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Sobrevoando a poesia de José Luís Hopffer Almada

Por: Anabela Almeida* 

Antes de apresentar a minha leitura de Sombras, necessariamente, mínima, talvez importe dizer-vos o seguinte: Nunca estive fisicamente em Cabo Verde e, há 18 anos, quando me iniciei na leitura da poesia de JLHA, eu conhecia, praticamente, nada do seu universo; alguma coisa das suas dinâmicas políticas e sociais, muito pouco da sua cultura e literatura. Contudo, na Assomada Nocturna, neste Poema de N’Zé di Sant’y Agu, que eu lia e tentava a custo decifrar, revelava-se-me, em cada verso, construído em Memória e inscrito na Memória, a Alma e o Ser Cabo Verde. E, desde então, no meu entender e sentir deste livro, ficou a bater-me uma ideia, que o tempo veio afirmar e confirmar. E da qual, mais adiante, falarei. 

Em 2009 chegou Praianas – revisitações do tempo e da cidade. Neste livro, embora o poeta NZÉ di Sant’y Agu se destaque, prosseguindo na sua saga poética (chamemos-lhe poética, embora seja uma Saga de um alcance bem mais vasto) surgem, outros dois poetas, juntos, em livro, pela primeira vez, ou seja, os outros dois heterónimos ou pseudoheterónimos ou pseudónimos – e este é um outro assunto: a questão da heteronímia, na escrita do Zé, é muito interessante,  poderemos dela falar se houver oportunidade. Aliás, Tuna Furtado, uma personalidade literária de JLHA, reflete sobre esta questão, num texto de cerca de 25 páginas, inserto no final de Sombras, 

 Em 2015, dez anos depois do meu contacto com a poesia do Zé, é publicado Rememoração do Tempo e da Humidade (Poema de Nzé de Sant’y Ago). Neste livro revelou-se-me inteira a Pátria Cabo-Verdiana; as Gentes que fundaram esta Pátria, bem como a negra sorte da sua condição; o seu chão e a sua montanha, o negro da sua pedra, a humidade da sua respiração. A Saga-poema de um povo, toda a História, a sua música, os seus escritores, poetas, artistas; os Movimentos: estéticos, culturais, cívicos; Os momentos determinantes da Vida deste Povo, os momentos marcantes da sua luta pela Liberdade e Afirmação da sua Identidade. 

Este livro, ou melhor, Este Poema de Nzé de Sant’y Ago é, portanto, também um poema-documento histórico, sociológico, antropológico, cultural, político.  

Neste Poema percorremos todos os espaços do arquipélago afro-europeu, o lugar do berço, mas também da diáspora, todos os lugares das Gentes cabo-verdianas, sejam eles, a Assomada, a Cidade Velha, Pico António, S. Vicente, a Praia, o Tarrafal ou o Cais do Sodré, a Pedreira dos Húngaros, o Jamor, ou as Minas e fábricas espalhadas pelos 5 continentes. Essas terras «di longi», da distância e da errância do Povo cabo-verdiano, que inscrevem o Arquipélago nos 4 cantos do Mundo. 

Neste Poema estão todos os lugares, mas também todos os tempos e Gente que têm Cabo-Verde no seu Ser. 

Este Poema de Nzé de Sant’y Ago, que se estende por 260 páginas, é também um Memorial às gentes cabo-verdianas, mas também portuguesas, guineenses, angolanas… as que sofreram a tortura da ditadura fascista; um Memorial aos que tombaram na longa luta pela libertação. Estão estes e todos os outros que edificaram o Ser Cabo-Verde. 

Um povo, assim perpetuado, ascende à imortalidade. 

Com este Poema afirmava-se, para mim, o que, em 2005, intuíra e que, agora, como disse, confirmava: neste longo Poema de Nzé de Sant’y Ago, reconheço a Epopeia do povo cabo-verdiano. 

Neste Poema épico de Nzé de Sant’y Ago está tudo, ou melhor, para ir ao encontro do Poeta, tenho de dizer, quase tudo, uma vez que o Poeta revela uma ânsia infindável de completude, pelo que o seu Poema está em permanente construção. E este aspeto é dominante do processo criativo de JLHA. Assim sendo, embora a epopeia cabo-verdiana tenha, para mim, nascido, formalmente, em 2015, ela continuará a ser escrita até que o Poeta se vá a outra dimensão. 

Como sabemos, toda a História da civilização humana se alicerça na escrita, é através dela que se cria cultura e civilização. Tenho para mim que JLHA, sem que tenha dado conta, chamou a si a missão de escrever o Povo a que pertence, perpetuando-o. Esta é a atitude dos grandes escritores, mas que só a passagem do tempo reconhece, ainda não chegou o Tempo do reconhecimento. José Luís Hophher Almada, o Zé, é poeta – dos maiores da contemporaneidade da língua portuguesa. Ouso afirmar, como, acima, disse, que ele já escreveu a Epopeia do seu povo, que sendo um povo Ilha, é um povo Mundo. O Zé escreveu a epopeia de Cabo Verde, mas não temos ainda olhos para a enxergar, talvez seja preciso distanciamento, temporal ou geográfico, para se reconhecer com nitidez a Saga deste povo, que José Luís Hoppher Almada vem escrevendo, e que o livro Rememoração do Tempo e da Humidade _ (Poema de Nzé de Sant’y Ago) materializa. Uma Saga que, como disse, o poeta continuou, continua e continuará a escrever, e que, estou certa, só a sua morte para a escrita, que será a morte para a vida de JLHA, lhe porá um fim. 

E, tanto assim é que uma parte deste Poema de Nzé de Sant’y Ago prosseguiu, ampliando-se, em Germinações e outras Restituições de Março, um livro publicado em 2019. Uma parte deste poema continuou o seu caminho em Deflagrações, publicado há dois anos, o mesmo-outro poema contínuo que encontramos em Sombras. 

Com efeito, o segundo Livro inserto em Sombras, da autoria de Nzé de Sant’y Ago, abre, precisamente, com o poema “Ribeira Grande de Santiago”. Este poema, contínuo, remete para o berço do poeta, porque dedicado aos amigos da adolescência, mas, sobretudo, para o berço da nação: a Cidade Velha, a Cidade por onde, para onde,   (página 244)

«Onde / se engendraram / as muitas vicissitudes / da cidade primeira antiquíssima/ da primeira cidade europeia dos trópicos / da primeira cidade da primeira ilha /da primeira colónia portuguesa / na África subsahariana/ do primeiro domínio colonial luso / em todo o mundo/ da primeira cidade negra do Atlântico / da primeira cidade do Atlântico negro/ da urbe crioula primogénita / da ilha primordial / retintamente caboverdiana/ do burgo edificado / como o verde da primeira rocha»

Como constatamos, com este exemplo mínimo, Sombras irradia luz, mas para os leitores mais desatentos (e permitam-me a metáfora) é uma luz que nos pode ofuscar. Não é fácil ler José Luís Hopffer Almada, ou melhor, não é fácil, sobretudo, ler Nzé de Sant’y Ago e Erasmo Cabral de Almada, autores de dois dos três livros insertos em Sombras. Não é fácil lê-los, como não é fácil ler os Grandes livros, aqueles que constituem a biblioteca da civilização humana: A Odisseia, a Divina Comédia, Dom Quixote ou Os Lusíadas.  

Como já aludi, o Livro Sombras está dividido em 3 Livros. O primeiro Livro, do poeta Alma Dofer Catarino, intitula-se “Elegia de Sombras”. O segundo livro, que acabámos de referir, intitulado “Exumação de Sombras”, é da autoria de Nzé de Sant’y Ago. O terceiro livro, “Alarido de Sombras”, contém poemas de Erasmo Cabral de Almada. 

E quem são estes três “poetas”? ou heterónimos? Ou pseudoheterónimos, ou pseudónimos? Não sei como nomeá-los, ou melhor, não é o momento para responder a esta questão, mas, Sei quem são:

Erasmo Cabral de Almada é um poeta inserido no mundo e na rebeldia, por vezes sarcástico, mas sempre na senda do outro. Alma Dofer Catarino é um poeta lírico, intimista, por vezes, pessimista, um poeta de Sombras, mas sempre na busca da luz. Nzé de Sant’y Ago é o poeta épico-telúrico, por vezes, apontando negrume, mas, rasgando o obscurantismo, caminha ao encontro de quem Somos, «todos nós», o local e o universal, de quem é Cabo-Verde.

Como vemos, cada um destes 3 poetas manifesta-se e escreve de forma diferente dos demais. Note-se: eu disse “diferente”, portanto, estes poetas, não se opõem, complementam-se, completam-se. 

Esta dimensão PLURAL, da procura da completude através do que no outro há de diferente, é, para mim, um dos aspetos mais marcantes da poética, que também é uma ética, do poeta JLHA. Vejamos, por exemplo,  o poema “Autobiografia ortónima”, que abre Sombras.

Este poema, para além de legitimar a questão plural da heteronímia, que reconhecemos na obra poética de JLHAlmada, (se há um ortonónimo é porque há heterónimos), constitui-se também como uma síntese da Poesia de JLHA, ou seja, a viagem pessoal do “ortónimo”, JLHALmada, é um microcosmo das múltiplas Viagens, literais e metafóricas, que Sombras encerra: caminhos, errâncias, militâncias, pensamentos, lugares, em suma, as múltiplas viagens dos seus outros eus poéticos.

(p.39) 

O primeiro livro de Sombras, constante de 225 páginas, está dividido em três cadernos (não vou, naturalmente, parafrasear o Índice, isso fará o leitor, se assim o entender). Mas importa realçar a dominante constante deste Livro, “Silêncio”, uma palavra que se inscreve, desde logo, nos títulos e subtítulos. “Silêncio”, um termo subjacente ao universo Sombra. Com efeito, no primeiro caderno, temos, numa primeira parte, poemas subordinados ao título “Monólogos com o silêncio” e, numa segunda parte, “Meridianos do Silêncio”.

Os poemas deste primeiro Caderno, são, sobretudo, poemas de caráter amoroso, um amor expresso em sensualidade e erotismo –  Mas, quase sempre,  um amor / amores, infelizes.  Vejamos, por exemplo, o último poema deste caderno, “Nunca se atrasa a saudade” (pp.62-63) 

Como constatamos este poema está perpassado de nostalgia, marcada pelo vocabulário dominado por sibilantes, (ler o que está em circulo). Esta sonoridade determina o ritmo do poema, um ritmo dolente, que se harmoniza com a mágoa que sensibilizamos no sujeito poético. Mas há a esperança, esta não morre, revelada nos últimos versos: “Numa tarde de um domingo que finda, numa ilusão que tarda em finar-se”. 

 – Temos, pois, constante, em Sombras, a “SOMBRA”, mas a sua existência pressupõe outra existência, a “LUZ”, uma não existe sem a outra, há sombra, porque há luz, Sombra e LUZ não são antagónicas, são complementares. 

Eis um outro exemplo da dimensão plural da poesia de JLHA. 

E, porque referi, acima, a dimensão universal, como um aspeto que retenho na poesia de JLHA, gostaria de chamar à atenção também para a universalidade deste Amor, destes Amores. É um Amor pelo feminino, como no-lo revelam, desde logo, os adjetivos do subtítulo deste Caderno: “Mensagens provavelmente loiras (ou talvez mulatas, ou quiçá morenas, negras, ruivas e/ou ainda de olhos amendoados) 

Portanto, Este Amor, estes Amores realizam-se em todas as cores da pele humana, estes amores desconhecem fronteiras e hierarquias. O amor que, aqui, nos surge concebe-se na diversidade e funda-se na universalidade plural.  

Pelo que apresentámos podemos afirmar que o poeta JLHA e o seu poema partem da Ilha para o Mundo, trazendo o Mundo à Ilha e, deste modo, inscrevem a Ilha no Mundo. 

*Doutora em Letras, apresentação de Sombras, a 17 de Novembro, no Centro Cultural Cabo Verde em Lisboa.

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