Por: Santa Clara*
Quando em Janeiro de 1979 os Tubarões Azuis foram convocados pela Confederação Africana de Futebol (CAF), enquanto um dos 8 países da chamada Zona II em futebol para participar na edição inaugural da Taça Amílcar Cabral (TAC-1979), aparentemente nem Cabo Verde sabia jogar bem a bola nem os seus atletas e dirigentes conheciam as finas regras do futebol de onze. Dir-se-ia que, embora o desporto-rei já fosse praticado, havia décadas nestas ilhas, o país não estava bem organizado para essas coisas.
Ainda assim, os nossos rapazes lá foram tentar a sua sorte, a ver se trazíamos para estas ilhas o primeiro troféu em disputa no conjunto dos “oito”. Os tubarões azuis lançaram-se, corajosamente, ao mar em busca de terra firme. E encontraram-na: Guiné Bissau, o palco dos jogos.
Contudo, tiveram, antes da viagem, de enfrentar três constrangimentos que ensombravam, à partida, a nossa participação na inédita prova: primeiro, Cabo Verde ainda não estava inscrito na FIFA, condição de base para uma presença por direito próprio em provas internacionais. Os decisores da FIFA exigiam, entre outras, a construção de um estádio relvado no arquipélago, um certo grau de privatização do quadro dos seus órgãos de gestão desportiva e a adaptação dos estatutos e regulamentos desportivos nacionais às bases por ela preconizadas. Exigências de cumprimento difícil à época, num país que acabara de se tornar independente, a braços com prementes problemas comensais.
Em segundo lugar, os nossos atletas estavam sem treino. Cabo Verde estava sem disputar o campeonato nacional havia dois anos consecutivos – o último ocorrera em 1977. Em Santiago, por exemplo, o Regional tinha começado havia apenas 30 dias, pelo que os melhores jogadores não tinham mais do que quatro jogos nas pernas, apresentando-se em baixa condição física. Estava, pois, difícil constituir-se e preparar-se minimamente uma equipa integrada pelos supostos melhores de Cabo Verde. A solução foi aproveitar a presença da equipa chinesa do Chantung em Cabo Verde e pôr os nossos rapazes a treinar, enfrentando-a. Chantung, lembrava a imprensa estatal, não era uma equipa qualquer. Jogava na I Divisão da República Popular da China.
Mister Mota Gomes, coadjuvado por António Leça do Rosário e Félix Monteiro (Té), foi o timoneiro escolhido. E tirou partido da ocasião, testando dois grupos de jogadores dos vários clubes nacionais. Um formado por atletas de Sotavento: Domingos, Alcides, Vú, Lúcio, Zé Maria, Bala, Rubon, Candinho e Abel (Travadores), Quim, Branco, Évora, Zé Maria e Djudjú (Sporting), Chico, Moreno e Albino (Boavista), Flávio, Caló, Tónio, Zé di Nhana, Makuna e Djoy, (Académica), Piroto (Vitória) e Betinho (Desportivo da Assomada). A estes se juntaram Toninho, Kontche e Nelo (equipas da ilha do Fogo); um outro segundo grupo, comandado por mister Tchida, era constituído por atletas de Barlavento: João de Júlia, Armandinho, Mané Djodje, Cadino e Calú (Mindelense), Djô (Académico do Sal) e outros.
Os jogos-treinos de aferição de qualidade ocorreram nos pelados da Praia e do Mindelo. Foram dois bons momentos em campo, com Sotavento a perder frente aos chineses por 1-2, no Estádio da Várzea, e Barlavento a vingar, impondo ao Chantung uma derrota por igual score (2-1), na Fontinha.
Tudo a postos, surge um terceiro constrangimento. Na verdade, no dia 2 de Janeiro de 1979 a selecção cabo-verdiana ruma para a Guiné-Bissau, tendo sido forçada a deixar em terra atletas titularíssimos como Zé di Nhana, Makuna, Djoy, Calú e Armandinho, alegadamente por dificuldades em conseguir dispensa laboral. E, já em Bissau – este será o quarto constrangimento – uma epidemia de paludismo fustigou os elementos do grupo, afectando directamente jogadores como Cadino, Caló, Mané-Djodje e outros, enfermando-os. Ausências que se terão reflectido nos péssimos resultados que, até os dias de hoje, perfilam-se como os piores de todos os tempos.
Na verdade, os bravos e aventureiros rapazes ficaram pela última posição do torneio, sem vencer uma única partida – foram derrotados pela Guiné-Bissau (0-3), naquela a que a imprensa qualificou como sendo “uma actuação medíocre”, e pelo Senegal (0-1).
Sobre este último jogo, frente aos Leões de Teranga, há uma situação caricata reportada pela imprensa: os Tubarões Azuis foram apanhados em mais de 40 situações de foras-de-jogo. Escreveu, então, a imprensa estatal: “um futebol descolorido, incaracterístico, cotando-se como a mais fraca do torneio (…) repetiram-se os erros da partida anterior, com a agravante de, desta vez, o adversário (Senegal) ser muito mais matreiro e com a lição bem aprendida”. Foi um “festival de off-sides”, com a manhosa defesa senegalesa a jogar em linha e com uma marcação junto à divisória do meio campo, colocando os avançados cabo-verdianos “sistematicamente em posição de fora-de-jogo” – mais de 40 situações assinaladas pelo árbitro mauritano Nicko Hamzatta, coadjuvado pelo maliano Abdoulay Traoré e pelo gambiano Alhagie Fye.
O jornal fez questão de explicar que essas dezenas de situações de foras-de-jogo não se deveram ao facto de a turma nacional ter jogado a matar, ao ataque: “(…) a maior parte deles [foras-de-jogo] foram marcados perto da linha do meio-campo, em resultado dos chutos para a zona de ninguém”.
Em resumo, foi uma aventura para nunca mais se lembrar. Os Tubarões Azuis fizeram um auto-golo, sofreram mais três, não marcaram um único e, obviamente, não venceram uma única partida, somando zero pontos e posicionando-se no último lugar do torneio, cujo troféu foi conquistado pelo Senegal.
A Zona II era constituída por Cabo Verde, Guiné-Bissau, Senegal, Guiné Conacri, Mali, Mauritânia, Gâmbia e Serra Leoa (ausente nesta primeira edição, por não se ter inscrito a tempo nas estruturas desportivas da sub-região).
Na próxima edição, trarei “Factos Curiosos da Selecção Nacional de Cabo Verde I”. Escreva-me para santaclaraj2m@gmail.com
*Pseudónimo de José Mário Correia