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A justiça nacional está doente

Por: Germano Almeida

Por cada ano de cadeia Amadeu Oliveira teve direito a 27 páginas do acórdão do Supremo Tribunal, o que, convenhamos, não é brincadeira nenhuma, sendo, porém, verdade que ele tem vindo a merecer sempre exageradamente longos laudos processuais, numa prolixidade de que se poderia concluir: sim senhor, estão muito bem uns para os outros!

No seu livro Os Tristes Trópicos, Levi-Straus exaspera-se de ver um homem entrar num tribunal num desses países africanos colonizados pela França, e sair cinco minutos depois, condenado a muitos anos de prisão numa sentença detalhada em cinco linhas. 

Se fosse aqui, ele provavelmente ficaria aliviado com a sentença contra o Amadeu, exagerados anos de prisão, porém espalhados por muitas folhas de papel, nada de economia de meios na justificação do que em si é de todo injustificável, mas o digital tem a vantagem de não ocupar espaço.

Muita gente ficou desiludida com a confirmação da sentença do Amadeu Oliveira pela secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça.  Alguns, desmedidamente otimistas, chegaram mesmo a admitir que eles poderiam ter bom senso, e simplesmente absolver o Amadeu Oliveira do absurdo crime de atentado ao estado de direito democrático, que é um crime que só existe na imaginação dos juízes que o inventaram, e acabar de vez com essa paródia. 

Mas eu por acaso não estou nesse lote, nunca acreditei no bom senso dos juízes ligados a esse processo, pela razão simples de pertencerem à corporação judicial e se encontrarem já auto-formatados para defender a classe a qualquer preço. De modo que, tendo-se permitido o Amadeu o atrevimento de não prestar vassalagem a alguns elementos da classe judicial, à partida ele estava condenado, não há deus no céu para o defender, quanto mais tribunal em Cabo Verde para lhe fazer justiça.

Essa decisão faz em tudo lembrar o processo da reforma agrária de há 40 anos na brutalidade da condenação sem prova nenhuma. Há apenas uma diferença, naquele caso foi um tribunal militar; agora temos um tribunal civil. Porém, agiram com a mesma brutalidade sem cerimónia e se não fosse o risco de ser acusado de insulto, diria que esses juízes devem estar loucos. Ou então nós outros estamos loucos e não damos conta. Porque foi com um razoavelmente longo exercício de retórica que o Amadeu foi condenado na relação de barlavento, e é através de um ainda mais longo trecho retórico que a sua condenação foi confirmada. (Há neste momento em Portugal um movimento de magistrados e advogados apelando a textos sintéticos nos tribunais).

Alguma gente é de opinião que as sentenças judiciais devem ser vistas como dogmas indiscutíveis, portanto insuscetíveis de serem postas em causa. Eu pessoalmente discordo, penso que até os atos de Deus podem ser discutidos e questionados na sua validade. E não será pelo facto de não me poder opor à sua execução que deixo de dizer que são más, quando são más. E estas condenações do Amadeu Oliveira têm sido más desde o princípio, porque não têm sombra de Justiça.

Do mesmo modo, não deixa de ser curioso verificar a profusão de opiniões contra uma petição que pede ao presidente da República que requeira ao presidente da Assembleia Nacional uma reunião desse órgão destinada a discutir os efeitos do postulado inserto no acórdão sobre a generalidade da nossa Constituição, nomeadamente no que concerne a certas normas referentes às liberdades e garantias dos cidadãos.

E isso é tanto mais curioso, quanto é certo que estamos todos diante de uma sentença, melhor se dirá, temos estado todos diante de um processo contra um homem,  processo esse desde o início iniquo, e ninguém diz uma palavra em voz alta sobre essa iniquidade, para que os que usam o poder de assim prender, vejam que simplesmente estão a exercer uma vingança mesquinha e desmedida contra um homem que a todo o custo querem quebrar, aniquilar, apenas para satisfazer um  desprezível poder, porque esse homem permitiu-se algumas vezes dizer-lhes que estavam a agir mal.

Ora a verdade é que as diferentes instâncias judiciais por onde tem passado o processo Amadeu Oliveira têm estado a agir mal, fingindo estar ao serviço da justiça. Amadeu não tem beneficiado, não digo da presunção de inocência, ele não tem sequer beneficiado da presunção de in dúbio pro reu.  É um homem marcado para ser destruído e os magistrados que têm estado à volta dos seus processos mostram afinco na perseguição do seu sinistro objetivo, não parecem dispostos a parar sem o verem rastejante diante deles.

E no entanto bastaria um pouco de humanidade para se concluir que essa sanha persecutória deixou de fazer sentido, que depois de dois anos de cadeia terão já suficientemente dobrado esse homem a ponto de poderem deixar de ter medo dele, que ele deixou já de ser uma ameaça para certos magistrados que acusava de serem juízes corruptos, ainda que seja verdade que não pode haver maior corrupção a nível da justiça que a iníqua condenação de um homem a sete anos de cadeia pela acusação de um mais que engendrado  crime de atentado contra o estado de direito democrático.

Sim, a nossa Justiça está gravemente doente. E é lamentável que quem de direito continue recusando tomar consciência dessa pesada realidade. Porque o risco que alguns dizem temer de “contestação da integridade dos juízes e procuradores” não é realmente grande na realidade da nossa terra. Enorme mesmo é um risco muito pior: o risco de se transformarem em simples motivo de chacota como se vê por esta brincadeira que nada tem de inocente.

Todas as nossas instituições nacionais têm o especial dever de não se exporem ao riso, mas muito particularmente a instituição judicial. É que ninguém, nem nenhuma instituição, sobrevive à troça, e sem dúvida que alguns magistrados parecem apostados em pôr a Justiça a jeito de ser troçada e vilipendiada. 

É um erro crasso aceitar como coisa  sempre excelente, e portanto fora de toda e qualquer crítica, tudo que decidem os magistrados. Sem ir mais longe, que opinião dos juízes do Tribunal Constitucional deveremos aceitar como verdade imutável? 

Aquela de há três anos em que diziam, com a segurança dos oráculos, que nunca em tempo algum um costume contra a Constituição deveria prevalecer sobre a mesma, ou esta de agora em que se esforçaram durante mais de 30 páginas para nos convencer que afinal a coisa pode não ser sempre assim, é conforme os dias, ou os anos, ou os interesses de cada momento. Só não muda de opinião quem não tem, lá diz o ditado, porém, dos juízes a gente espera certezas, segurança, não essa deriva que nos mantém em sobressalto permanente.

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