Ângelo Fernandes, nascido em São Vicente, viu a vida mudar no dia em que ficou a saber que padecia de doença renal, aos 24 anos. Depois de alguns anos de tratamento em Cabo Verde, arriscou a evacuação para Portugal. Ao fim de vários anos de espera, conseguiu finalmente um novo rim, como conta nesta entrevista ao A NAÇÃO, uma nova oportunidade para vida mais perto do saudável já que a luta continua mesmo após o transplante.
Qual a sensação de estar numa lista de espera para o transplante?
Para falar a verdade, nunca pensei sobre a espera do rim. Desde cedo coloquei na mente que se iria acontecer, queria somente estar bem fisicamente visto que não se trata da cura, mas sim de um tratamento alternativo que nos ajuda a ter uma melhoria na condição de vida, deixando de fazer hemodiálise três vezes por semana, um desgaste tremendo.
Sente-se hoje privilegiado por receber um novo rim?
Felizardo sim, privilegiado não. Isto porque o transplante não foi uma questão de sorte, mas sim de estar na lista e de estar preparado para tal, pois se não reúnem as condições, mesmo estando na lista, os doutores não arriscam o transplante. Sinto-me grato uma sensação de dever cumprido visto que quando saí do Mindelo com insuficiência renal crónica, na altura com 24 Novo rim, sonho realizado para Ângelo Fernandes anos, era um jovem com futuro promissor, a ver tudo indo por água abaixo. Prometi a mim mesmo e à minha mãe, que eu iria vencer esta batalha. E creio que hoje venci.
Como foi o processo de transplante? Correu tudo bem?
A cirurgia aconteceu no dia 11 de Abril, dia do aniversário do meu filho. Um dia antes, estava de malas feitas, à porta de casa me despedindo para viajar para Cabo Verde, quando fui informado de que havia dado entrada no hospital, um rim que era compatível. No momento fiquei em choque, desliguei o telefone na cara do doutor, mas logo pensei que não era o momento para fraquejar. Decidi arriscar.
Feita a cirurgia no Hospital de Santa Maria, não posso ainda definir o processo. Segundo os médicos, o meu corpo não rejeitou e está a adaptar-se bem, embora para que isso aconteça mantenho sob uma forte influência de medicamentos. Creio que o mais difícil já passou. São seis meses para uma recuperação.
Como é que se sente agora, no pós-cirurgia?
Após o transplante, a vida ganha outra cor, com uma maior mobilidade e qualidade. Acabo de ganhar duas coisas: o regresso à liberdade de deslocação sem ter de me apresentar três vezes por semana na clínica da hemodiálise e a retoma do meu sistema urinário que não funcionava há muito.
Entretanto, mesmo transplantado, não deixamos de ser pacientes que necessitam de uma atenção especial pelo simples facto de não poder mais fazer esforços físicos devido ao rim e por continuar com o acesso intravenoso no braço, pois este não é retirado por precaução, posso dizer que são marcas para toda a vida. O importante é que tenho agora mais liberdade para retomar, por assim dizer, as minhas actividades, trabalhar em outras áreas e ter uma vida mais perto do normal.
Pensa voltar a viver em Cabo Verde?
O transplante renal não é uma cura, mas um tratamento que exige um acompanhamento muito apertado após a execução, pelo que voltar a viver em Cabo Verde não será possível. Além do acompanhamento, o tratamento exige um controlo com medicação que não temos ainda no nosso país. Agora, posso sim, ir de férias por um ou dois meses e regressar.
Qual a lição que fica de todo este processo pelo que passou?
Tudo o que me aconteceu nesta luta por uma vida saudável, fortaleceu-me e ensinou-me muita coisa. Uma delas é que devemos levar uma vida saudável. A minha nova condição exige uma assiduidade e controle na alimentação. Eu tomei a iniciativa de tornar-me vegetariano para evitar problemas maiores e conseguir viver o mais possível com este rim. Tudo que sei é que vou aproveitar da melhor forma, esta nova oportunidade.
Alguma mensagem especial?
Não é bem uma mensagem, mas uma preocupação. No meu país, antes eu ia ao mercado de peixe e comprava um saco de cavalas por 200 escudos alimentando a família toda de forma saudável. Hoje, com um salário mínimo de 15 mil escudos ninguém consegue ter uma alimentação saudável e opta por produtos industrializados. Esta situação agrava a saúde pública. Tudo isto para dizer que a política de um país tem grandes impactos na vida das pessoas.
Não esqueçamos que todos com salários baixos não comemos bem e nós somos o que comemos… Esta nova moda de hambúrgueres e comida enlatada na nossa sociedade vai nos matando aos poucos. Açúcar, sal, caldo Knorr, sumos de pacote, tudo o que é produzido industrialmente são prejudiciais ao nosso corpo, não de imediato, mas aos poucos ao longo dos anos. Preocupa-me também a água que consumimos, extraída do mar, assim como o nível elevado de jovens envolvidos em álcool e drogas, um flagelo sem controle.
Obviamente que não gostaria de ver os outros a passar por tudo o que passei, daí este concelho para cuidarem melhor da saúde, dentro do que nos é possível.
António Norton de Matos, cirurgião português: “Será simples encontrar doadores em Cabo Verde”
No final de mês de Maio esteve em Cabo Verde, no Hospital Universitário Agostinho Neto (HUAN), uma missão técnica portuguesa em cirurgia vascular no quadro da cooperação em curso desde 2015, no domínio projecto de transplante renal no país. Na altura, António Norton de Matos, médico especialista em cirurgias vasculares do Hospital Santo António do Porto (Portugal), disse à Inforpress que Cabo Verde terá todas as condições para realização do transplante renal dentro de dois meses.
“Aqui é simples encontrar doadores jovens de um determinado paciente, ou seja, os familiares estão sempre disponíveis, diferente de Portugal”, disse Norton de Matos, para quem um doente transplantado gasta “menos dinheiro” para a saúde pública, “leva uma vida normal, tem mais tempo de vida, menos doenças e complicações do que os doentes que fazem diálise”.
Por sua vez, a médica cirurgiã Denise Pereira, única desta área no HUAN, considerou que o transplante renal tem que ser uma realidade no país, realçando que em Cabo Verde os pacientes são “muitos jovens” e que é preciso consciencializar a população da importância do transplante e mover meios para que isso seja uma realidade em breve.
Aumento de pacientes com doenças renais
Na mesma altura, o director da Unidade de Diálise do HUAN, Helder Tavares, disse que Cabo Verde vem registando o aumento de casos desta doença e que se torna cada vez “mais complicado e exigente” atender a todos. Como explicou, o centro está a reduzir a sua capacidade máxima de resposta, pelo que “a necessidade do transplante é cada vez maior”.
Tavares adiantou ainda que, além dessas cirurgias de fístula arteriovenosa para doentes em hemodiálise, a equipa portuguesa que esteve no HUAN de 26 a 31 de Maio ajudou também a única médica cirurgiã no hospital na área a fazer a cirurgia vascular complexa. Segundo frisou, é preciso ter “mais especialistas” para atender “muitas demandas” que têm aparecido no dia a dia.
*Parte da reportagem sobre Lei do Transplante de Órgãos em Cabo Verde. Pode ler aqui .
Leia na íntegra na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 878, de 27 de Junho de 2024