Por: Germano Almeida
Quase nunca se ouve falar de “Os Princípios de Conduta Judicial de Bangalore”. São importantes! Foram elaborados pelo chamado Grupo de Integridade Judicial, constituído sob os auspícios das Nações Unidas, entre Viena d’Áustria e Bangalore na Índia e oficialmente aprovados em novembro de 2002 em Haia, Holanda.
Os Princípios de Conduta Judicial de Bangalore é um projeto de Código Judicial de âmbito global elaborado com base em diferentes códigos e estatutos sobre o tema, nomeadamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, na parte em que prevê o direito de qualquer um a um julgamento igualitário, justo e público, por tribunal independente e imparcial.
O Grupo de Integridade Judicial, composto por membros de tribunais superiores e juízes seniores, teve por objetivo “debater o problema criado pela evidência de que, em vários países, em todos os continentes, muitas pessoas estavam perdendo a confiança em seus sistemas judiciais por serem tidos como corruptos ou parciais em algumas circunstâncias”.
Tenho estado a transcrever o texto introdutório à edição brasileira dos “Princípios de Bangalore”, e ele é em si tão claro e evidente e atual, que vou continuar a fazê-lo:
“A preocupação nasce da evidência de que o Judiciário, um dos três pilares da democracia, é o último refúgio do cidadão contra leis injustas e decisões arbitrárias. Se aos jurisdicionados lhes falta a confiança em sua Justiça, restará ferido o próprio Estado democrático de Direito, cujo fundamento é a aplicação, a todos os atos e atores sociais, de leis e regras preestabelecidas”.
Os membros do grupo de Bangalore elegeram como o primeiro de seis valores que deverão nortear a atuação dos juízes, o princípio da independência. Com ela presente, disseram, os demais que indicam (imparcialidade, integridade, idoneidade, igualdade e competência) ficam apenas decorrentes.
“Um judiciário de incontestável integridade é a instituição base, essencial, para assegurar a conformidade entre a democracia e a lei. Mesmo quando todas as restantes proteções falham, ele fornece uma barreira protetora ao público contra quaisquer violações de seus direitos e liberdades garantidos pela lei.”
Expressa ou tacitamente, os princípios de Bangalore acabam por enformar a generalidade dos sistemas jurídicos, e o nosso não é exceção. Com efeito, todos os ingredientes estão dentro dele semeados, às vezes até em excesso.
Por exemplo, haverá outro lugar no mundo onde se invoca mais a democracia que em Cabo Verde pelos seus governantes? E o mesmo se diga da boa governação, da transparência, da responsabilidade, do rigor.
Os nossos tribunais foram por muitos anos respeitados e acarinhados. Havia uma fé cega nas decisões judiciais, “se o senhor juiz diz que está morto, está morto!” não era uma frase vã, tinha subjacente uma ideia de confiança quase sobrenatural na decisão tomada depois de profundo estudo e reflexão, não era impunemente que se usava o brocardo, Juiz breve, sentença tola!
E que temos hoje em dia no nosso país? Dito muito abertamente, ainda que com muita pena, grande parte do nosso sistema judiciário está gravemente enfermo, porque alguns dos nossos magistrados tomaram o freio nos dentes sem que esteja a haver forma, nomeadamente através de inspetores judiciais, dignos do exercício dessa nobre função, capazes de lhes puxar o cabresto e os refrear.
E no meio disso, aquela parte dos magistrados que dignifica os princípios e valores de Bangalore, permanece num mutismo que o torna cúmplice dos juízes prevaricadores.
Com efeito, estávamos todos aqui quando vimos um juiz desembargador não hesitar em cometer um crime de prevaricação num processo em que é acusado um deputado, aceitando interroga-lo e prende-lo, sem que primeiramente o mesmo deputado tivesse sido pronunciado pelo cometimento de um crime; vimos a seguir esse mesmo desembargador participar na inserção de falsidades no processo que corre contra esse deputado, para justificar a ausência da exigência legal de sorteios dos processos; e vimos, como acaso ou se calhar mesmo como prémio, esse desembargador elevado à dignidade de juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.
Sem contar com a aberração do tribunal da Relação de Barlavento que não hesitou em condenar esse mesmo deputado a sete anos de prisão efetiva por um inventado crime de atentado contra o estado de direito democrático.
Dentro do sistema judicial, o Tribunal Constitucional era a esperança de garantia, a reserva de segurança a que os cidadãos poderiam recorrer quando todas as outras instâncias estivessem esgotadas. Porque até ao mês passado, ninguém acreditou que ele também, Tribunal Constitucional, jovem de poucos anos e sem vícios evidentes e conhecidos, estivesse já entrado na panelinha corporativa.
É certo que tinha havido o caso do Alex Saab e depois o caso SOFA, cujas decisões tiveram muito de voluntarismo e pouco de direito constituído, porém, mesmo de cara torcida foi-se dando o benefício da dúvida, é necessário acreditar que os juízes do Tribunal Constitucional estão no grupo dos mais sábios dentre nós, noutros tempos, quando havia a proliferação de deuses, certamente que eles seriam alcandorados a essa dignidade sem hesitações.
Muito bem! Tentávamos ainda esquecer, quer o Alex quer o SOFA, quando o Tribunal Constitucional nos brinda com nova pérola, desta vez mais vexatória e infeliz que as anteriores: o costume contra a Constituição derrubando a Constituição!
Na minha infância na Boa Vista nos ensinavam que até no levantar das armas deve haver cortesia.
Ora desta vez o Tribunal Constitucional jogou à bruta, não atendeu ao bom senso, os juízes esqueceram-se que também somos seres pensantes e que por isso não íamos aceitar essa prepotência.
Os princípios de Bangalore são universais e o bom senso também devia ser. Essa decisão fora de todos os nossos ritos, não nos pertence e não a aceitamos.