Por: Cristina Fontes Lima
I.
Depois de tudo que se tem lido e ouvido por estes dias em torno do “estatuto” da Primeira Dama, com análises e pronunciamentos a extravasarem claramente os níveis da razoabilidade, da ética e da decência, é impossível não começar um texto sobre a matéria sem expressar a mais viva e profunda solidariedade à Dra. Débora Katisa Carvalho, a mulher, a filha, a parente e, acima de tudo, a cidadã, pelas provações por que tem passado, exortando-a a se manter firme, com a mesma verticalidade, a mesma simplicidade e a mesma entrega, de há muito, às grandes causas, que lhe fizeram granjear o respeito e a admiração de muitos dos seus concidadãos.
De facto, não há memória de uma mulher, companheira de um titular de alto cargo político, seja ele Presidente da República, Primeiro Ministro ou outro, ter sido em Cabo Verde tão agredida na sua dignidade, no que aparenta ser, basicamente, uma vendetta politiqueira ou vontade de maldizer fruto de ressabiamento, falta de argumentos elevados de combate político ou desinformação! E isso feito também com recurso a expressões preconceituosas e ultrajantes, que nos fazem regredir muitas décadas nas conquistas que se tinham por irreversíveis no que toca à dignidade e à não discriminação da mulher.
Ouvir, por exemplo, na Rádio Nacional, em programa de larga audiência, e com a omissão de quem devia assegurar alguma moderação, a insinuação de que o relacionamento da Primeira Dama com o Presidente da República, uma relação assumida com frontalidade, seriedade e insuperável publicidade, desde a primeira hora, isto é, desde a investidura do Mais Alto Magistrado da Nação, se abeira de “concubinato” e que os dois não diferem muito de “concubinos”, por não serem casados, de papel passado, tresanda a exumação de um execrável passado, marcado por estigmas com que se aferroava as inúmeras famílias, tidas por ilegítimas, apenas porque constituídas com dispensa do casamento, tal como se diferenciavam (e se descriminavam abominável e hipocritamente) os “filhos de fora”, por ilegítimos, dos “filhos de dentro” ou se estigmatizavam as “mães solteiras“. Vade retro!
Há sem dúvida preconceito, misoginia e profundo desrespeito pessoal nalgumas abordagens que se fez a esta polémica. Temos muitos por isso, vergonha alheia e solidarizamo-nos, por esse primeiro motivo, com a Primeira Dama!
II.
Mas, é também revelador do obscurantismo resistente e da retrógrada crença de que o casamento formal continua a ser a única forma legítima de se constituir (e de se preservar) a família em Cabo Verde, mesmo quando já não passa de mera aparência. Todo o relacionamento sério, em condições análogas às de cônjuges, todo o genuíno afeto que possa brotar fora desse contexto do casamento é, como nos tempos de outrora, proclamado, por certos oráculos de serviço, de constitucionalmente ilegítimo.
Compreende-se, assim, que, em paralelo, se vá propalando que a pessoa que vive em união de facto com o Presidente da República não se qualifica como “cônjuge”, para efeitos de legalmente se prevalecer do Estatuto de Primeira Dama.
Trata-se, entretanto, de uma tese que, além de não resistir ao sentido da noção de família em Cabo Verde, dificilmente resistirá ao crivo da razoabilidade e da constitucionalidade.
Desde logo porque é no mínimo duvidoso que, ao se referir ao “cônjuge” no artigo 11º da Lei Orgânica da Presidência da República, o legislador tenha tido em vista apenas a pessoa que se encontra formalmente casada com o PR.
Uma tal leitura conduziria a resultados interpretativos que não se mostram de todo razoáveis. Fosse assim, um PR que durante o exercício do mandato tivesse ficado viúvo, ou se tivesse divorciado, deveria ficar imediatamente privado dessa prerrogativa que confere à sua Presidência o citado artigo 11º. Ou seja, ante tal ocorrência (viuvez ou divórcio), o Gabinete de Apoio ao Cônjuge devia ser imediatamente desmantelado, encaixotado e mandado para a arrecadação, até segundas ordens.
Está-se, pois, perante uma perspetiva redutora, para a qual o Gabinete de Apoio ao Cônjuge encontraria a sua razão de ser na mera existência (ou não) de um cônjuge. Não na necessidade de se proporcionar ao PR, seja ele casado ou não, alguém, por norma seu cônjuge, mas que não tem que o ser, que lhe possa servir de seu coadjuvante ou conselheiro pessoal em certas matérias, nomeadamente de cariz social ou de causas relevantes da agenda pública.
Neste segundo sentido pode-se citar, no plano comparado, o exemplo do Presidente Mandela que, depois de ter dispensando a sua esposa Winnie das obrigações oficiais, instituiu nas funções de primeira dama a sua neta, num primeiro momento, e, posteriormente, a sua companheira Graça Machel, mesmo antes de esta se tornar a sua esposa. Em França François Hollande instalou também Valérie Trierweiller como Primeira Dama, sem que ela tivesse sido jamais sua esposa oficial e, em Portugal, Francisco Sá Carneiro, Primeiro Ministro do PSD, apresentou Snu Abecassis como sua consorte oficial, para todos os efeitos protocolares.
É, porém, no plano da constitucionalidade que a tese de que a Primeira Dama tem de ser formalmente o cônjuge (casado) do PR, definitivamente não resistirá.
Na verdade, dizer que a mulher que vive pública e notoriamente em união de facto com o PR, que desde a investidura foi por ele digna e solenemente apresentada à Nação como Primeira Dama, se encontra protocolarmente ao lado dele, acompanhando-o em visitas oficiais ao estrangeiro, não pode ser tida como cônjuge, para efeitos de beneficiar do estatuto de Primeira Dama, afrontaria de forma chocante e clamorosa um dos mais caros princípios e objetivos do Estado, estabelecido no artigo 7º, alínea e), da Constituição da República, que é o de “remover os factores de discriminação da mulher na família e na sociedade”.
III.
Assim sendo, e não se descortinando qualquer óbice a que a companheira que vive em união de facto com o PR seja tida como sua esposa, tentemos compreender as razões que poderão ter levado a que a actual Primeira Dama, ao contrário das antecessoras, tivesse passado a exercer tais funções em regime de exclusividade.
A nosso ver tal opção não pode ser dissociada da reconhecida ambiguidade e de uma certa opacidade que, num meio pequeno como o nosso, vinham envolvendo o regime jurídico aplicável à Primeira Dama e as prerrogativas que detinha num quadro juridico manifestamente lacunoso.
Um regime jurídico que, se não tinha suscitado problemas de monta quando a função foi exercida por pessoas que tinham uma relação de emprego público com o Estado, passou logo a ser motivo de compreensível questionamento, recordemos, quando a nova titular passou a ser uma profissional liberal, mais precisamente uma advogada, que se mostrou desde o início decidida em acumular as duas funções.
Aliás, é essa própria ex-Primeira Dama a reconhecer, num texto publicado no Jornal Expresso das Ilhas, de 17 de abril de 2023, a polémica a que essa sua dupla condição deu origem: “Muitas foram as discussões e os debates públicos e privados em torno desta questão: uma Primeira Dama que continua a exercer a advocacia. Mas foi isso mesmo que fiz durante os dois mandatos do meu marido como Presidente da República.”
E a verdade é que todos se recordam do embaraço institucional causado pela contundente denúncia do então Bastonário da Ordem dos Advogados, de que a acumulação dessas funções poderia proporcionar à advogada, que estava a exercer em simultâneo as funções de Primeira Dama, vantagens ilegítimas, nomeadamente o indevido aproveitamento das prerrogativas da sua função oficial, bem como dos recursos do Estado colocados à sua disposição, para beneficiar o exercício da sua profissão, ainda que malgré elle.
Essa não pode deixar de ser tida, a olhos vistos, como a causa próxima do questionamento sobre se a função da atual Primeira Dama, quadro dirigente destacado de uma grande empresa, devesse ou não ser exercida em regime de exclusividade, com concomitantes impedimentos e incompatibilidades. Assim como o facto, de não sendo profissional liberal, deveria estar constantemente a solicitar licenças e dispensas para o desempenho de funções protocolares e viagens …
E, sem a menor dúvida, será difícil não concordar que o regime de exclusividade (ou, pelo menos, a possibilidade de ser essa uma opção …) acaba por incorporar transparência e maior proteção à instituição Presidência da República, ao interesse público e à própria dignidade do Estado.
O mesmo é perguntar se não deverá, de jure condendo, num regime republicano como o nosso, a Primeira Dama estar abrangida, ainda que de forma equiparada, pelas normas inerentes ao estatuto de todos altos cargos públicos, que os protegem de situações de promiscuidade e indignidade?
Mesmo que o cônjuge do PR não seja titular de uma profissão liberal, mas sim trabalhador por conta de outrem, em regime de contrato de trabalho subordinado, que tem que ser dispensado para acudir às suas “obrigações oficiais”, como é o caso da atual Primeira Dama, é de se perguntar se o Estado de Cabo Verde deve estar sujeito a esse tipo de “jeitinho” da parte de entes privados, com o risco de eles pedirem também, em troca, algum “jeitinho” do Estado ou da Primeira Dama.
Todas essas questões, que no fundo remontam aos mais caros valores republicanos, nomeadamente os da transparência, do interesse público e da dignidade do Estado, afiguram-se suficientes para se ter por plausível a opção no sentido de que o serviço publico prestado por uma Primeira Dama, a se manter entre nós, pode ter de ser exercido em regime de exclusividade.
E, sendo em regime de exclusividade, por inconveniência em que o cônjuge do PR esteja na dependência de terceiros, quanto à percepção dos seus rendimentos, não há como não recorrer às situações análogas proporcionadas pela Ordem Jurídica, como sucede com os cônjuges dos diplomatas Cabo-verdianos, colocados no exterior, – e muitos deles sem serem também casados de jure, diga-se! – para se reconhecer direito a uma compensação monetária pela privação de rendimentos próprios, chame-se-lhe salário ou subsídio, a se fixar de forma equitativa.
Isso para dizer que só pode ser louvável o propósito de se pôr termo à opacidade que envolve/envolvia, o estatuto da Primeira Dama em Cabo Verde e de, em seu lugar, se introduzir rigor e transparência. Mesmo que isso possa acarretar adicional custo financeiro ao Estado. Será, em todo o caso, um custo justificado pela necessidade de se preservar outros valores superiores.
III.
Por responder fica, entretanto, a questão de saber se a interpretação do quadro normativo vigente, reconhecidamente lacunoso, a ponto de demandar o recurso à analogia, uma interpretação feita, presumivelmente de boa fé, pelos Serviços da Presidência da República, desfrutará de acolhimento nas instâncias de controlo.
Seja como for, uma coisa parece certa: a investidura do cônjuge do Presidente da República, com a abrangência que ficou dada à expressão “cônjuge”, nas suas funções oficiais, a que se refere a Lei Orgânica da Presidência da República, decorre diretamente da lei, Lei do Parlamento, não se mostrando necessário qualquer acto formal de sua nomeação, pelo que dificilmente se poderá recusar-lhe, para os devidos efeitos legais, o estatuto de servidor público.
Finalmente, e porque estamos num Estado de Direito, em que todos se devem inclinar, com humildade democrática, perante o veredicto das Instituições da República competentes na matéria, ante o despoletar dessa questão, reconhecidamente controvertida, vale aguardar, com serenidade e sem pressões ilegítimas, pelo pronunciamento das mesmas, na certeza de que, caso seja no sentido da ilegalidade das despesas efetuadas, só restará proceder à reposição do que foi indevidamente recebido, como aliás já foi expressamente admitido, sem que daí possa advir drama ou crise de qualquer natureza.
Daí deverá advir porém,
– com a urgência que a dignidade e o respeito que as funções do Presidente da República exigem;
– e com transparência e a lisura democrática que cabem,
a necessidade de aproveitar esta oportunidade para clarificar e completar o regime jurídico aplicável a uma Primeira Dama ou a um familiar coadjuvante de qualquer Presidente da República, incluindo a justa e razoável compensação pelos proventos e benefícios que possa perder pelo exercicio de serviço público relevante que presta à Nação, aplicando-lhe, mutatis mutandis, soluções aplicáveis a situações manifestamente análogas existentes no ordenamento jurídico e maxime a orientação do Artigo 56º nº 2 da Constituição de que “Ninguém pode ser prejudicado na sua colocação, carreira, emprego ou actividade pública ou privada, nem nos benefícios sociais a que tenha direito, por desempenhar cargos públicos … “