamos pela história da ilha, da explicação das duas erupções, ocorridas há 40 e 20 milhões de anos, “o que torna Boa Vista a mais velha das ilhas do arquipélago, dos tempos do povoamento, da escravatura, mais salvados dos mares em volta, de embarcações apanhadas no confusão trágica da declinação magnética provocada, como se fala, pelo Monte Negro. “Fala-se de uma declinação de 10, 15 graus, mas eu fiz um cálculo de medição, analógica e digital, num barco ao largo, e medi 45 graus…”

O Museu resume a história da terceira maior ilha do país, pelos três pisos, com objectos recuperados na lixeira recuperados do fundo dos mares ou mesmo doados por amigos que se juntam ao esforço do italiano, na divulgação da cultura e da história da Boa Vista. Para além da linha evolutiva, numa sequência temporal e cronológica, que percorre as paredes, mostruários contêm moedas de ouro (réplicas) encontradas, facas, ossos de baleias, fósseis. 

Maurizio mostra outra réplica, desta vez do mapa do Atlântico, atribuído ao mouro Idrisi Mohamed, que por volta do ano 1100 depois de Cristo já trazia a ilha da Boa Vista, ou de Blanco, em 1300. “É mais do que provável que outros povos tivessem estado aqui, mas não ficaram porque não havia água.” Mas o museu também mostra parte da história recente da ilha, da família Benoliel, da actividade económica e costumes locais, e da história da morna, entre outras.

O outro lado dos naufrágios é que permitia à população da ilha ter acesso a alguns materiais que escasseavam na sua terra, quando davam à costa. Os salvados que poderiam depois ser trocados por outros bens. O Museu dos Naufrágios vive da visita dos grupos de turistas, que pagam um valor pela entrada, assim como da venda de artesanato alusivo ao mar e à cultura da ilha e ainda de um bar com esplanada no último piso. E aqui escutam histórias de Francis Drake, Cassard e outros piratas cuja passagem pelos mares e pelas costas das ilhas ficou registada no imaginário colectivo, pelos roubos e pela destruição deixada atrás de si. Realizado o sonho da sua vida, Maurizio conta com a ajuda da filha e do filho, que também cresceram na Boa Vista e falam fluentemente o crioulo.

Mesmo com outra mentalidade e alguns ‘vícios da globalização’, como os telemóveis, Maurizio acredita na capacidade das novas gerações em conhecerem e se sentirem-se orgulhosos da história e da cultura da sua ilha natal. “Se forem bem direcionados, eles ainda têm uma energia muito boa que na Europa já se perdeu. Não devemos deixar perder esta forma de vida tradicional, esta autenticidade, a história da Humanidade é fantástica graças à sua diversidade, mas com a globalização há o risco do nivelamento que torna tudo muito igual.”

Joaquim Arena

Leia na íntegra na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 880, de 11 de Julho de 2024

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