Por: Joaquim Arena
Deu 12 anos de trabalho às plantações de São Tomé e mais três nos campos de cana de Angola. Prestes a completar 90 anos, Nho José di Chaminé continua a cultivar as suas terras nestas encostas do concelho de S. Domingos. Mas a sua paixão foi sempre a gaita e o funaná. E foi uma gaita nova que os amigos lhe levaram, para passar uma tarde rica de memórias.
Fala-se que a primeira vez que Codé di Dona tocou acordeão, foi no de Nho José, de Chaminé, concelho de S. Domingos, quando este voltou de São Tomé e Príncipe. Em vésperas de fazer 90 anos, José já não toca o instrumento há mais de trinta anos. O último que teve, conta Júlio, um dos vizinhos, os netos e outros meninos da zona estragaram-no. O tempo passou, a idade chegou. E os vizinhos de Chaminé deixaram de ouvir a gaita de Nho José.
É tarde de domingo e vamos a caminho de Chaminé. O francês Jacques Chopin e a esposa Zahara, residentes há anos na Praia, resolveram fazer uma surpresa a Nho José. Convidaram Beto, antigo segurança do presidente Mascarenhas Monteiro, a trazer também a sua gaita e o ferrinho.
Caminho para Chaminé
Chaminé não será das zonas mais conhecidas do concelho de S.Domingos. Para lá chegar, para quem vem da Praia, é preciso estar atento à estrada calcetada que iremos encontrar, do lado direito, depois da cidade de S. Domingos. Esta sobe pela encosta do monte. Há que seguir depois por uma outra, em terra batida, de onde se avista todo o vale, a zona agrícola e as suas estufas.
Algumas famílias vivem ao longo da estrada, que serpenteia por entre os montes. Não existe qualquer serviço por aqui. Homens e mulheres, sobretudo alunos, têm de fazer o percurso de algumas horas, a pé, até à cidade. Encontramo-los subindo e descendo a estrada. A água e a comida também têm de vir da cidade. Para quem mora para lá da estrada, o recurso é ir na cabeça ou às costas. Já para quem tem burro, é mais fácil.
A casa de Nho José fica para lá do fim da estrada, à beira de um caminho. No tempo das chuvas, os poucos habitantes da região trabalham as terras férteis da encosta. Produzem milho, feijão, sapatinha, bongolon. Mas a especialidade é mesmo a mancarra. A zona ainda tem muitas manchas verdes, das últimas chuvas.
Passamos a casa de Santinha, vizinha de Nho José, onde crianças e cães brincam na frente, à sombra de uma acácia. É uma mulher vigorosa, festiva e de olhos cor de mel. Segue-nos também pelo caminho. Jacques Chopin vai chamar Júlio, irmão de Santinha, que mora noutra casa da encosta. Uma outra irmã, Segunda, costuma vir todas as manhãs preparar o café para o Nho José. A família ainda tem outra, que é irmã de caridade, no Congo.
Amizadi na coraçon
Jacques Chopin, antigo responsável cultural do Centro Cultural Francês da Praia e primeiro manager de Mayra Andrade, é uma presença habitual em Chaminé. Já trouxe vários amigos em passeio pela zona, sobretudo para irem ver o Dedu di Nhor Dés. Trata-se de uma formação rochosa constituída por blocos de pedra sobrepostos, num equilíbrio impossível.
Da última vez que veio de França, trouxe também um telemóvel novo para Júlio. A surpresa, ao ver tanta gente chegar, faz brilhar o olhar de menino de Nho José. Não tem palavras. Só sorrisos. É muita gente de uma só vez, amigos, vizinhos. E uma gaita, nova.
Jacques e Zahara distribuem copos e abrem as caixas com pastéis de nada e outros bolos. Sentamo-nos pelo chão, por onde calha. Nho José não tira os olhos da gaita. Beto coloca-lhe o instrumento no peito e Nho José tira as primeiras notas, abrindo e fechando o fole. É como um menino, com um brinquedo novo
Trabalhou nas roças de São Tomé e em Angola. A primeira vez, conta, foi em 1948. Era rapazinho de 17 anos, com contrato de três anos. Regressou mais três vezes, num total de 12 anos. Depois, foi experimentar Angola, por mais três anos. “Angola era só cana e palmeira”.
Mas São Tomé, diz, era “mais sabi, porque tinha mais comida, fruta, jaca, banana na matu, ananás, papaia, para tudo interior di matu… plantas txéu (levanta os braços), nem se via o sol, andava só debaixo de pau, das árvores…”
Roça de São Tomé
Lembra como era bom para quem trabalhava bem. “Malandro trabalhava devagar, branku não gostava, branku ta sanha, davam capinação para eles fazerem e trabalhavam devagar, branku sotava malandru, dizia, vai trabalhar, ó filha da puta…” Sorri e conta com os olhos vivos, atento ao som da gaita, agora nas mãos de Beto.
Este canta uns funanás originais seus, que compôs na sua zona de Salineiro e trocam estórias e conhecimentos. Amigos comuns. Nho José nasceu na Boa Entrada, em Santa Catarina. O pai já semeava na Tchada Grande, “tinha lugar lá…”
“Foi Antonio Barreto que ensinou Codê di Dona a tocar, lembra Nho José, que se chama mesmo José Sanches Ferreira. Júlio pergunta-lhe pelo catchorru, aquele que costumava fazer-lhe companhia. Está amarrado, noutro local, diz Nho José. “É malvadu…” Júlio fala também da mão direita do velho. Talvez seja por isso que agora tem mais dificuldade em tocar os botões da gaita nova, Hohner, de Beto, as “três rencas di botom”.
E é o vizinho que conta como anos antes, alguém subiu pela encosta e roubou o bode de Nho José. Este descobriu e desceu para ir reclamar e denunciar o ladrão. Mas o homem recusou entregar o animal e ainda esfaqueou Nho José no braço, na mão e na perna, obrigando-o a levar dezenas de pontos no hospital. “E fika ku sé bodi…”
“Djan fika mi só…”
A tarde chega ao fim. As montanhas do outro lado do vale mudam de cor. Bandos de txotas regressam às árvores. É a hora da paz mais comprida. Beto guarda a gaita na caixa e recolhe o ferrinho, que o autor destas linhas raspou com uma faca. É hora das despedidas. Nho José manda Júlio encher uma lata de mancarra e duas abóboras grandes para as visitas levarem pelo caminho. Nho José sorri de tristeza. “Djan fika mi só…” Os olhos escuros de menino fixam-nos, com um misto de alegria e reflexão: “Go, té ki’ M morri, Djan ka ta ba tem otu igual…”