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Brito-Semedo “nega” aos Cabo-verdianos a sua matriz identitária Africana

Por: Kévin Tavares* 

O antropólogo Manuel Brito-Semedo (MBS) afirmou, numa entrevista à Lusa, que “Cabo Verde não faz parte do continente africano”, uma vez que a sociedade cabo-verdiana está toda ela “virada para a Europa”. Ou seja, nada que nos surpreenda neste nosso Cabo Verde refém de uma narrativa eurocêntrica com origem lá nos primórdios da colonização, adotada pela nossa elite literata da metade do século passado, mormente entre os Claridosos, e que ainda faz escola no atual período da nossa existência.

Num outro momento, tinha ele afirmado que a “sociedade cabo-verdiana nunca foi escravocrata”, contrariando as teses de António Carreira, António Correia e Silva e Elisa Andrade – teses proferidas com bases em documentos históricos que comprovam as ideias defendidas por esses historiadores – numa vil tentativa de adulterar a nossa história. Com que objetivo, todos nós sabemos!

Nas palavras de MBS, “o que importa é a cabo-verdianidade/crioulidade”, esquecendo-se que não surgimos do nada. Existe uma fixação com os termos “cabo-verdianidade/crioulidade” com a finalidade de autoexcluirmos a nossa identidade africana, como se se tratasse de uma enfermidade contagiosa e mortal. 

A cabo-verdianidade não impede a nossa origem africana, e vice-versa. As duas realidades estão intimamente interligadas que não há como desenvencilharmo-nos delas, ou seja, é a nossa herança africana que deu origem àquilo que apelidamos de “cabo-verdianidade”, sem aquela não existiria esta. 

Peguemos o exemplo de Portugal: em que momento o “lusitanismo” é tido como separador da “europeidade” da nação portuguesa, mesmo sendo os portugueses o resultado de várias influências, entre elas, àquela que que lhes foi outorgada pelos mouros durante quase oito séculos de dominação? 

Entre nós, essa negação da herança africana como uma das originárias do nosso surgimento enquanto povo, cheira-me a um complexo que nos foi incutido pelo colonialismo e que continuamos a abraçá-lo com determinação.  

A cabo-verdianidade que tanto propalam com o fim último de tentar apagar a nossa herança africana, foi conseguida à base de estupro, de chibatadas, do esvaziamento das identidades dos africanos escravizados e trazidos para estas ilhas, na sua desumanização enquanto sujeito por direito da sua dignidade humana, entre tantas outras atrocidades cometidas pelos senhores brancos que ainda insistimos em idolatrar. É esta a realidade que tem de ser dita sem nenhum complexo, sem romantização e muito menos naturalização. 

No entanto, ainda existe entre nós aqueles que são saudosistas do “luso-tropicalismo” freyriano, uma ideologia legitimadora do colonialismo português. O que é mais hilariante é que o mesmo Gilberto Freyre, aquando do seu périplo pelo arquipélago teceu considerações contrárias às que os intelectuais de antanho defendiam, tendo como sustentáculo as ideias do brasileiro. Para deceção da elite intelectual cabo-verdiana, Freyre “afirmou que o povo e a cultura das ilhas eram essencialmente negros.” (Anjos, 2002)

Quando se nega a existência de uma sociedade escravocrata em Cabo Verde, coisa que só está ao alcance daqueles que cognominamos atualmente de negacionistas, para se justificar a tese de que “não temos nenhuma ligação com a África”, nada mais é do que sobrevalorizar a influência dos colonos brancos em minoria nestas ilhas desde o começo do seu povoamento, face à presença expressiva dos africanos escravizados trazidos para servirem como força e engenho de uma sociedade a ser inventada. 

Mais, ao rejeitar o papel e a influência destes últimos naquilo que nós somos hoje, MBS demonstra-se claramente como um sujeito alheio à sua realidade, realidade essa à vista de qualquer um que queira tirar as suas próprias conclusões. MBS faz parte de uma elite confinada ao meio urbano, como se só existisse ele como realidade cabo-verdiana, que não se envereda pelos meios rurais onde fervilham as tradições e vivências de matriz africana. Para o seu bem, convido-lhe a sair dessa bolha onde está encafuado!

É lastimosa, pérfida, aleivosa e traiçoeira a atitude que este senhor teve em proferir tamanha mentira nos diversos órgãos de comunicação, quer nacionais quer estrangeiras, pior ainda é ter defendido esta tese no seu mais recente livro. Narrativa essa fácil de ser  desmontada por qualquer sujeito leigo na matéria, bastando ter o mínimo de contato com a literatura especializada no assunto. 

Já é do conhecimento de todos que desde que Cabo Verde é independente imperou a narrativa eurocêntrica e falaciosa que impede aos cabo-verdianos o real conhecimento da sua história, história essa que despojou milhões de africanos das suas raízes, culturas, identidades, da sua humanidade enquanto sujeitos dignos da sua existência. 

Além de tentar reescrever a nossa história, também é um indivíduo que se contradiz, quando afirma que “somos uma sociedade compósita” e que “estamos ligados a África, mas temos a noção que importamos de África uma coisinha”. 

Primeiro, se algo é “compósita” é porque existe uma junção de mais do que um elemento, ou seja, africanos trazidos para estas ilhas, tornado escravizados como motor de desenvolvimento da sociedade escravocrata que deu origem aos cabo-verdianos. Aqui ele começa por desdizer o que tinha dito. 

Segundo, acreditando ele que “importamos uma coisinha de África” e que “existe uma ligação com a África”, demonstra claramente a ligação, que ele defende não existir, com o continente africano. “Não é tentar forçar livremente a escolhermos o nosso destino africano”, diz ele, quando o que ele defende sem ambiguidades é uma opção lusa/europeia. 

Claramente MBS é um negacionista da identidade cabo-verdiana moldada quase na sua totalidade por africanos trazidos do continente. Não é de se negligenciar ou rejeitar a influência e construtos que os colonizadores outorgaram ao surgimento da cabo-verdianidade, muito menos normalizar ou romantizar os efeitos catastróficos que os vários sistemas coloniais infligiram aos povos colonizados, entre eles a enfermidade de que padece Manuel Brito-Semedo: idolatrar o antigo opressor.

Mais, estamos perante um professor universitário, fazedor da academia, lugar de excelência para se moldar e aprisionar as mentes, mormente neste país onde o sistema de ensino obriga a quem lhe está sujeito a “obedecer” quem pressupõe que detém o poder dentro da sala de aula, não deixando brechas ao aluno para contrariar ou mesmo “transgredir”, parafraseando bell hooks, o sistema de ensino. É destas mentes que os nossos jovens estão à mercê! 

Esta sanha diabólica do Brito-Semedo contra a história cabo-verdiana vem na sequência do entusiasmo cada vez mais ardente entre a camada mais jovem de Cabo Verde, sedenta da sua história e identidade, – identidade essa esvaziada pelos mais de 500 anos de escravatura, seguido de 48 anos de inoperância do nosso sistema de ensino da responsabilidade dos  sucessivos governos que controlaram e continuam a controlar os destinos deste país -, tentando confundir e obstaculizar os seus anseios. 

O Manuel Brito-Semedo faz uso da sua caneta, imbuído de uma esquizofrenia “histórica”, com o intuito de despojar os africanos escravizados trazidos à força para estas ilhas, da sua capacidade em ludibriar as correntes com que os opressores lhes mantinham atados, em inventar uma nova sociedade que herdaria riquíssimos aspetos (música, dança, gastronomia, religião, língua, valores, etc.) que constituíam as suas antigas realidades. 

Como diz um provérbio africano, “enquanto os leões não tiverem os seus historiadores, as histórias de caça glorificarão os caçadores”. Infelizmente o Brito-Semedo vestiu-se de historiador dos caçadores, quando na verdade não passa de uma caça.   

Em suma, reafirmando aquilo que sempre defendi, parte da nossa autoproclamada elite que pavoneia as suas diatribes falaciosas nos centros do poder cabo-verdiano, é uma das principais causas dos vários problemas de que padece o nosso país. Não passam de megalômanos endiabrados, sedentos por reconhecimentos à base de mentiras e ideias estapafúrdias, opinando sobre tudo e mais alguma coisa, quando não lhes são reconhecidos uma área na qual se destacam.

*Licenciado em Relações Internacionais e Diplomacia

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