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Por um governo de leis 

Por: Germano Almeida

Cito um trecho do artigo do advogado Francisco Mendes da Silva no jornal Público do dia 07.07.23: “Aquilo que a comunidade política deve aspirar, disse-o John Adams, é a ser governada por leis, não por homens. Parece uma tautologia ociosa, porque ser governado por leis é ser governado pelos homens que as fazem. Mas o sentido do que o segundo presidente dos Estados Unidos quis dizer é que só há uma forma de evitar que o exercício do poder seja privatizado em nome do arbítrio e dos interesses de uma minoria, e essa forma é a sujeição do poder aos limites da Justiça impostos na Lei”. 

Ao defender um governo de leis, para que “o exercício do poder não seja privatizado em nome do arbítrio e dos interesses de uma minoria”, Adams nunca terá imaginado que num pequeno país com o nome de Cabo Verde as leis, na realidade entre as mais progressistas do mundo inteiro, poderiam vir a ser torpedeadas, massacradas, torturadas, até se ajustarem aos interesses de uma minoria que, já indistinta entre partidos políticos, ou seja, entre ideologias da situação e da oposição, porque já ambas convergentes num único e mesmo interesse.

O exemplo mais recente é a decisão dos juízes à frente do Tribunal Constitucional que, através de um intenso e aturado jogo de palavras, tiveram artes de transformar um eventual costume claramente contra todas as leis, em qualquer coisa capaz de sobrepor-se a uma norma inserida num preceito constitucional nacional, porém seguramente de carácter universal porque correspondente ao mínimo do direito natural. Antígona diria que de acordo com as leis não escritas e imutáveis do Céu. Com efeito, em parte nenhuma do mundo um costume contra a lei poderá sobrepor-se a uma lei qualquer, quanto mais sobrepor-se à Constituição.

Um avultado número de cidadãos nacionais subscrevem uma petição a pedir ao presidente da República que requeira ao presidente da Assembleia Nacional uma reunião daquele órgão para apreciar e decidir em que medida o costume sobreposto à lei virou norma geral, ou se foi só naquele caso concreto e específico, diga-se claramente, apenas para manter o deputado Amadeu Oliveira na cadeia.

O suporte invocado foi a alínea o) do nr 1 do artº 135º da Constituição: poder o presidente da República requerer ao presidente da Assembleia Nacional a convocação extraordinária daquele órgão para apreciar assuntos específicos.

Nem na Constituição nem em nenhuma lei existe um enunciado do que sejam “assuntos específicos”. Fica, pois, no critério do presidente da República decidir que questões merecem ser classificadas como específicos e dignos de serem apreciados pela Assembleia Nacional.

 O presidente, muito cordialmente, recebeu alguns dos subscritores da petição no palácio para entrega formal do documento; dias depois endereçou-lhes uma cortês missiva expondo as suas razões para não fazer essa convocação da Assembleia.

Algumas vozes que já se tinham manifestado contra a ideia de convocar a Assembleia, embandeiram-se em arco. Compreende-se: esse assunto é escabroso, é como se fosse vergonhoso. Ver o Tribunal Constitucional, o pai e mãe de todos os tribunais, praticamente defenestrado. Não é bom para nenhum de nós que amamos o nosso país e queremos que ele tenha uma JUSTIÇA SÉRIA. E é por isso que o TC nunca deveria ter-se permitido pôr-se a jeito de se sujeitar ao vexame de ver mais de 2500 cidadãos do país a questionar uma sua decisão como manifestamente absurda, porque fora de todos os princípios e regras.

 Porque ninguém é ingénuo a ponto de acreditar na boa fé da decisão do TC no que se refere ao costume contra a lei virado de repente a favor por evidentes artes de magia. Essa má fé fica evidente quando se lê o longo acórdão com atenção: é como se fosse a construção de uma estrada, a princípio sinuosa, tateante, mas para logo depois desembocar triunfante… num precipício!

 Mesmo aqueles que manifestaram recear eventuais tumultos caso o presidente indeferisse a petição pública (eu julgo saber que brincavam, mas prefiro dizer que não conhecem o seu povo!) não terão dúvidas sobre uma certeza: o írrito acórdão do TC teve como único objetivo salvar a honra da Assembleia Nacional, perdida quando permitiu que a comissão permanente entregasse um deputado ao tribunal penal para ser preso e portanto contido, sem nunca este ter sido judicialmente pronunciado por um qualquer crime.

Mas nós também não somos ingénuos: mesmo que o presidente da República tivesse optado por aceitar o requerimento de convocação, a AN nunca iria cumprir esse requerimento, nunca iria ser menos grata para com um TC que lhe tinha salvo as aparências através de um acórdão que brada aos céus, como diz o povo, uma mão lava outra e ambas vão ao rosto. Portanto, essa reunião estava à partida condenada a nunca acontecer. A única pena é que no meio dessas trocas de agrados e favores, haja um homem a chaves condenado a sete anos de cadeia por um crime que continua existindo apenas nas palavras que os juízes inventam e escrevem nos autos, assim lhes dando existência real.

Mas parafraseando Daniel Filipe no seu poema A Invenção do Amor, que importância pode ter a vida ou a liberdade de um deputado desbocado, quezilento, nada respeitador das excelências e que ainda por cima enche a boca e acusa alguns magistrados de inserir falsidades dos processos. Não há, pois, razão para os órgãos de soberania não continuarem nos abraços e ele na cadeia.

Acresce ainda por cima que desde que o Amadeu está preso que os magistrados estão vivendo um bom período de relax, nunca mais tiveram aqueles sobressaltos a que os obrigava o ora engavetado a cada manhã na rádio ou no Facebook com as suas diatribes. Os magistrados estão agora todos descansados, sabem que enquanto o Amadeu continuar na cadeia ele não tem acesso a essas armas de ataque que usava com ferocidade, esquecido que pedra ca ta djuga cu garafa. Acreditou que vivemos num estado de direito democrático onde as leis são respeitadas e cumpridas, e lixou-se. E o mais irónico de tudo é que ele foi condenado a sete anos de prisão efetiva, acusado do crime de atentado ao estado de direito democrático. Nada poderia ser mais caricato.

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