Por: Santa Clara*
E a terceira – justamente no dia 1 de Abril – foi de vez.
Na ressaca do falhanço que foi a aventura na Guiné Equatorial, por ocasião da CAN 2015, os Tubarões Azuis foram a Lisboa determinados em vencer a poderosa Selecção das Quinas. E conseguiram. Impuseram uma derrota histórica aos portugueses – 0-2, com golos de Odair Fortes e Gegé. Um feito inédito, alcançado no Estádio António Coimbra da Mota, no Estoril.
Curiosamente, isso aconteceu num dia 1 de Abril, o tal dia a que o aforismo popular convencionou apelidar de “Dia das Mentiras”, após as propostas do Concílio de Trento (1548) implantadas pelo papa Gregório XIII (1582). Mas vingaram-se outros axiomas: “a terceira será – e foi – de vez”. Na verdade, as duas selecções já se haviam defrontado antes – em 2006, com Portugal a vencer (4-0), e em 2013, sendo que desta vez os dois contentores dividiram os pontos a meio (0-0).
Importante a registar é que frente-a-frente, mas com interesses opostos, estavam dois seleccionadores portugueses: Rui Águas, antiga glória do SL e Benfica e do FC do Porto, a defender as cores de Cabo Verde, e Fernando Santos, ex-treinador do FC do Porto e do Sporting Clube de Portugal, a empunhar a bandeira portuguesa.
O seleccionador cabo-verdiano apostou em Vozinha, Jeffrey, Varela, Semedo, Odair Fortes, Heldon, Platini, Gegé, Nuno Rocha, Nivaldo e Júlio Tavares, mantendo uma boa retaguarda de suplentes: Ken, Romário, Babanco, Kevin, Ricardo, Garry, Calú, Ryan, Steven Fortes e Carlitos. A maioria jogando no Ocidente, é certo, mas nenhum deles militando num clube de top mundial.
Verdade seja dita, também, que os insulares encontraram pela frente uma equipa francamente desfalcada, sem um único jogador do conjunto dos 14 que haviam participado, dois dias antes (31 de Março), no importante jogo que os lusitanos tinham disputado – o jogo de qualificação para UEFA/EURO-2016, em Lisboa, contra à Sérvia (2-1). Ou seja, Fernando Santos convocara Anthony Lopes; Cédric, André Pinto, Paulo Oliveira e Antunes; Adrien, André Gomes, Bernardo Silva, João Mário; Hugo Almeida e Vieirinha, tendo como suplentes Ventura, Marafona, André Almeida, Danilo, Ivan Cavaleiro, Pizzi, Tiago Pinto, André André, Ukra, Kucas João, Rui Fonte e Éder. E terminaria a partida com 10 jogadores em campo, resultado da expulsão de André Pinto, que travara em falta o dianteiro Heldon “Nhuck”, que estava quase a isolar-se em flecha, rumo ao terceiro golo.
Em rigor, o jogo do “Dia das Mentiras” acabou por ser um reencontro de irmãos – de história, cultura e afectos – mas que serviu para quebrar o enguiço. Os Tubarões Azuis derrotavam os seus pares da “Equipa das Quinas” pela 1ª vez. E isso stressou a Imprensa portuguesa que, irritada, reagiu extremamente mal à vitória insular sobre a Ocidental Praia Lusitana.
Por exemplo, o jornal nortenho “O Jogo” escreveu que os atletas portugueses “foram vulgarizados”, enquanto o diário lisboeta “A Bola” referia-se que o onze de Portugal “não era [nem] a melhor equipa da selecção” nem sequer a “segunda melhor equipa”. E ia mais longe, enfatizando que “nem era bem uma equipa”. Sim, na verdade, não jogaram os titularíssimos tradicionais, os tais que tinham lugar cativo na Selecção das Quinas: Rui Patrício (GR), Bosingwa, Ricardo Carvalho, Bruno Alves, Eliseu, Nani, Tiago, João Moutinho, Fábio Coentrão, Danny e Cristiano Ronaldo, este último, o melhor do mundo.
Mais pragmático, o jornal “Record” assinalava, agora sim, com verdade, que se tratou da primeira derrota de Portugal “frente a uma selecção dos PALOP”. Foi um brilharete dos Tubarões Azuis que, segundo também escreveu o jornal digital “Fora de Jogo/Informação Desportiva Actualizada”, mostraram uma eficácia soberba, totalmente desinibida, veloz, bem entrosada e dando um baile aos portugueses.
Por um punhado de Euros, num “jogo a feijões”
O jogo de Estoril foi claramente aquilo a que a gíria popular portuguesa chamaria de mais um “jogo a feijões”. Sim, foi uma ocasião para que a Federação Cabo-verdiana de Futebol (FCF) fizesse valer o sentido social e filantrópico da agremiação, dos atletas e dos Tubarões Azuis.
Para quem não se lembra, ainda em 2015, Chã das Caldeiras estava banhada em lavas, em resultado da erupção vulcânica de 2014. Foram 77 dias de terror, com um “índice de explosividade de 3”, sendo a maior erupção desde que existem registos.
Fogo é a ilha de grandes desportistas, particularmente, de amantes de futebol. São muitos os que vestiram a camisola de Cabo Verde e desde sempre integraram os Tubarões Azuis, começando pelos longínquos anos 70, altura em que o arquipélago, entretanto independente, começava a erigir a sua Selecção Nacional, até aos dias de hoje. São os casos de Djedjé Di Ana Luísa, um dos primeiros internacionais cabo-verdianos do pós-independência (1975), lembra-se dele? Mas também, de Raúl ou o mais contemporâneo de todos eles, Zé Luís, que jogou pelo FC do Porto e pelo Spartak de Moscovo, sem esquecer Nelo, Godinho, Luís de Fogo, Daton, Carlitos, Camelo, Mário Rubon, Reréu, Toninho e tantos outros não-internacionais, como o lendário Papá, por exemplo.
De alguma forma, foi também por eles – a maioria dos quais, ou está hoje fora da alta competição ou está sem clube – que a selecção nacional de Abril de 2015 também jogou. Jogou para ganhar, mas também para arrecadar alguns euros que concorressem para debelar e mitigar o estrago brutal e as marcas profundas deixadas pela erupção de 2014, particularmente, por Chã das Caldeiras, onde mais de um milhar de pessoas, muitas das quais seus familiares, ficaram sem as suas casas e sem meio de ganhar rendimento. Um prejuízo global de 45 milhões de euros, segundo dados do Observatório Vulcanológico de Cabo Verde.
Do dia 23 de Novembro de 2014 a 8 de Fevereiro de 2015 a emissão de gases chegava a 11 mil toneladas por dia, formando uma coluna eruptiva que atingia milhares de metros. A emissão de lavas corria em várias frentes, a uma velocidade infernal, tendo engolido os principais povoados de Chã das Caldeiras e uma significativa área agrícola.
E é aqui que entraram os Tubarões Azuis. Com os dentes afiados, foram a Lisboa para derrotar a “Equipa das Quinas”, mas também, para amealhar – e conseguiram – um punhado de Euros – 50.000 – que se reverteu a favor das vítimas da erupção vulcânica da ilha do Fogo, particularmente das de Chã das Caldeiras. Afinal, o desporto existe também para essas horas minguadas.
Na próxima edição, descrevo “A Noite das Facas Longas, no Hotel Mahraba”, na República Islâmica da Mauritânia. Foi há 40 anos, por ocasião da V Edição da TAC-1983. Escreva-me para:
santaclaraj2m@gmail.com *Pseudónimo de José Mário Correia